1 Introdução
O presente trabalho, com base na obra de Barbosa Gomes, expõe as diversas formas de discriminação, fixando os contornos e percepções que se tem a respeito de cada uma delas. Adverte-se para a dificuldade de identificá-las, e para com a função do direito na formulação de políticas públicas que se destinam a abolir, senão minimizar, os efeitos perversos das práticas discriminatórias. Nesse contexto, abordam-se a origem e as teorias que deram fundamento às chamadas ações afirmativas. Elabora-se conceito das políticas de ações afirmativas, matizado pela reciprocidade de poder, na concepção de Norberto Bobbio. Alerta-se para os desafios a serem enfrentados por políticas dessa natureza, bem como para a importância do papel da sociedade como um todo na concretização efetiva das diretrizes e objetivos almejados.
2 Desenvolvimento
O direito deve servir como fundamento de políticas estatais voltadas ao combate da discriminação. No entanto, essas políticas somente serão eficazes se bem identificadas as situações discriminatórias e, se de algum modo, neutralizadas, o que exige, a priori, o reconhecimento das diversas formas existentes.
O tipo mais comum, a discriminação intencional, funda-se em qualquer comportamento discriminatório cujo destinatário, por razões de “raça”, cor, sexo ou qualquer outro fator que o torne diferente da maioria dominante, seja tratado de modo desfavorável intencionalmente. Tais comportamentos ora se apresentam como banais, ora como se recebessem tratamento complacente do direito e, frequentemente, representam resquícios de uma discriminação que tem raízes no passado, a exemplo, da sofrida pelos negros em virtude da escravidão (cf. GOMES, 2001, p. 20).
A discriminação de fato advém do descaso do Poder Público com as diversas realidades existentes, deixando de instituir políticas públicas que levem em conta as condições desiguais de um grupo. No racismo inconsciente, o discriminador desconhece os seus preconceitos (cf. GOMES, 2001, pp. 29-30).
A discriminação por impacto desproporcional, por sua vez, é camuflada, sendo, por isso, de difícil percepção. Ganha contornos com práticas oriundas da esfera privada, mas, também, do Poder Público, inclusive da própria lei, carregando em si um potencial discriminatório, apto a causar danos maléficos sobre certa categoria de pessoas (cf. GOMES, 2001, p. 23).
Barbosa Gomes ressalta que esse tipo de discriminação é condenável justamente pelo seu caráter perverso, isto é, por sua aptidão em perpetuar situações de desigualdade resultantes de fatores histórico-culturais (cf. GOMES, 2001, p. 24). Não obstante, entende-se que toda e qualquer discriminação contribui para a perpetuação das desigualdades. Logo, a maior nocividade da discriminação por impacto desproporcional reside, sobretudo, em seu aspecto velado.
A discriminação na aplicação do direito, a exemplo da discriminação por impacto desproporcional, caracteriza-se pelo desfavorecimento, intencional ou não, de uma determinada categoria de pessoas, decorrente dos efeitos concretos de um ato normativo qualquer, aparentemente não discriminatório. Assim, mais do que a finalidade da norma para se verificar se determinada conduta é, ou não, violadora do princípio da igualdade, atenta-se para os efeitos por ela produzidos na realidade empírica (cf. GOMES, 2001, p. 27). A título de ilustração, concebe-se exemplo hipotético de lei que, instituindo licença maternidade por período excessivo de tempo, acaba por afastar a mulher do mercado de trabalho, ao invés de protegê-la.
Outro tipo de discriminação, matizada por Barbosa Gomes, é a manifesta ou presumida. Ocorre quando, diante de situações flagrantes de discriminação, o próprio ordenamento jurídico estabelece uma presunção de tal discriminação. Assim, se as pessoas, que dela são vítimas, recorrerem ao Judiciário, estarão isentas do ônus da prova, salvo se a pretensão for de caráter condenatório. Um dos seus indicadores é a disparidade estatística que aponta ausência ou subrepresentação de determinadas minorias em algum setor e/ou atividade (cf. GOMES, 2001, p. 31).
Para Barbosa Gomes, há indícios de discriminação presumida quando se verificar, por exemplo, a ausência ou a presença simbólica de mulheres e negros em determinadas instituições, cargos ou profissões, comparada ao respectivo percentual na composição da sociedade e em outros nichos de trabalho (cf. GOMES, 2001, p. 31).
Não obstante, ainda que determinado percentual seja compatível com o todo, pode não significar efetiva representatividade. É o que ocorre com as cotas estabelecidas em favor das mulheres em partidos políticos. Muitas vezes, as mulheres não alcançam, efetivamente, o poder de mando na condução da política partidária. Assim, os dados estatísticos, se analisados isoladamente, podem conduzir a inferências equivocadas, tornando-se imprescindível a conjugação com outros fatores.
Levando-se em conta as diversas formas de discriminação descritas por Barbosa Gomes, percebe-se que as nuances não se mostram bem delimitadas e, na prática, a percepção de uma conduta discriminatória é ainda mais obscura. As práticas discriminatórias nada mais são do que a negativa do outro, em sua condição humana. O discriminador, renegando a identidade humana, é tomado pelas identidades parciais (cf. ROUANET, 2001, pp. 16-17).
Sob ótica diversa, Barbosa Gomes destaca a existência de situações legítimas de discriminação em virtude das peculiaridades de certas atividades carecedoras de condições especiais para o seu desempenho. O requisito “sexo feminino” seria legalmente admissível para a seleção de guardas de presídio feminino (cf. GOMES, 2001, p. 21).
Um segundo exemplo de discriminação juridicamente aceita consistiria na chamada “Discriminação Positiva” ou “Ação Afirmativa”, por meio da qual se dispensaria tratamento diferenciado a determinado grupo de pessoas que, historicamente, foram marginalizadas, notabilizando-se por seu caráter redistributivo e restaurador. Encontraria justificativa pela feição provisória e, também, pelos objetivos sociais a que visa (cf. GOMES, 2001, p. 22).
A discriminação positiva remete à nominada “doutrina dos separados mas iguais”. Aquela foi concebida como forma de confrontar os efeitos perversos decorrentes desta última, bem como de outras práticas discriminatórias.
A “doutrina dos separados mas iguais”, difundida nos Estados Unidos, principalmente entre 1896 e 1964, e amparada pelo Poder Público, legitimava a segregação racial, permitindo, de forma vexatória e aviltante, a oferta reservada de serviços e prestações para brancos e negros. Exigia-se, tão-somente, a equiparação entre o tratamento dispensado.
A decisão proferida, em maio de 1954, pela Suprema Corte dos EUA no caso Brown v. Board of Education of Topeka, funcionou como divisor de águas na abolição do apartheid racial. A controvérsia versava sobre reivindicações, fundadas no princípio da igualdade, de estudantes negros para que tivessem acesso a instituições públicas de ensino, sem qualquer segregação.
À época do julgamento, nas palavras de Lucena de Menezes, o presidente da Suprema Corte, Ministro Warren, teria afirmado que “a segregação racial e a doutrina dos separados mas iguais implicavam o reconhecimento da inferioridade dos indivíduos negros” (MENEZES, 2001, p. 82).
Após calorosas discussões, os ministros da Suprema Corte decidiram, à unanimidade, que a segregação entre brancos e negros ofendia o princípio da igualdade de oportunidades, inexistindo fundamento idôneo a justificar a “doutrina dos separados mas iguais”. Concluíram, ademais, que as instituições de ensino eram efetivamente desiguais. Mais adiante, essa decisão passou a vincular outras em casos semelhantes, coibindo-se restrição de tratamento em razão da cor das pessoas.
Nesse contexto, passando o Estado a exercer um papel de não-neutralidade, começaram a surgir, em meados do século XX, políticas públicas com o intuito de abolir, senão minimizar, os efeitos perversos das práticas discriminatórias existentes, bem como o preconceito arraigado na sociedade norte-americana. Buscava-se a concretização da igualdade substancial. Essas políticas, como já mencionado, ficaram conhecidas como “ação afirmativa” ou, no direito europeu, “discriminação positiva”, cujos postulados filosóficos reportam-se às teorias da justiça compensatória e da justiça distributiva, bem como ao multiculturalismo (cf. GOMES, 2001, p. 61).
É difícil vislumbrar uma única base filosófica a sustentar, de forma isolada, as políticas de ações afirmativas. Verifica-se, muitas vezes, a atuação conjunta da justiça distributiva, da justiça compensatória e do multiculturalismo, o que, de certa forma, contribui para a obtenção de melhores resultados, porquanto a lacuna de uma poderá ser suprida pela outra, convivendo harmoniosa e complementarmente.
A ação afirmativa, à luz da teoria compensatória, seria fruto de uma “compensação” ou “restauração”, no presente, a determinados grupos que, historicamente, foram marginalizados. Nesse sentido, a discriminação passada causaria efeitos perenes no tempo, de tal modo que os grupos subjugados no passado sofreriam as consequências daquela discriminação, não lhes sendo ofertadas as mesmas chances dos descendentes do grupo dominador (cf. GOMES, 2001, p. 62).
A crítica a essa teoria decorre da impossibilidade de individualização dos sujeitos envolvidos, o que daria causas a injustiças, pois, em se tratando de dano, somente as pessoas vítimas dos efetivos prejuízos estariam legitimadas a requerer alguma forma de compensação e, ainda, apenas quem tivesse causado diretamente o dano poderia se responsabilizar pela reparação (cf. GOMES, 2001, p. 65).
A teoria da justiça distributiva, por sua vez, baseia-se na idéia da necessidade de redistribuição equitativa dos ônus, vantagens e benefícios entre os membros da sociedade, buscando o bem comum. Parte da premissa de que todos os seres humanos são iguais ao nascer, porém, as diferenças vão surgindo, ao longo do tempo, como imposição da sociedade. As ações afirmativas configurar-se-iam instrumento de redistribuição equânime, em favor de determinadas categorias de pessoas, cujos direitos estariam destituídos de efetividade por conta de discriminação (cf. GOMES, 2001, pp. 66-67).
No espectro dessa teoria, existiria, ainda, a vertente utilitarista, defendida por Ronald Dworkin, segundo a qual a redistribuição de bens e riquezas contribuiria inegavelmente para o bem-estar geral. Assim, o objetivo imediato das ações afirmativas seria aumentar o número de membros de determinadas “raças” em algumas posições e profissões, enquanto o objetivo final visaria à redução do grau de consciência racial da sociedade, bem como das desigualdades sociais, especialmente as decorrentes da má distribuição de riqueza e poder (DWORKIN apud GOMES, 2001, p. 69).
Não obstante, os críticos da teoria da justiça distributiva acreditam que nem sempre haveria possibilidade de se identificar as pessoas vítimas de discriminação, esbarrando o critério de origem étnica em óbices quase intransponíveis, recorrendo-se, tão-somente, à autodeclaração de eventuais beneficiários (cf. GOMES, 2001, p. 72).
As ações afirmativas teriam, ainda, como fundamento o multiculturalismo, cujos adeptos, partindo da análise das democracias liberais e respectivas contradições, sustentariam que o liberalismo invoca, ao mesmo tempo, a neutralidade estatal e a “igual representação”, princípios que, por si só, seriam, praticamente, irrealizáveis (cf. GOMES, 2001, p. 73). Isso porque, de um lado, a nominada neutralidade da esfera pública (governo, universidades etc) representaria a garantia da liberdade e da igualdade dos cidadãos, identificadas com certas “necessidades universais” – saúde, educação, liberdade religiosa, direito de exercer cargos públicos e outras –, partilhadas por todos, independentemente da identidade cultural de cada um; de outro, alguns domínios, como a educação, exigiriam a não-neutralidade do Estado (cf. GOMES, 2001, pp. 73-74).
Nesse contexto, inevitável indagar se os cidadãos detentores de identidades e etnias diversas da dominante poderiam ser representados com equidade perante instituições públicas que não reconhecem suas identidades particulares, isto é, suas respectivas diferenças (cf. GOMES, 2001, p. 74).
Para Charles Taylor, um dos maiores expoentes da teoria multiculturalista, essa problemática estaria relacionada à identidade e à dignidade da pessoa humana, aduzindo, nos dizeres de Barbosa Gomes, que “a identidade do ser humano é parcialmente moldada a partir do ‘reconhecimento’ (ou da falta deste), isto é, da representação ou da má-representação que dele é feita por outros seres humanos”, salientando, ainda, que “a falta de reconhecimento está relacionada a uma ou outra forma de discriminação” (TAYLOR apud GOMES, 2001, p. 74).
Na concepção de Lucena de Menezes, a ação afirmativa consiste em um conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas que visam favorecer grupos ou segmentos sociais com piores condições de competir, em razão da prática de discriminações negativas, sejam elas presentes ou passadas (cf. MENEZES, 2001, p. 27). Embora as políticas de ação afirmativa tenham por intuito beneficiar vítimas de discriminação, buscam, de forma mais ampla, patrocinar maior diversidade social, mediante a ascensão e o fortalecimento de grupos subrepresentados na sociedade, independentemente das causas que originaram tal quadro (cf. MENEZES, 2001, p. 34). Em última instância, a finalidade da ação afirmativa seria propiciar a igualdade material, pois a formal não se tem mostrado eficaz.
A partir da experiência norte-americana, Lucena de Menezes faz a seguinte ponderação, com ênfases minhas:
“Uma análise imparcial da realidade – tanto quanto é possível – e calcada em pesquisas recentes realizadas sobre a ação afirmativa demonstra que a razão está com aqueles que lutam pela sua preservação, ainda que tais pesquisas não revelem a outra face da moeda: o custo que foi suportado por uma parcela da sociedade na implantação dessas políticas. A ascensão de determinados grupos, especialmente no plano social e econômico, é de difícil contestação”. (MENEZES, 2001: 45)
Outra autora, Carmen Lúcia Antunes Rocha, ao vislumbre das ações afirmativas como instrumentalização jurídica voltada à superação do isolamento de grupos marginalizados histórica e culturalmente, defende, também, a outorga de tratamento benéfico, tomando-se o cuidado para não focalizar e retratar apenas um instante da vida social, aprisionada estatisticamente e desvinculada da realidade histórica de determinado segmento social (ROCHA apud GOMES, 2001, p. 43).
3 Conclusão
Do quanto se expôs, define-se a ação afirmativa como toda e qualquer diretriz política estatal ou particular, vinculante ou não, que tenha por escopo a emancipação de determinados membros da população, que se encontram, não raramente, excluídos, seja em virtude de alguma prática discriminatória passada, cujos efeitos ainda se verificam hoje, seja por qualquer outra razão relevante que os esteja impedindo de exercer seus direitos.
A emancipação é uma decorrência da autonomia de ação e da autonomia crítica, consistindo na capacidade que o indivíduo tem de perceber, avaliar e julgar o seu entorno social com criticidade, propondo novas ações e comportamentos (cf. GUSTIN, 1999, p. 31). A conquista dessa emancipação, no entanto, só ocorre mediante maior reciprocidade de poder, na expressão utilizada por Norberto Bobbio (cf. BOBBIO, 1988, pp. 43-44).
Como bem salientou Lucena de Menezes, as políticas de ação afirmativa não se restringem a minimizar efeitos passados de práticas discriminatórias, eis que atingiram hoje espectro mais abrangente, beneficiando grupos excluídos, independentemente das causas que originaram essa exclusão. Voltam-se, ainda, à promoção da igualdade de oportunidades, à busca de maior representatividade de determinados segmentos no espaço público e no privado, como exemplo de mobilidade social ascendente e incentivo aos grupos desfavorecidos.
Não se pode, ainda, aferir a eficácia das ações afirmativas no País, onde a concretização dessas políticas é ainda incipiente. No entanto, acredita-se que o potencial das ações afirmativas em atuar como agente transformador de comportamentos e mentalidades discriminatórias está intrinsecamente relacionado às mudanças que nascem efetivamente de movimentos e conquistas populares legitimados como um todo pelo corpo social.
BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise: pluralismo, democracia, socialismo, comunismo, terceira via e terceira força. (Trad. João Ferreira). Brasília: UNB, São Paulo: Polis, 1988.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. (Trad. Luís Carlos Borges). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade. O direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa. Das necessidades humanas aos direitos: um ensaio de sociologia e filosofia do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa, DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
MENEZES, Paulo Lucena de. A ação afirmativa (affirmative action) no direito norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
ROUANET, Sérgio Paulo. O castelo encantado. Folha de São Paulo. São Paulo, 07 janeiro 2001. Mais, pp.16-17.
Procuradora da Fazenda Nacional lotada em Brasília. Pós-graduada em Direito Público. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARAUJO, Flaviane Ribeiro de. As multivariadas faces da discriminação. A discriminação positiva: origem e bases filosóficas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2011, 09:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/27509/as-multivariadas-faces-da-discriminacao-a-discriminacao-positiva-origem-e-bases-filosoficas. Acesso em: 23 dez 2024.
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