É cediço que a licitação pública é um instrumento jurídico importantíssimo para a contratação de obras e serviços públicos pela Administração Pública. A licitação é sempre a REGRA. É um procedimento administrativo de ordem constitucional, que tem por finalidade garantir que a Administração escolha a proposta mais vantajosa, segundo as regras e os princípios fixados pela lei.
Como bem indica o texto constitucional em seu art. 37, inciso XXI, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública, que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
A Constituição Federal em seu art. 22, inciso XXVII, definiu que compete à União, estabelecer normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades. Atendendo a determinação constitucional, foi promulgada a lei n. 8.666/93 de 21 de Junho de 1993. A lei n. 8.666/93 foi a responsável pela definição das normas gerais de licitação e contratação. Nela estão contidas todas as regras atinentes ao procedimento administrativo em tela para todos os entes federativos.
De acordo com o seu art. 1º: “esta lei estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. (grifo nosso).
Conforme pode ser extraído da sistemática constitucional, a licitação é uma verdadeira obrigação. A Administração Pública não tem a “opção” de realizar ou não a licitação. Ela tem o poder-dever de realizá-la. Somente nos casos indicados pela própria lei n. 8.666/93, é que a Administração poderá deixar de utilizá-la.
Nesse passo, chegamos ao recente e extremamente discutido: Regime Diferenciado de Contratações Públicas. Tal regime, instituído pela lei n. 12.462/11, faz a previsão de regras “menos complexas”, ou seja, regras “mais simplificadas” para licitações e contratações de obras e serviços para a Copa das Confederações – FIFA 2013, Copa do Mundo – FIFA 2014 e Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. Bem como para obras de infraestrutura e de contratação de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados da Federação distantes até 350 km (trezentos e cinqüenta quilômetros) das cidades sedes das competições mundiais retro mencionadas.
A lei n. 12.462/11 foi publicada em 05/08/2011 na edição extra do Diário Oficial da União – DOU, e em pouquíssimo tempo de existência, sofreu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade: a ADIN n. 4645, ajuizada no STF por parlamentares do PSDB, DEM e PPS. Entretanto, essa não foi a única ADIN ajuizada contra a conturbada lei, o Procurador Geral da República, Rogério Gurgel, também ajuizou ADIN contra esse novo sistema de licitação e contratação.
Várias foram as manifestações de repúdio ao novo sistema jurídico. E as razões para tanto, são muitas. Vejamos as principais:
Em primeiro lugar, cumpre destacar que a lei n. 12.462/11 surgiu por intermédio de uma medida provisória. Tal medida (MP nº 527/11) foi criada para modificar a estrutura organizacional e as atribuições dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, além da criação da Secretaria de Aviação Civil, a alteração da lei da ANAC e da Infraero, bem como a criação de cargos em comissão e a contratação de controladores de tráfego aéreo. Porém, inusitadamente, foi apresentado um projeto de lei de conversão, acrescentando regras sobre o regime diferenciado de contratação.
Sabendo que a Constituição Federal, em seu art. 22, XXVII, exige normas gerais de licitação e contratação, essa “manobra legislativa”, não foi bem vista, afinal, como o projeto original dispunha apenas sobre assuntos genéricos, como as já citadas normas organizacionais da Presidência da República e dos Ministérios, a inclusão de normas de licitação e contratação, totalmente “estranhas” ao projeto original, configura verdadeiro abuso no poder de emendar.
Daí concluímos que essa prática legislativa VIOLOU o “devido processo legislativo”. Afinal, não houve pertinência alguma entre o objeto da emenda e o efetivo conteúdo emendado. É evidente a falta de pertinência do texto originário da medida provisória com o texto inserido com o projeto de lei de conversão. Frise-se: O conteúdo inserido é totalmente estranho ao verdadeiro objeto da medida provisória.
Quanto ao conteúdo do novo “Regime Diferenciado de Contratações”, encontramos inúmeros outros problemas. Sabemos que a lei que trata de licitações e contratações é a lei n. 8.666/93. Então ao optar pelo RDC para licitar e realizar contratações referentes aos eventos a que se refere, haveria derrogação das normas da lei n. 8.666/93. Inclusive, esse afastamento das normas gerais de licitação e contratação está expresso no art. 1º, § 2º do RDC: “A opção pelo RDC deverá constar de forma expressa do instrumento convocatório e resultará no afastamento das normas contidas na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, exceto nos casos expressamente previstos nesta Lei”.
Também é extremamente importante mencionar, outro aspecto da nova lei que tem sido bastante criticado. Conforme já apontado, o texto constitucional estabelece que ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os participantes. Mas como assegurar igualdade de condições a todos os participantes, se o próprio RDC não fixa parâmetros mínimos para identificar as obras, serviços e as compras que serão contratados através do RDC?
O RDC apenas estabelece que o instrumento convocatório deve conter um “anteprojeto” de engenharia que contemple os documentos técnicos destinados a possibilitar a caracterização da obra ou do serviço, mas o responsável pelo projeto é o particular licitante e não à Administração Pública. Dessa forma, a ausência da apresentação prévia de um objeto claro e preciso por parte da Administração, pode prejudicar o próprio licitante, fazendo cair por terra o princípio do julgamento objetivo, que é um importantíssimo princípio licitatório.
Em outras palavras: a falta de um projeto básico (prévio) emitido pela Administração, poderá levar o ente licitante a realizar um julgamento subjetivo, de acordo com a sua conveniência, visto que o licitante não terá uma exata definição do objeto para poder elaborar corretamente o seu projeto. Então, pode acontecer do seu projeto não ser aceito, sob a alegação de que não atende aos objetivos da Administração. Mas como elaborar um projeto que atenda às necessidades da Administração, se o objeto da licitação não foi bem definido pelo ente licitante?
Outro ponto que merece destaque é a inversão de fases. Pela sistemática da lei n. 8.666/93, o licitante deve habilitar-se primeiro, para poder participar das demais fases, como o julgamento das propostas. Assim, para que ele tenha a oportunidade de ser escolhido pela Administração, antes de mais nada, a sua documentação deve ser aprovada pelo ente licitante. A única exceção a essa regra é a situação do pregão, que foi devidamente instituído pela lei n. 10.520/ 02.
Pelo novo regime, as empresas licitantes oferecem os lances, e somente a empresa que vencer a licitação, terá que apresentar os documentos exigidos para a habilitação. Ou seja, com essa nova disposição, concluímos que apenas o licitante que apresentar a melhor proposta terá em regra, que apresentar a sua documentação.
Dessa forma, está bem nítido que qualquer empresa pode participar do procedimento licitatório. Tendo ou não condições de executar o trabalho final, nada impede que a empresa participe do certame. Essa é a brecha que as empresas que não estão bem intencionadas, queriam para poder participar do procedimento e terem a chance de serem escolhidas pela Administração.
Chegamos ao fim, torcendo para que pelos menos, seja realizada a partir de agora, uma fiscalização verdadeira, ríspida e eficaz sobre todo o conjunto de projetos que estão em andamento e os que serão contratados para a realização dos eventos abordados pela nova lei.
REFERÊNCIAS:
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Lei n. 10.520 de 17 de Julho de 2002.
Lei n. 12.462 de 05 de Agosto de 2011.
Lei n. 8.666 de 21 de Junho de 1993.
Advogada militante no Estado do Rio de Janeiro. Professora. Especialista em Direito do Estado e Administrativo pela Universidade Gama Filho e em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá. Colaboradora de livros, revistas e sites jurídicos e educacionais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Luciana Freitas. A obrigatoriedade constitucional de licitar x o novo regime diferenciado de contratações públicas instituído pela Lei n. 12.462/11 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 fev 2012, 10:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/27889/a-obrigatoriedade-constitucional-de-licitar-x-o-novo-regime-diferenciado-de-contratacoes-publicas-instituido-pela-lei-n-12-462-11. Acesso em: 23 dez 2024.
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