I. INTRODUÇÃO
1. Trata-se de análise acerca da aplicação, sobre o mesmo fato, do Decreto nº 6.523, de 31 de julho de 2008, que fixou normas gerais sobre o Serviço de Atendimento ao Consumidor – SAC, concomitantemente, pela Anatel, Ministério da Justiça e Procon’s.
2. O debate gira em torno da regularidade em mais de um órgão da Administração Pública sancionar a autorizada/concessionária de serviços de telecomunicações pelo descumprimento do referido Decreto.
II. REGIME NORMATIVO APLICÁVEL AOS CONSUMIDORES DE SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES EM FACE DAS NORMAS DE PROTEÇÃO FIRMADAS PELO DECRETO Nº 6.523/2008
3. A Constituição Federal de 1988 (“CF/88”) destacou, em seu art. 170, V, como princípio da ordem econômica, a defesa do consumidor, em mais uma demonstração de que os bens jurídicos constitucionalmente tutelados devem ter uma coexistência harmônica, mesmo quando se apresente uma aparente concorrência entre eles. De tal modo, a livre iniciativa, também paradigma da atuação estatal na execução dos preceitos firmados pela Magna Carta naquele Título VII, deve ser interpretada de forma a conciliar a autonomia da vontade inerente à atividade privada com preceitos como a função social da propriedade e a proteção ao consumidor.
4. A situação de vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor é vista pela ordem constitucional como suficiente a demandar uma proteção específica e direcionada por parte dos órgãos estatais, ao ponto de se traçar como direito fundamental a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII, da CF) pelo Estado e se determinar que todos os entes da federação legislem concorrentemente sobre a responsabilidade pelos danos causados ao consumidor (art. 24, VIII, da CF/88), colocado, nesse último caso, em mesmo grau de importância à proteção ao meio ambiente, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
5. Delimitando-se o tema para a figura do consumidor, entendido também como usuário dos serviços públicos regulados e, mais especificamente, aquele que se vale dos serviços de telecomunicações, impõe-se uma análise mais detida acerca do regime normativo firmado a esse respeito, de um lado, pela Lei Geral de Telecomunicações (“LGT”) – Lei nº 9.472/1997 –, e de outro, pelo Código de Defesa do Consumidor (“CDC”) – Lei nº 8.078/1990.
6. Em primeiro lugar, vale mencionar que o conjunto das regras estabelecidas pela LGT não deixa dúvidas acerca da finalidade precípua da própria existência do órgão regulador das relações econômicas no setor de telecomunicações, qual seja, a atuação de maneira a garantir um ambiente que permita a devida prestação do serviço, assegurando-se ao usuário desse serviço tarifas e preços razoáveis, em adequadas condições (art. 2º, da LGT).
7. No mesmo caminhar se encontra o art. 3º da Lei, ao prever, em seu inciso XI, que o usuário tem direito “de peticionar contra a prestadora do serviço perante o órgão regulador e os organismos de defesa do consumidor”, em mais uma indicação de que a atuação da Anatel e dos demais órgãos de defesa do consumidor deve ser conjunta.
8. Considerando o teor do art. 1º c/c art. 5º da LGT, depreende-se que compete à Anatel organizar a exploração dos serviços de telecomunicações e dar cumprimento à disciplina das relações econômicas nesse setor, à luz da função social da propriedade, liberdade de iniciativa, livre concorrência, defesa do consumidor, bem como dos demais princípios da ordem econômica.
9. Ratificando a competência da Agência para aplicação das normas de defesa do consumidor está o art. 19 da LGT:
Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e especialmente:
(...)
XVIII – reprimir infrações dos direitos dos usuários;
10. Passando-se ao exame do regime jurídico construído pelo CDC, mister rememorar que o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor – SNDC é composto por órgãos federais, estaduais e municipais, além das entidades privadas de defesa do consumidor, consoante dispõe o art. 105 desse Código.
11. Além, evidentemente, da possibilidade de controle judicial, o CDC estabeleceu uma sistemática de controle administrativo para os casos de infração às suas normas. E definiu, em seu art. 55, que a União, os Estados e Municípios atuarão concorrentemente na tutela desse bem jurídico, norma simétrica àquela contida no art. 24, VIII, da CF/88.
12. Para tanto, as sanções administrativas deverão ser impostas por cada uma das autoridades administrativas no âmbito de sua atribuição, de acordo com o parágrafo único do art. 56 do mesmo Código, sendo, pois, em princípio, diferido, entre os órgãos das diversas esferas da Federação, o exercício da atividade de polícia administrativa.
13. A esse respeito, o Decreto n.º 2.181/1997, que regulamenta o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor – SNDC e estabelece normas gerais de aplicação de sanções administrativas no âmbito do CDC, atribui, em seu art. 5º, competência geral às entidades da Administração Pública Federal, no âmbito de suas respectivas esferas de atuação, para impor medidas reparatórias aos consumidores. O mesmo artigo prevê a resolução de eventuais conflitos de competência:
Art. 5º Qualquer entidade ou órgão da Administração Pública federal, estadual e municipal, destinado à defesa dos interesses e direitos do consumidor, tem, no âmbito de suas respectivas competências, atribuição para apurar e punir infrações a este Decreto e à legislação das relações de consumo.
Parágrafo único. Se instaurado mais de um processo administrativo por pessoas jurídicas de direito público distintas, para apuração de infração decorrente de um mesmo fato imputado ao mesmo fornecedor, eventual conflito de competência será dirimido pelo DPDC, que poderá ouvir a Comissão Nacional Permanente de Defesa do Consumidor - CNPDC, levando sempre em consideração a competência federativa para legislar sobre a respectiva atividade econômica.
14. No entanto, em razão de dificuldades de adequação da autonomia das agências reguladoras e da amplitude de suas atividades com o teor do parágrafo único do supracitado artigo, prevalece o entendimento doutrinário que não as considera integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, o que afastaria a aplicação desse dispositivo a elas.[1]
15. Especificamente quanto à competência da Anatel para impor medidas reparatórias tem-se o disposto no art. 64, do Regimento Interno da Anatel - RIA, e no art. 19, do Decreto n.º 2.338/1997, que estabelecem o seguinte:
Regimento Interno da Anatel
Art. 64. Visando resguardar direitos dos usuários atingidos por ação ou omissão de prestadoras de serviços de telecomunicações, poderá a Agência, motivadamente, determinar às prestadoras que adotem providências específicas, inclusive de natureza onerosa, em benefício dos usuários prejudicados, com o objetivo de reparar danos decorrentes de falhas, degradação ou insuficiência na prestação de serviços de telecomunicações, sem prejuízo de eventual aplicação de sanção.
..........................................................................
Decreto nº 2.338/1997
Art. 19. A Agência articulará sua atuação com a do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, organizado pelo Decreto nº. 2.181, de 20 de março de 1997, visando à eficácia da proteção e defesa do consumidor dos serviços de telecomunicações, observado o disposto nas Leis nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990, e nº. 9.472, de 1997.
Parágrafo único. A competência da Agência prevalecerá sobre a de outras entidades ou órgãos destinados à defesa dos interesses e direitos do consumidor, que atuarão de modo supletivo, cabendo-lhe com exclusividade a aplicação das sanções do art. 56, incisos VI, VII, IX, X e XI da Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990.[2] (grifou-se)
16. Diante do que consta no arcabouço normativo mencionado, conclui-se que a Anatel detém ampla competência para impor medidas reparatórias nos casos em que não se demonstra viável a identificação dos prejudicados ou a individualização dos prejuízos, podendo se valer de quaisquer das medidas previstas no artigo 56, do CDC.
17. E mesmo nos casos em que se constatar a violação do direito de um único usuário do serviço de telecomunicações, não se deve afastar a competência da Anatel para agir de modo a compelir o prestador à observância da norma.
18. Esse entendimento decorre da própria sistemática estabelecida pela LGT e calcada no fundamento constitucional presente no art. 21, XI e XII, “a”, da CF/88, que define como competência da Anatel a repressão às infrações a direitos dos usuários (art. 19, XVIII, da LGT), o que é reafirmado no art. 173 da mesma Lei ao dispor que a inobservância da Lei Geral ou de quaisquer das normas aplicáveis sujeitará os infratores às sanções nela previstas a serem impostas pela Agência.
19. Em que pese não se questionar a atuação supletiva dos órgãos de defesa do consumidor, certo é que os órgãos de controle e regulação setorial da atividade econômica privada, no âmbito de suas competências, detêm a primazia sobre o dever de aplicar as normas de proteção ao consumidor às relações que, na atividade que lhes compete regular, se caracterizem como de consumo.
20. Por isso, quando se tratar de questões relativas ao consumidor, inseridas no contexto da regulação econômica do setor de telecomunicações, a competência administrativa da Anatel é plena. Ou seja, no conjunto dos órgãos pertencentes ao Poder Executivo, a Agência detêm poder irrestrito acerca dos assuntos técnicos inerentes ao setor de telecomunicações e que, ao mesmo tempo, envolvam normas de proteção ao consumidor. Ressalte-se que essa competência plena deve ser exercida sem prejuízo de uma atuação articulada com os demais órgãos de defesa do consumidor, integrantes do SNDC e titulares de competência supletiva, com vistas a evitar sobreposição de um órgão em relação a outro. Sobre o tema, confira-se:
... as agências não podem ser órgãos neutros diante da defesa do consumidor, estando obrigadas à ação no sentido de proteção deste. A autonomia da agência não significa, no entanto, supremacia diante dos demais órgãos de defesa do consumidor.”
(...)
“A Agência deverá agir sempre em articulação com estes, nunca sem sobreposição.[3]
21. Nesse sentido, a defesa dos direitos legais conferidos ao consumidor, usuário dos serviços de telecomunicações, sobretudo diante da constatação de qualquer violação a tais normas protetivas, está, indubitavelmente, contida dentre as atribuições da Agência, não podendo esta se furtar a dar efetividade a qualquer dessas regras.
22. No que concerne ao aparente conflito de atribuições entre a Agência e os órgãos de defesa do consumidor, elucidativa é a lição de Messod Azulay Neto e Antonio Roberto Pires de Lima, que, a partir da aplicação do princípio da especialidade das leis, conclui pela prevalência da atuação da Anatel quando a incidência das normas de proteção ao consumidor estiver inserida no contexto do setor de telecomunicações:
“ Por meio da Lei nº 9.472/97, atribui-se à Anatel competência para reprimir, na forma da lei, eventuais infrações ao direito do consumidor. Por isso, nos limites da citada lei, foi editado o mencionado art. 19 do regulamento da Agência Nacional de Telecomunicações.
Assim, está afastada a competência dos órgãos integrantes do SNDC para reprimir infrações ao direito do consumidor, no que toca ao serviço de telecomunicações, ainda que seja admitida a sua competência para instaurar processo sancionador com base na Lei nº 8.078/90.
(...)
Determinou o legislador que, na prestação de serviços de telecomunicações, fossem reprimidas as infrações à ordem econômica, que, como visto, tem a guarda dos direitos do consumidor entre os seus princípios:
Art. 6º Os serviços de telecomunicações serão organizados com base no princípio da livre, ampla e justa competição entre todas as prestadoras, devendo o Poder Público atuar para propiciá-la, bem como para corrigir os efeitos da competição imperfeita e reprimir as infrações da ordem econômica.
Antecipando-se a eventuais conflitos de normas anteriores, em boa técnica, o legislador fez preceder às demais a Lei nº 9.472/97 – lei especial – a disciplinar a prestação dos serviços de telecomunicações em todo o território brasileiro.
Art. 7º As normas gerais de proteção à ordem econômica são aplicáveis ao setor de telecomunicações, quando não conflitarem com o disposto nesta lei.
(...)
Por meio da regra especial, que é a Lei nº 9.472/97, outorgou o legislador competência à Anatel para reprimir, na forma da lei, eventuais infrações à ordem econômica, e entre elas, especialmente infrações aos direitos dos consumidores, no caso, usuários dos serviços de telecomunicações. Assim, o art. 19, XVIII, da Lei nº 9.472/97: (...)
Exatamente nos limites da Lei nº 9.472/97, especialmente do artigo 19 acima citado, foi editado o regulamento da Agência Nacional de Telecomunicações, que em seu capítulo II – Das Competências, dispõe, no artigo 19: (...)
Designadamente, cuidou o legislador de prevenir o conflito de normas, ao dispor que a Lei nº 9.472/97, no âmbito do setor de telecomunicações, prevalece sobre as demais leis, como se tem na regra do artigo 7º, citado. E, especialmente, conforme os termos do artigo 19, do regulamento desta lei, prevalece sobre as demais regras legais e regulamentares que outorguem competência a outros órgãos da administração pública para instaurar processo administrativo e aplicar as sanções previstas na Lei nº 8.078/90.
Assim, em norma legais do mesmo nível hierárquico, porém especial e posterior, como é a Lei nº 9.472/97 em relação à Lei nº 8.078/90, o legislador outorgou poder à Anatel para reprimir todas as infrações ao direito do consumidor eventualmente verificadas na prestação dos serviços de telecomunicações”[4] (grifou-se)
23. Importante notar, em vista disso, que o mesmo raciocínio contido no art. 7º da LGT, referente às normas de proteção à ordem econômica, dentro da qual se insere a proteção ao consumidor, aplicado analogicamente ao tema objeto do presente exame, juntamente com a regra hermenêutica de que a especialidade da lei afasta a incidência de outras regras quando com a primeira contrastar, traz a solução jurídica para o suposto conflito de atribuições entre a Anatel e os demais órgãos de defesa do consumidor.
24. Assim, para se conferir maior legitimidade ao seu papel de órgão regulador do sistema, à Anatel cumpre adotar todas as medidas de que a lei lhe dispôs para conferir a máxima eficácia às normas relativas aos direitos dos usuários, exercendo seu poder legal de forma plena, impondo-lhe uma postura pró-ativa, sob pena de se estar violando o poder-dever que tem de agir diante das infrações de que tem ciência.
25. Cabe ainda mencionar, no que tange à repartição de atribuições entre os órgãos administrativos, de modo a evitar conflito de atribuições, especificamente em relação à atuação das agências reguladoras e de órgãos de defesa do consumidor, como os Procon’s, houve recente decisão do Superior Tribunal de Justiça que reafirmou a legalidade de atuação conjunta daqueles entes. Confira-se:
PROCESSO CIVIL. CONSUMIDOR. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. MULTA APLICADA PELO PROCON. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA. NÃO CONHECIMENTO. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. DOSIMETRIA DA SANÇÃO. VALIDADE DA CDA. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA 07/STJ. COMPETÊNCIA DO PROCON. ATUAÇÃO DA ANATEL. COMPATIBILIDADE.
1. A recorrente visa desconstituir título executivo extrajudicial correspondente à multa aplicada por Procon municipal à concessionária do serviço de telefonia. A referida penalidade resultou do descumprimento de determinação daquele órgão de defesa do consumidor concernente à instalação de linha telefônica no prazo de 10 (dez) dias.
2. No que concerne à alegação de divergência jurisprudencial, o recurso não preenche os requisitos de admissibilidade, ante a ausência de similitude fática entre o acórdão paradigma e o acórdão impugnado. Com efeito, o exame da razoabilidade e da proporcionalidade das multas aplicadas nos acórdãos cotejados foi apreciado sob o contexto específico de cada caso concreto, que retratam condutas diversas, com peculiaridades próprias e potenciais ofensivos distintos.
3. Não se conhece do recurso no tocante à apontada contrariedade aos arts. 17, 24, 25, 26 e 28 do Decreto Federal 2.181/97; e ao art. 57 do CDC, pois realizar a dosimetria da multa aplicada implica no revolvimento dos elementos fáticos probatórios da lide, ensejando a aplicação da Súmula 07/STJ. Verifica-se o mesmo óbice quanto à aferição da certeza e liquidez da Certidão da Dívida Ativa - CDA, bem como da presença dos requisitos essenciais à sua validade e regularidade.
4. Não há violação ao art. 535, II, do CPC quando o acórdão recorrido examina todos os pontos relevantes à resolução da lide, apenas não acolhendo a tese sustentada pela recorrente.
5. Sempre que condutas praticadas no mercado de consumo atingirem diretamente o interesse de consumidores, é legítima a atuação do Procon para aplicar as sanções administrativas previstas em lei, no regular exercício do poder de polícia que lhe foi conferido no âmbito do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Tal atuação, no entanto, não exclui nem se confunde com o exercício da atividade regulatória setorial realizada pelas agências criadas por lei, cuja preocupação não se restringe à tutela particular do consumidor, mas abrange a execução do serviço público em seus vários aspectos, a exemplo, da continuidade e universalização do serviço, da preservação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão e da modicidade tarifária.
6. No caso, a sanção da conduta não se referiu ao descumprimento do Plano Geral de Metas traçado pela ANATEL, mas guarda relação com a qualidade dos serviços prestados pela empresa de telefonia que, mesmo após firmar compromisso, deixou de
resolver a situação do consumidor prejudicado pela não instalação da linha telefônica.
7. Recurso conhecido em parte e não provido.(grifou-se)
(REsp nº 1.138.591 – RJ; Rel. Min. Castro Meira; Segunda Turma; DJ 05/10/2009)
26. Portanto, a competência da Anatel para fazer cumprir a legislação pertinente à defesa dos usuários dos serviços de telecomunicações é inequívoca e indeclinável, sendo a atuação dos demais órgãos ou entes de defesa do consumidor supletiva, consoante prescreve o parágrafo único do art. 19 do Decreto nº 2.338/1997, acima transcrito.
27. Isso não significa dizer, porém, que a defesa do consumidor deva ser conduzida de modo individualizado. Ao contrário disso, como prescreve a própria norma em relação aos órgãos ou entes que fazem parte do SNDC, apropriado seria uma atuação coordenada, em que pese não estarem as agências reguladoras, como já mencionado, suscetíveis à coordenação do DPDC.
28. Considerando, porém, que tantos os órgãos do SNDC quanto a Anatel, na condição de órgão regulador do setor de telecomunicações, compartilham do mesmo objetivo de proteção às normas de defesa do consumidor, seria pertinente a celebração de convênio entre eles, nos termos do art. 116 da Lei nº 8.666/1993.
29. De um lado, a formalização desse instrumento viabilizaria a cooperação entre esses órgãos, com a definição de medidas práticas referentes à atividade fiscalizatória de cada órgão/ente, com vistas a se alcançar determinado fim de interesse comum, consubstanciado na efetivação dos direitos dos consumidores dos serviços de telecomunicações. De outro, evitar-se-ia um desgaste desnecessário da Administração Pública referente à atuação em duplicidade.
30. Em relação à violação do princípio do non bis in idem decorrente dessa atuação conjunta, mister inicialmente rememorar o seu conteúdo.
35. Como é cediço, o princípio acima aludido não está expressamente previsto na Carta da República, entretanto, calca sua validade no próprio princípio da legalidade, cuja dimensão normativa engloba também a proibição de que o Estado venha a punir o indivíduo, pelos mesmos fatos, mais de uma vez.
36. Nota-se, pois, que, para se caracterizar o bis in idem, necessária a presença de um mesmo fato objeto de dupla repreensão. E essa situação jurídica só se constrói se houver identidade de sujeitos, fatos e fundamento normativo.
37. Nesse sentido, para que se caracterize a dupla punição, deve-se constatar a aplicação do mesmo fundamento jurídico sobre o mesmo fato, o que se reconhece a partir dos bens jurídicos tutelados pela norma incidente.
38. Ou seja, invocando-se a mesma norma, não se pode aplicar duplamente uma sanção com base nesse mesmo substrato normativo, o que não quer dizer que o mesmo fato não seja apto a ensejar a incidência de diversas normas, pertinentes a diferentes esferas (administrativa, civil, penal, por exemplo).
39. Isso aconteceria, por exemplo, na hipótese de os processos administrativos de descumprimento de obrigação, instaurados no âmbito da Anatel, estarem utilizando como fundamento legal o descumprimento do Decreto nº 6.523/2008 pelas empresas prestadoras de serviços de telecomunicações, e tal mote também estar sendo empregado pelos demais órgãos da Administração Pública (Ministério da Justiça e Procons) para dar início a outros processos administrativos contra os mesmos sujeitos sobre exatamente as mesmas condutas.
40. Muito embora se evidencie uma sobreposição de competências com as medidas aludidas acima, certo é que a Agência Reguladora não deve deixar de agir em situações nas quais se constate o descumprimento de normas de proteção ao consumidor referentes à prestação do serviço de telecomunicações.
41. E, frise-se, somente haveria bis in idem se mais de um órgão e/ou ente da Administração buscasse a aplicação de penalidade em função de ato/fato resultante da conduta praticada pelo mesmo sujeito, em violação do mesmo dispositivo legal.
42. Mesmo que assim fosse, o próprio sistema normativo cuidou de elucidar qual o órgão seria o competente para prosseguir com a apuração da violação da norma consumerista ao dispor, no parágrafo único do art. 19 do Decreto nº 2.338/1997, que a competência da Agência prevalecerá sobre a de outras entidades ou órgãos destinados à defesa dos interesses e direitos do consumidor.
43. Nesse sentido, não é dado à Anatel deixar de agir, conforme outrora já mencionado, devendo o sujeito infrator, se quiser, suscitar o conflito de atribuições a ser dirimido pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor – “DPDC”, nos termos do art. 5º do Decreto n.º 2.181/1997, decisão que, frise-se, não vincula a Anatel, por não estar subordinada à coordenação daquele órgão.
III. CONCLUSÃO.
44. Por tudo isso, conclui-se que a verificação do bis in idem irá depender da efetiva certificação de identidade de fato, sujeito e fundamento legal para o objeto do processo administrativo instaurado e que a competência da Anatel prevalecerá sobre a dos demais órgãos do SNDC, devendo, portanto, cada órgão seguir com sua regular atuação.
[1] MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa. A defesa administrativa do consumidor no Brasil. In: Revista de Direito do Consumidor, v. 46, p. 120, abr-jun/2003.
[2] No mesmo sentido, cf. o disposto no art. 18, §§ 2º e 3º, do Decreto n.º 2.181/1997.
[3] FARENA, Ducivan Van Marsen. Regulação e defesa do consumidor no setor de telefonia. In: Revista de Direito do Consumidor, v. 59, p. 26, jul-set/2006.
[4] NETO, Messod Azulay; LIMA, Antonio Roberto Pires de. O Novo Cenário das Telecomunicações no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000. p. 417/425.
Procuradora federal em exercício no Departamento de Consultoria e Assessoramento da Procuradoria Federal junto à Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Especialização em Direito do Estado pela Universidade Cândido Mendes.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIEIRA, Roberta Lima. A competência dos órgãos da Administração Pública na aplicação do Decreto Nº 6.523/2008, que fixa normas gerais relativas ao Serviço de Atendimento ao Consumidor - SAC, nas relações de consumo que envolvem prestação de serviços de telecomunicações Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 mar 2012, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/28094/a-competencia-dos-orgaos-da-administracao-publica-na-aplicacao-do-decreto-no-6-523-2008-que-fixa-normas-gerais-relativas-ao-servico-de-atendimento-ao-consumidor-sac-nas-relacoes-de-consumo-que-envolvem-prestacao-de-servicos-de-telecomunicacoes. Acesso em: 23 dez 2024.
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