O instituto da coisa julgada material se caracteriza por tornar os comandos contidos na sentença, imutáveis. No entanto, resta a pergunta: Sem contar as hipóteses de ação rescisória, seriam esses valores absolutos, baseados na segurança jurídica, ou se diante de decisões manifestamente contrárias ao ordenamento jurídico podem (devem) ser modificados?
A presente pesquisa, ora apresentada se justifica por tratar-se de tema polêmico entre a doutrina e demais pesquisadores da área. Polêmico no sentido de poder interferir em direito em tese imutável. Existe muita divergência na doutrina e na jurisprudência no que tange à coisa julgada, o que torna interessante o assunto, ainda mais quando se trata dos chamados vícios transrescisórios, que podem mudar uma decisão, até mesmo sem a necessidade de uma ação rescisória. O instituto da coisa julgada é amplamente tratado pela doutrina, sendo assunto para as mais variadas pesquisas no campo acadêmico, tanto em monografias como em trabalhos de conclusão de curso, porém no que tange especificamente aos vícios transrescisórios, grande parte da doutrina se omite ou aborda de forma secundária, merecendo, pois, tratamento mais aprofundado.
Para entender o conceito e as características referentes à coisa julgada é fundamental compreender os aspectos de uma sentença.
Está expresso no art. 458 do CPC, que são requisitos da sentença o relatório, a fundamentação e o dispositivo. Segundo Sérgio Gilberto Porto é no relatório que será mencionada a causa de pedir, o pedido e as partes que constituem a demanda. No que tange à fundamentação ou motivação, é onde o magistrado considera, aprecia e sustenta a própria convicção, pois sua decisão deve resultar de uma análise. Por fim, o terceiro requisito trata-se do dispositivo ou conclusão que é a parte onde o juiz dá verdadeira resposta ao pedido deduzido. Muitos doutrinadores têm afirmado ser o dispositivo a parte da sentença que adquire autoridade de coisa julgada.
Em se tratando de classificação das demandas, a doutrina brasileira tem dividido em sentenças declaratórias, nas quais se busca a declaração da existência ou inexistência de relação jurídica ou de autenticidade ou falsidade de documento, ou seja, cria-se uma certeza onde havia incerteza; sentenças constitutivas em que o autor busca a criação, extinção ou modificação de uma relação jurídica, podendo esta ação ter cunho positivo ou negativo, e sentença de natureza condenatória em que o autor pretende impor uma sanção ao réu. Pela teoria quinária ainda é possível classificar em ações mandamentais e ações executivas lato sensu.[1] Essa classificação pode, pois, elencar os efeitos de uma sentença (declaratório, constitutivo, condenatório, executório ou mandamental), diferente da coisa julgada, que é na verdade uma qualidade pela qual o efeito se manifesta, ou seja, a sua imutabilidade e indiscutibilidade.[2]
Após breve explanação referente à sentença, o foco passa a ser a coisa julgada. Como bem define Cândido Rangel Dinamarco:
Em direito processual, coisa julgada é imutabilidade da sentença e de seus efeitos. Ela só ocorre depois que a sentença se torna irrecorrível porque, no momento em que é proferida, ela própria e seus efeitos ainda são mera proposta de solução do litígio (sentenças de mérito), ou simplesmente proposta de extinção do processo (terminativas); nesse primeiro momento ainda é possível a substituição da sentença e a alteração do teor do julgamento, em caso de recurso interposto pela parte vencida (CPC, art. 512).[3]
A coisa julgada pode ser dividida em formal ou material. A coisa julgada formal pode-se dizer pertence ao processo interno, ou seja, não se pode discutir a decisão dentro do processo, ao passo que, a coisa julgada material quer dizer que sua indiscutibilidade vai além do processo, seus efeitos repercutem fora do processo. A imutabilidade que de fato merece relevância é decorrente da coisa julgada material.[4]
Nas palavras de Cássio Scarpinella Bueno:
Por assim dizer, denomina-se coisa julgada formal aquela sentença não mais sujeita a qualquer espécie de impugnação endoprocessual e, portanto, trata-se de realidade próxima àquela desempenhada pela preclusão. A coisa julgada material, de sua vez, é aquela mesma característica de imutabilidade, analisada de fora do processo, isto é, enquanto característica da imutabilidade da sentença do ponto de vista exterior, não podendo a mesma ser atacada por qualquer meio, inclusive extraprocessual.[5]
Gustavo Filipe Barbosa Garcia ao analisar a eficácia preclusiva da coisa julgada aduz que:
(...) da autoridade da coisa julgada, em si, também decorre outro efeito, particular, autônomo e distinto, qual seja: a eficácia preclusiva.
(...). Simultaneamente ao trânsito em julgado da decisão final de mérito, agrega-se à coisa julgada este efeito de natureza preclusiva, que dela própria tem origem. Por meio dele, com exceção da via da ação rescisória, fica obstado rediscutir os efeitos tornados imutáveis pela coisa julgada material.[6]
Para se impugnar uma decisão transitada em julgado deve-se entrar com a denominada ação rescisória, expressa no art. 485 do CPC. Esta tem natureza desconstitutiva, podendo ser intentada pelas partes, por terceiros prejudicados e também pelo Ministério Público.[7] Reza o referido artigo:
A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: I- se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; II- proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente; III- resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou da colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; IV- ofender a coisa julgada; V- violar literal disposição de lei; VI- se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal, ou seja, provada na própria ação rescisória; VII- depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável; VIII- houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença; IX- fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa.[8]
A ação rescisória que está prevista em nosso Código de Processo Civil visa à desconstituição de uma sentença ou acórdão transitado materialmente em julgado, com o intuito de reapreciar o mérito da causa. Mira uma decisão imutável que não pode mais ser atacada por via de recursos, e tem como fundamento evitar possíveis injustiças.
Antônio Cláudio da Costa Machado entende que por ser a coisa julgada uma das garantias fundamentais do indivíduo (CF, art. 5º XXXVI), o seu rompimento só poderá acontecer naquelas hipóteses que estejam expressamente consagradas pela lei. Assim sendo, o rol do artigo 485 do CPC é taxativo, podendo ser casos de ação rescisória apenas os elencados nos incisos correspondentes e sendo uma sentença ou um acórdão de mérito, ou seja, uma decisão que tenha apreciado o mérito. Nos casos em que o vício é tão grave a ação rescisória seria dispensável, como por exemplo, no caso de uma sentença proferida por juiz sem investidura (qualquer órgão judicial pode declará-la inexistente - querella nulittatis).[9]
Em sentido contrário é a posição dos juristas Fredie Didier Júnior e Leonardo Cunha ao analisarem a situação mencionam que:
Discute-se muito se é possível o ajuizamento de ação rescisória contra sentença nula, ou se ela somente cabe nos casos de sentença rescindível. Cumpre admitir essa fungibilidade: decisão judicial com defeito transrescisório pode ser impugnada por ação rescisória, embora a recíproca não seja verdadeira - decisão judicial com vício rescisório só por ação rescisória pode ser impugnada.[10]
No entanto os referidos autores lembram que: "O STJ, em decisão recente não admitiu a utilização de ação rescisória para desconstituir decisão proferida em processo em que não houve citação, sob o fundamento que a rescisória tem cabimento específico, não comportando alargamentos. (STJ, 2ª S., AR N. 771 - PA, rel. Min. Adir Passarinho Jr., j. 13.12.2006, publicado no informativo n. 308)". [10]
Existe, entre os doutrinadores, um tema que acaba por dividir os juristas em duas correntes: aqueles que são a favor da relativização da coisa julgada e aqueles que são contra. Apesar de ser a coisa julgada imutável e indiscutível, há possibilidades de se rever determinadas sentenças mesmo após seu trânsito em julgado. Para a parte da doutrina contrária à relativização da coisa julgada, ou seja, contrários à discussão da decisão que transitou em julgado (com a ressalva dos casos de ação rescisória), os argumentos partem da tese de que a coisa julgada é uma garantia constitucional que enseja a segurança jurídica. Já para a segunda corrente seria possível a relativização da coisa julgada, sem a necessidade de ação rescisória, por se tratar de graves injustiças que poderiam ocorrer, caso a decisão jamais pudesse ser reavaliada. No entanto, não parece aceitável a tese de rever a decisão com base em sentença injusta, o que poderia criar uma subjetividade muito grande, ensejando revisão de centenas de casos sem fundamento algum, e, pois, exterminando tal segurança jurídica decorrente da coisa julgada. Parece ser possível, no entanto, a relativização da coisa julgada quando se tratar de sentença inconstitucional. Na verdade o que contraria a Constituição não é a coisa julgada, mas sim o conteúdo da sentença, ou seja, uma sentença inconstitucional pode transitar em julgado e assim deveria ser revista, desconsiderando a coisa julgada material.
O melhor exemplo a ser exposto é o caso de investigação de paternidade, quando ainda não existiam técnicas científicas que existem hoje, e que poderiam chegar a um resultado diferente do qual foi decidido anteriormente. Nesse caso seria afrontar o maior princípio constitucional, qual seja o da dignidade humana alegando que uma pessoa é genitora de outra quando isso não corresponde com a verdade.[11]
Em se tratando do tema específico dos vícios transrescisórios, a brilhante obra do Professor José Maria Rosa Tesheiner "Pressupostos processuais e Nulidades no processo civil" merece destaque. Segundo o autor:
Em casos raros, como o de falta ou nulidade da citação em processo que correu à revelia, o vício pode ser arguido mesmo depois do decurso do prazo para a propositura da ação rescisória. Em outras palavras, a nulidade (ou ineficácia) persiste, não se convertendo em mera rescindibilidade. Poderá ser pronunciada em outro processo, mediante provocação do interessado, por embargos à execução ou por outro meio cabível.[12]
Já o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, considerando a hipótese de vícios transrescisórios decidiu o seguinte:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTERDIÇÃO. ALEGAÇÕES DE NULIDADES ABSOLUTAS E VÍCIOS TRANSRESCISÓRIOS FEITAS EM MOMENTO POSTERIOR À SENTENÇA. As nulidades absolutas e os vícios transrescisórios podem ser alegados a qualquer tempo e não exigem forma mais específica. Por isso, a petição que trouxe tais alegações depois da sentença, deve ser recebida e processada como recurso de apelação. AGRAVO PARCIALMENTE PROVIDO. EM MONOCRÁTICA." 13 (Agravo de Instrumento Nº 70018830356, Oitava Câmara Civel, Tribunal de Justiça do RS: Relator Rui Portanova, Julgado em 07/03/2007).[13]
Por sua vez, Fredie Didier Júnior e Leonardo Cunha entendem que para atacar vícios transrescisórios deve-se propor uma ação de nulidade conhecida como querella nulittatis.[10].
Não se pode entender que a coisa julgada seja uma espécie de sanatório de qualquer vício ou nulidade do processo, imune a qualquer discussão, pois existem situações que isso ainda é possível. Dependendo do tipo de vício que padece a decisão e de sua intensidade como as chamadas inexistências processuais, sequer ficam imunizadas com a formação da coisa julgada.[5]
Cândido Rangel Dinamarco complementa arguindo que:
Mesmo as sentenças de mérito só ficam imunizadas pela autoridade do julgado quando forem dotadas de uma imperatividade possível: não merecem tal imunidade (a) aquelas que em seu decisório enunciem resultados materialmente impossíveis ou (b) as que, por colidirem com valores de elevada relevância ética, humana, social ou política, também amparados constitucionalmente, sejam portadores de uma impossibilidade jurídico-constitucional.[3]
De acordo com José Maria Rosa Tesheiner existem os chamados vícios transrescisórios, que autorizam a declaração da ineficácia, nulidade ou inexistência da sentença, independente de ação rescisória. O autor enumera uma série de hipóteses nas quais entende serem vícios transrescisórios e ao final chega à conclusão afirmando que:
Podemos enquadrar todas essas situações numa fórmula geral, próxima do art. 82 do Código Civil, dizendo que os vícios transrescisórios correspondem às seguintes situações: a) inexistência da sentença proferida por órgão sem jurisdição; b) nulidade da sentença por impossibilidade do objeto; c) ineficácia da sentença em relação a quem apenas aparentemente foi parte, bem como em face de quem não foi validamente citado.[14]
A coisa julgada, via de regra, torna imutável a decisão proferida, como visto anteriormente. No entanto, pode ser desconstituída pela chamada ação rescisória que tem prazo de 2 anos para ser proposta e está prevista no CPC. Há, contudo, outras hipóteses em que uma decisão também poderá ser invalidada, e mesmo após o prazo decadencial da ação rescisória. Trata-se de decisão judicial contaminada por vícios transrescisórios, que devem ser atacadas por meio de impugnação da ação de nulidade conhecida como querella nulittatis, que por sua vez, é imprescritível.
Referências:
1 PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa Julgada Civil. Rio de Janeiro: AIDE, 1996. pp. 14-6; 23-4.
2 SILVA, Ovídio Araujo Baptista da. Curso de Processo Civil. Processo de Conhecimento. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. v.1. p.482.
3 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 6.ed rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009. v. III. pp. 300; 314.
4 MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHAR, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. Processo de conhecimento. São Paulo: RT, 2008. v. II. p. 642-3).
5 BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. procedimento comum, ordinário e sumário. São Paulo: Saraiva, 2007. pp. 387; 400-2.
6 GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Coisa Julgada. Novos enfoques no Direito Processual, na Jurisdição Metaindividual e nos Direitos Coletivos. São Paulo: Método, 2007. p.17.
7 WAMBIER, Luiz Rodrigues (coord); ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. Teoria geral do Processo e Processo de Conhecimento. 7.ed. rev. e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. v.I. p 552-3.
8 ABREU, Nylson Paim de (org.). Constituição Federal, Código Civil e Código de Processo Civil. 8.ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007. p.432.
9 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de Processo Civil Interpretado. Artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. 4.ed. Barueri: Manole, 2004. p. 671-2.
10 DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro. Curso de Direito Processual Civil. 9.ed rev. e ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2011. v.III. pp.368; 370.
11 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 17.ed. inteiramente revista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. v.I p. 464-8.
12 TESHEINER, José Maria Rosa. Pressupostos processuais e Nulidades no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2000. p.277.
13 Disponível em: http://www.tjrs.jus.br. Acesso em 04/11/2011.
14 TESHEINER, José Maria Rosa. Elementos para uma teoria geral do processo. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 132-9. (Note-se que na citação do autor é referido o art. 82 do Código Civil de 1916, que corresponde ao art. 104 do Código Civil de 2002).
Advogado militante (OAB/RS 73.357), trabalha nas áreas cível e trabalhista. Formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS no ano de 2007. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo IDC-RS no ano de 2010. Mestre em Direito Processual Civil pela PUCRS no ano de 2014. Professor de Direito da Graduação e Pós-Graduação da Universidade de Santa Cruz do Sul -UNISC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KRIEGER, Mauricio Antonacci. A coisa julgada e os chamados vícios transrescisórios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 mar 2012, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/28101/a-coisa-julgada-e-os-chamados-vicios-transrescisorios. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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