Co-Autor: Flávio Martins da Silva
Sumário: INTRODUÇÃO. 1. O que se entende por cidadania? 2. Como as pessoas se relacionam com a cidadania. 3. Posição dos doutrinadores. 4. O que nós achamos da cidadania? 5. Problema que a concepção da cidadania omite. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
A atual Constituição Federal é taxada de cidadã. Ela se constitui em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, estando inserida no art. 1º, inciso II, da nossa Carta Política. Segundo Carvalho (2011, pág. 7), “ A cidadania, literalmente, caiu na boca do povo. Mais ainda, ela substituiu o próprio povo na retórica política. Não se diz mais ‘o povo quer isto ou aquilo’, diz-se ‘a cidadania que’. Cidadania virou gente”.
Não se vislumbra outro mecanismo de aquisição de direitos, a não ser através da cidadania, que se afigura como um sentimento que deve levar os indivíduos a buscar seus direitos quando conscientes de que pertencem a um determinado ente que podemos denominar de Estado organizado sob uma constituição.
Conforme ensina Dallari (2004, pág. 24), “a cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo”. Não obstante as dificuldades de se conceituar o termo cidadania, clássico é a definição do sociólogo britânico T. H. Marshall, que, analisando a evolução histórica da cidadania no Reino Unido, desenvolveu a distinção entre as três dimensões da cidadania: civil, política e social, de forma que seria considerado cidadão àquele titular das três categorias de direitos correspondentes.
A cidadania não se restringe a delegação ao Estado da tarefa de promover a justiça social, concepção eivada nas idéias de assistencialismo e paternalismo, mas compreende uma postura ativa dos cidadãos, uma vez que são eles que possuem as condições para promover a transformação de sua realidade (BITTAR, 2004).
Diante do exposto, coloca-se os seguintes questionamentos: O que se entende por cidadania? Como as pessoas se relacionam com a cidadania? Como nossos doutrinadores entendem o conceito de cidadania? Qual é o nosso entendimento sobre cidadania? Quais são os problemas que a concepção omite? O presente artigo tem por escopo tentar responder esses questionamentos e chegar ao final um entendimento sobre cidadania.
Só se pode falar em cidadania quando existem pessoas vivendo em comunidade na qual podem exercer direitos e cumprir deveres sob um regime político que permita esse exercício e com regras definidas em uma constituição.
Foi só com o desenvolvimento da sociedade capitalista (cujo início podemos talvez situar no século XV), com a longa ascensão da burguesia em luta contra o feudalismo, que se retoma pouco a pouco ao exercício da cidadania, como parte da existência dos homens vivendo novamente em núcleos urbanos (Cerquier-Manzini, 2010)
Seguindo essa evolução histórica da conquista de direitos, eles se firmaram com o advento das revoluções burguesas ocorridas na França e nos Estados Unidos da América no século XVIII. Com elas, estabelecem-se as Cartas Constitucionais, que se opõem ao processo de normas difusas e indiscriminadas da sociedade feudal e às normas arbitrárias do regime monárquico ditatorial, anunciando uma relação jurídica centralizada, o chamado Estado de direito. Este surge para estabelecer direitos iguais a todos os homens, ainda que perante a lei, e acenar com o fim da desigualdade a que os homens sempre foram relegados (Cerquier-Manzini, 2010).
Assim, com o advento das constituições nasce a isonomia formal entre as pessoas bem como a positivação dos direitos civis, políticos e sociais que, passaram a ser reivindicados pelos cidadãos. A conquista desses direitos ocorreu de forma paulatina, conforme Marshall apud Carvalho (2011, pág 10),
“a cidadania, se desenvolveu na Inglaterra com muita lentidão. Primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII. Depois, no século XIX, surgiram os direitos políticos. Finalmente, os direitos sociais foram conquistados no século XX”.
Para Marshall, formulador da teoria da cidadania, existe distinção entre as várias dimensões da cidadania. Para ele, existe a cidadania política, que corresponde ao reconhecimento do direito de eleger representantes nos órgãos do Estado, nas assembléias legislativas; a cidadania civil, que coincide, mais ou menos, com a capacidade de agir, isto é, com a capacidade de estipular contratos e de vincular-se, mediante consenso próprio, a empenhos e prestações nos confrontos com outros sujeitos, e, enfim, a cidadania social, que designa o conjunto de expectativas que cada cidadão exprime perante o Estado, para obter a garantia de segurança de vida e de trabalho, que são, de vez em quando, necessárias para dar conteúdo da dignidade e de liberdade à existência individual (CARVALHO, 2011).
Assim, é que, a partir da aquisição desses direitos, o cidadão se torna apto a participar dos destinos de seu país, ou seja, adquire a cidadania. Entretanto, a aquisição desses direitos não é garantia de que o cidadão vá participar efetivamente dos destinos de seu país, é necessário que o estado garanta condições de uma efetiva participação, não somente através do voto, mas também através de conselhos ou na formulação do orçamento, indicando setores na qual os recursos públicos podem ser aplicados.
No entanto, para que o povo de uma determinada nação participe de alguma forma, principalmente, em conselho que proporá sugestões ao orçamento, necessário se faz que detenha educação. Nesse ponto, Marshall coloca a educação como fundamental para o desenvolvimento da cidadania. Segundo Marshall apud Carvalho (2011, pág 11) “Nos países em que a cidadania se desenvolveu com mais rapidez, inclusive na Inglaterra, por uma razão ou outra a educação popular foi introduzida. Foi ela que permitiu às pessoas tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para lutar por eles. A ausência de uma população educada tem sido sempre um dos principias obstáculos à construção da cidadania civil e política”.
Assim, podemos afirmar que um dos pilares da cidadania é a educação. Somente através desse processo de construção do conhecimento é que o povo pode conhecer seus direitos e suas obrigações e pode interferir de alguma forma no destino de seu país.
A participação do povo na vida política do país é elemento que influencia na decisão. Neste sentido, para Borja apud Jacobi (2000), “o objetivo principal da participação no plano conceitual é facilitar, tornar mais direto e mais cotidiano o contato entre os cidadãos e as diversas instituições do Estado e possibilitar que estas levem mais em conta os interesses e opiniões daqueles antes de tomar decisões ou de executá-las”
O orçamento participativo, por exemplo, implantado pelo Partido dos Trabalhadores – PT, na prefeitura de Porto Alegre – RS, foi uma forma de, segundo Silveira (2002, pág. 44) “estimular a formação dos Conselhos populares nos bairros e vilas da cidade para que a população pudesse participar da decisão sobre como e onde deveriam ser aplicados os recursos públicos do município no atendimento das necessidades da cidade”.
Apesar de desenvolver uma democracia participativa e representativa, o orçamento participativo não pode beneficiar todos, isto implica a dizer que, uma determinada coletividade irá se beneficiar em detrimento de outra. Assim, gera um clima de rivalidade.
Por outro lado, o excesso de democracia esgota o indivíduo e gera uma apatia política. Neste sentido, pondera Pont apud Silveira (2000, pág. 45), “é coerente sustentar que a ação organizada da população tende a aumentar a cobrança por mais democracia e por mais eficiência administrativa”.
O grande desafio, a programas como estes, que se busca o exercício da cidadania, é encarar má educação da população.
Os doutrinadores pátrios, principalmente, os constitucionalistas entendiam a cidadania como a aptidão para o exercício de direitos políticos. Ceneviva (2003, pág 35) entende a cidadania como a “possibilidade do exercício dos direitos civis, de acordo com a lei, sendo um dos fundamentos da Nação”.
Para Silva (2009, pág 154), a cidadania insculpida na Constituição de 88, “está aqui num sentido mais amplo do que o de titular de direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento do individuo como pessoa integrada na sociedade”. Aqui, já podemos observar uma evolução no conceito de cidadania, pois não vê o cidadão apenas em relação a sua capacidade de votar e ser votado, mas o reconhece como pessoa integrada a sociedade. Dallari (2007, pag 101), trata a cidadania como atributo e sua
“aquisição depende sempre das condições fixadas pelo próprio Estado, podendo ocorrer com o simples fato do nascimento em determinadas circunstâncias, bem como pelo atendimento de certos pressupostos que o Estado estabelece. A condição de cidadão implica direitos e deveres que acompanham o indivíduo mesmo quando se ache fora do território do Estado”.
Bittar (2004, pág 8), inicialmente, traz á tona um conceito tradicional de cidadania em que consistia “ser parte de um Estado soberano, cuja adesão lhe concede certo status, bem como votar e poder ser votado”. Entretanto ele se afasta dessa definição que considera apenas funcional para tratá-la de forma ampliada, ou seja, ele alarga sua significação. Assim, diz ele:
“A ampliação dos horizontes conceituais da idéia de cidadania faz postular, sob este envólucro, a definição de uma realidade de efetivo alcance de direitos materializados no plano do exercício de diversos aspectos da participação na justiça social, de reais práticas de igualdade, no envolvimento com os processos de construção do espaço político de ter voz e de ser ouvido, da satisfação de condições necessárias ao desenvolvimento humano, do atendimento a prioridades e exigências de direitos humanos etc. Deve-se, portanto superar a dimensão acrisolada do tradicionalismo que marca a concepção conceitual de cidadania, para a superação de suas limitações e deficiências. No lugar da clausura conceitual tradicional, alargando-se a experiência e o sentido histórico-genético que possuía o termo em seu princípio, o que se propõe é a expansão do sentido em direção às fronteiras das grandes querências sociais, dos grandes dilemas da política contemporânea, dos grandes desafios histórico-realizativos dos direitos humanos”.
Em conformidade com essa nova visão de cidadania, encontra-se, ainda, o pensamento de Dagnino (apud Jacobi, 2000), pra ele:
“a nova dimensão da cidadania inclui, de um lado, a formação de cidadãos enquanto sujeitos sociais ativos e, de outro, para a sociedade como um todo, um aprendizado de convivências com esses cidadãos emergentes que recusam permanecer nos lugares que lhes foram definidos social e culturalmente”.
Por fim, destacamos uma definição de cidadania em que o autor enfoca a questão dos direitos e deveres. Para Nabais (2005, pag 119):
“a cidadania pode ser definida como a qualidade dos indivíduos que, enquanto membros ativos e passivos de um Estado-nação, são titulares ou destinatários de um determinado número de direitos e deveres universais e, por conseguinte, detentores de um específico nível de igualdade.
Então, se esse Estado-nação, para sobreviver e cumprir suas funções perante a população, depende de recursos retirados da própria população, necessário se faz, que esses contribuintes sejam esclarecidos sobre essa atividade tributária e alocativa do Estado, para poderem participar ou questionar a aplicação dos recursos públicos. Ainda, se sensibilizarem e cobrar providências legais em relação a desvios e má utilização desses recursos, pois afinal de contas é uma parte do trabalho, do esforço pessoal de cada cidadão que está sendo entregue ao Estado para ser gerido em prol da coletividade.
O nosso entendimento de cidadania não se coaduna com o daqueles doutrinadores que somente a entendem no seu aspecto político, ou seja, aquele do cidadão que somente exerce sua cidadania através do voto. Nossa visão sobre esse atributo conferido pelo Estado é no sentido de que ele somente pode ser exercido plenamente quando se tem reconhecido seus direitos civis, políticos e sociais plenamente.
Quando não se tem garantidos por completo esses direitos, temos uma situação que Nabais (2005, pág. 124) denomina de subcidadania. Para esse autor, embora essa descidadania “seja de todo inadmissível, como vimos, no concernente à titularidade da cidadania, se revela em sede da efetiva capacidade de exercício da cidadania. Com efeito, é a insuficiência ou ausência desta capacidade de exercício que leva às múltiplas e variadas formas de “descidadania” efetiva dos nossos dias, ou seja, às bem conhecidas formas de exclusão social”.
Assim, entendemos que, em uma nação na qual vige o Estado de Direito e onde todos contribuem para manter os serviços públicos através do pagamento de tributos, essas formas de “descidadania” devem ser extintas. Pois, sendo garantidos todos os direitos aos cidadãos. Portanto, a falta de cidadania deixa o povo carente de um componente essencial da cidadania que a participação.
A cidadania pode ser definida como a qualidade dos indivíduos que, enquanto membros ativos e passivos de um Estado – nação, são titulares ou destinatários de um determinado número de direitos e deveres universais e, por conseguinte, detentores de um específico nível de igualdade (NABAIS, 2005).
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu parágrafo único do art. 1º, assim expõe: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Assim, na explicação de Dezen Jr. Apud Silveira (2002, pág. 37) “cidadão, no caso brasileiro, é a parcela do povo que é titular de capacidade eleitoral ativa, ou seja, do poder de votar e do poder de interferir nas decisões políticas e na vida institucional do Brasil, direta ou indiretamente, como prevê a Constituição”.
Este conceito de cidadania é excludente, tendo em vista que, os menores de 16 anos e estrangeiros, por exemplo, seriam excluídos por não possuírem capacidade eleitoral ativa, mas é de suma importância ressaltar que o fator político é um dos elementos da cidadania, e não o único.
A cidadania, segundo Marshall, é composta de três elementos: civil; social e político. Assim, Marshall apud Silveira (2002, pág. 38), traz a definição desses elementos, quais sejam:
“O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. Este último difere dos outros porque é direito de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com os outros e pelo devido encaminhamento processual. Isto nos mostra que as instituições mais intimamente associados com os direitos civis são os tribunais de justiça. Por elemento político se deve entender o direito de participar do exercício do poder político, como um membro de um organismo investido de autoridade política ou como um eleitor dos integrantes de tal membros. As instituições correspondentes são o parlamento e Conselhos de Governo local. O elemento social se refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. As instituições mais intimamente ligadas a ele são o sistema educacional e os serviços sociais.
Enfim, o exercício da cidadania, no seio da sociedade, não pode ser apenas identificado pelo direito de votar e ser votado, como no caso brasileiro, pois, conforme pondera Silveira (2002, pág. 39) “ser cidadão é ser capaz de cumprir obrigações perante à sociedade da qual se faz parte, bem como exigir seus direitos”. Portanto, o que importa é o comportamento do indivíduo na sociedade.
Apesar de nossa Constituição ser taxada de cidadã, ainda estamos longe de alcançar uma efetiva cidadania, pois há várias injustiças e desigualdades sociais, haja vista para o fato de que a cidadania, no Brasil, ter um caráter assistencialista.
Se a Constituição evoluiu nos direitos civis e políticos, tendo em vista as garantias individuais e a participação no governo, o mesmo não se pode dizer quanto aos direitos e garantias sociais, pois a violência urbana cresce; o desemprego; o acesso à saúde; moradia.
Nas palavras de TOSI (2005, pág. 35), “convive-se ao mesmo tempo com a existência de amplas liberdades democráticas e de amplas desigualdades sociais”. Segundo Dallari (2004, pág. 47) os objetivos econômicos do neoliberalismo brasileiro, presentes na carta magna como por exemplo a garantia do lucro ilimitado e a integralidade do direito de herança, privilegiam os interesses privados em detrimento dos interesses públicos, e por tal razão, o exercício pleno da cidadania de algumas categorias esbarra sempre na indiferença dos setores econômicos dominante
Por outro lado, a educação, para cidadania, deveria ter surgido concomitantemente ao exercício da prática democrática. Supostamente, as discussões políticas na esfera cotidiana teriam o condão de afetar as decisões coletivas tomadas na arena política. Mas, ao contrário do esperado, a apatia política atinge até mesmo democracias mais consolidadas.
A cidadania, embora alguns restrinjam a partir da atribuição do direito de votar e ser votado exige a participação individual nas decisões coletivas e na luta pelo reconhecimento de direitos sociais. Assim, a cidadania, então, deixa de vincular-se exclusivamente à participação política, para alcançar, acima de tudo, o comportamento do indivíduo no seio da sociedade.
REFERÊNCIAS
BITTAR, Eduardo C. B. Ética, educação, cidadania e direitos humanos. Manole, Barueri, 2004.
CARVALHO, José Murilo de, 1939- Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo de Carvalho. – 14ª Ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
CERQUIER-MANZINI, Maria de Lourdes O que é cidadania / Maria de Lourdes Cerquier-Manzini. – 4. Ed. – São Paulo : Brasiliense, 2010. – (Coleção Primeiros Passos; 50).
DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. Moderna, São Paulo, 2004.
DALLARI, Dalmo de Abreu, 1931- Elementos de teoria geral do Estado / Dalmo de Abreu Dallari. – 27. Ed – São Paulo : Saraiva, 2007.
JACOBI, Pedro. Políticas sociais e ampliação da cidadania. Rio de Janeiro: FGV.
NABAIS, José Cassalta. Solidariedade social, cidadania e direito fiscal. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (coords.). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 110-140.
SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo / José Afonso da Silva – 33. Ed – São Paulo : Malheiro editores, 2009.
SILVEIRA, Rogério Zanon de. Tributo, educação e cidadania: a questão tributária no ensino fundamental como fator de desenvolvimento da cidadania participativa no Brasil. 2. Ed. Vitória: Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 2002.
TOSI, Giuseppe. Direitos humanos: história, teoria e prática. Editora Universitária, João Pessoa, 2005.
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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