A questão principal na qual se fundamentará o presente estudo reside no confronto demandado pelo servidor público entre as normas que preveem a jornada especial de trabalho e a disposição da Lei nº 8.112/90, Estatuto do Servidor Público Federal, que assim preconiza em seu artigo 19:
Art.19. Os servidores cumprirão jornada de trabalho fixada em razão das atribuições pertinentes aos respectivos cargos, respeitada a duração máxima do trabalho semanal de quarenta horas e observados os limites mínimo e máximo de seis horas e oito horas diárias, respectivamente.
§ 1o O ocupante de cargo em comissão ou função de confiança submete-se a regime de integral dedicação ao serviço, observado o disposto no art. 120, podendo ser convocado sempre que houver interesse da Administração.
§2o O disposto neste artigo não se aplica a duração de trabalho estabelecida em leis especiais.
Esse tema, que requer cauteloso exame, é alvo de diversos processos administrativos e judiciais no âmbito da Administração Pública e do Poder Judiciário. Trata-se de particular, servidor público, que postula perante a Administração ou Poder Judiciário, carga horária diferenciada, fundamentando o seu pedido em norma especial regulamentadora do exercício da sua profissão específica.
Cabe dizer que a Administração Pública Federal, no tocante a matéria ora tratada, possui como regulamento interno as Portarias da Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão nº 1.100/2006 e nº 3.353/2010 que versam a respeito da relação dos cargos cuja jornada de trabalho é inferior a quarenta horas semanais, além de elencar os cargos públicos, a sua jornada correspondente e a legislação aplicável.
É de bom alvitre destacar que a determinação da jornada laboral dos profissionais junto ao serviço público, ainda, é alvo de intensos debates, não só no âmbito do Poder Executivo Federal (Ministério do Planejamento), como também na seara do judiciário (STJ, TST, varas federais), onde se revelam diversas decisões em sentido diametralmente opostos.
O ponto de divergência se consubstancia na questão de qual jornada de trabalho será aplicável aos profissionais/servidores públicos federais: 40 (quarenta) horas, em vista da previsão do artigo 19 da Lei nº 8.112/90 (Estatuto do Servidor Público) ou a jornada de trabalho especial definida por lei?
Depois de acurada pesquisa junto à doutrina especializada, se extrai que paira manifesta divergência de entendimento entre doutrinadores e juristas, haja vista a alguns defenderem a fixação da jornada de 40 horas e outros a carga específica para a carreira fixada por lei ou por regulamento.
Assim, observa-se que a previsão do § 2º do art. 19 da Lei nº 8.112/90, alude também à lei especial. Daí se vê que uma lei geral, destinada a regular determinado seguimento de trabalhadores sujeitos às regras próprias da atividade privada – a exemplo das Leis nº 8.662/94 e 12.317/2010, que tratam dos empregados Assistentes Sociais-, não tem força normativa suficiente para disciplinar o regime de duração de trabalho de servidores públicos.
Do quanto se vem aludir, é legítimo concluir que os servidores públicos federais ocupantes de cargos específicos – estejam ou não no efetivo exercício das atribuições de seus cargos – não fazem jus à jornada de trabalho especial prevista em lei ou regulamento, visto que o art. 19 da Lei nº 8.112/90 franqueia à Administração Pública Federal a possibilidade de alterar, de acordo com seus critérios de conveniência e oportunidade, as jornadas de trabalho dos servidores em razão das atribuições inerentes aos respectivos cargos.
Este raciocínio, como se pode constatar das pesquisas enveredadas, sempre predominou entre os órgãos jurídicos de consultoria jurídica da Administração Pública Federal, de modo que, em pronunciamento mais recente (maio de 2011) por meio de manifestação jurídica da Consultoria Jurídica do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, no sentido de que a legislação especial das categorias profissionais aplica-se às relações profissionais de âmbito privado, devendo, em se tratando da jornada de servidores públicos, serem invariavelmente aplicados os preceitos da Lei nº 8.112/90, mais precisamente, seu artigo 19.
Assim, sob a ótica jurídica, as regras sobre remuneração e jornada de trabalho contidas nas legislações de determinadas categorias profissionais, aplicar-se-ão única e exclusivamente para as relações privadas, regidas pela CLT, restando aos servidores públicos, no geral, o amparo da Lei nº 8.112/90, seu Estatuto.
Da discrepância entre os entendimentos jurídicos e técnicos sobre o assunto, este estudo optou por coadunar com o entendimento esposado pelo Departamento de Orientação e Coordenação de Órgãos Jurídicos da Consultoria Geral da União – DECOR/CGU, que por meio da Nota DECOR/CGU/AGU nº 337/2008-MCL, aduziu que:
(...)
Embora o cerne da questão analisada tenha sido os servidores públicos, ocupantes de cargo de natureza jurídica, verifica-se a possibilidade de aplicação desse mesmo entendimento a outras categorias profissionais a partir da seguinte afirmação:
Essa matéria possui relevância suficiente para constituir-se em farta jurisprudência cristalizada com a acepção de que o horário de trabalho e o salário mínimo estabelecido para as categorias que exercem a profissão regulamentada inaplicam-se aos servidores públicos...”
Com isso, quanto ao horário de trabalho e à remuneração dos servidores públicos civis federais, as normas estatutárias prevalecem sob aquelas instituídas para as categorias que exercem profissão regulamentada.
Neste sentido, o que se vislumbra, da leitura do que foi acima reproduzido, é que a resolução apresentada pelo órgão aludido acima foi dotada de generalidade, abrangendo todo a gama de servidores públicos, cujas profissões estavam regulamentadas em legislação especial, como exemplificativamente, médicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, radialistas e todas as demais apontadas nas normas e regulamentos especiais.
Destarte, consoante a Nota/DECOR/CGU/AGU nº 337/2008-MCL, do Parecer nº GQ-24/AGU, aprovado pelo então Presidente da República, se extrai a ilação de que:
“[...] quanto ao horário de trabalho e à remuneração dos servidores públicos civis federais, ficou assentado que as normas estatutárias prevalecem sob aquelas instituídas para as categorias que exercem profissão regulamentada. Logo, embora o cerne da questão analisada tenha sido em relação aos servidores públicos, ocupantes de cargo de natureza jurídica, verifica-se a possibilidade de aplicação desse mesmo entendimento a outras categorias profissionais.”
Nessa compreensão, as normas que, especialmente, tratem de profissões específicas, serão apenas aplicadas aos profissionais da iniciativa privada, não incidindo sobre aqueles integrantes do serviço público federal, que estariam regidos pela Lei nº 8.112/90.
A propósito, válida a leitura da lição de Ivan Barbosa Ricolin5[1], que, ao comentar o artigo 19 da Lei nº 8.112/90, aduz:
Seja como for, e ainda no § 2º, haverá de ser alguma lei de âmbito e escopo exclusivamente federal, destinada aos servidores federais, independentemente do que disponha cada lei nacional regulamentadora de profissão, a fixadora de horários diferentes de quarenta horas semanais para os servidores federais. Essa legislação precisará dispor, expressamente, sempre que a carga horária deste ou daquele cargo federal seja diferente de quarenta horas semanais.
Quer-se significar que a lei que crie os cargos, ou outra ainda se a eles referente, precisa prever-lhe a carga horária, sempre que for diferente daquela norma, prevista neste art. 19.
Não se aplica o horário eventualmente estabelecido na legislação trabalhista disciplinadora de profissões aos servidores submetidos ao regime estatutário, mas tão-somente a trabalhadores celetistas ou empregados da iniciativa privada.
Outro não é o entendimento do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, que firmou a sua jurisprudência no sentido de que as regras sobre jornada de trabalho previstas na legislação trabalhista ordinária não se aplicam aos servidores públicos regidos pela Lei nº 8.112/90, como se pode observar da análise do seguinte julgado:
RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA. DEMONSTRAÇÃO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. REGIME JURÍDICO ÚNICO. JORNADA DE TRABALHO. ART. 19 DA LEI 8.112/90.
1. Os servidores públicos deverão cumprir jornada de trabalho que terá um mínimo de seis e um máximo de oito horas diárias, estando a fixação dessa carga horária adstrita ao interesse da Administração Pública, levando-se em conta critérios de conveniência e oportunidade, em prol do interesse público, restando superada, com a edição da Lei 8.112/90, a aplicação da Consolidação das Leis do Trabalho. Precedentes.
2. (...)
3. Recurso especial não conhecido.
(REsp 389306/PR, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 6ª Turma, j. em 15.10.2002, DJ de 04.11.2002, p. 276 – sem grifos no original)
Observe-se ainda, que, em caso similar, ao se manifestar sobre a Lei nº 8.856/1994, que regulamenta a jornada de trabalho do terapeuta ocupacional na iniciativa privada, decidiu o Tribunal Regional Federal da 5ª Região sobre a inaplicabilidade daquela lei aos servidores do INSS com aquela especialidade, tendo em vista a especificidade do regime jurídico estatutário dos agentes públicos previsto na Constituição Federal, como se pode observar do seguinte excerto:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR DO INSS. ANALISTA DO SEGURO SOCIAL. TERAPEUTA OCUPACIONAL. JORNADA DE TRABALHO.
01. Caso em que o agravado (analista do Seguro Social com formação em Terapia Ocupacional do INSS), em sede de mandado de segurança, obteve liminar na qual lhe restou assegurado à redução de jornada de trabalho de 8h para 6h/diária, totalizando 30h/semanais, sem redução em sua remuneração ou vencimentos, nos termos do artigo 1º da Lei 8.856/94 e artigo 19 da Lei 8.112/90.
02. Entretanto, os servidores do INSS, titulares de cargos de analista do seguro social, mesmo que com formação na área de terapia ocupacional, como é o caso da agravada, encontram-se submetidos ao regime jurídico específico dos servidores do Estado, estabelecido pela Lei n. 8.112/90, e lei extravagantes, e, em consequência, à carga semanal de trabalho a que se refere o artigo 19 do citado Diploma Legal (quarenta horas semanais) acima transcrito, de modo que não pode pretender alterar a carga horária, com base em legislação genérica, quando existente lei específica.
03. A Lei 8.856/94, que estabelece o regime de trabalho diferenciado com carga horária máxima de 30h/semanais para a categoria dos Terapeutas Ocupacionais não atinge o serviço público, mas tão-somente os empregados ou terapeutas ocupacionais na condição de profissional liberal, que não é a hipótese dos autos.
04. De resto, quando muito, diante da previsão contida no § 1º do artigo 4-A da Lei n. 10.855/04 com a redação dada pela Lei n. 11.907/09, poderia a servidora individualmente fazer opção pela redução da carga horária para 30 (trinta) horas semanais, com redução proporcional dos vencimentos.
05. Agravo de instrumento provido.
(AGTR - 105011/PE - 0003249-31.2010.4.05.0000, Rel. Des. Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima, 3ª Turma, j. em 29.07.2010, decisão unânime).
Diante de todas as razões expostas, lastreadas em sólido entendimento doutrinário e jurisprudencial, este trabalho conclui pela inaplicabilidade de lei ou regulamento específico sobre jornada de trabalho de servidor público na Administração Pública Federal, vez que estas normas não se aplicam aos servidores públicos federais, mas somente à iniciativa privada regida pelas regras e princípios do Direito do Trabalho.
Por fim, diante do entendimento pela aplicação, aos servidores públicos civis da Administração Pública Federal, da Lei nº 8.112/90, conclui-se que desde a edição da mencionada norma - que trata sobre regime de servidores públicos federais -, a jornada de trabalho estipulada é de 40 horas semanais e só pode ser alterada por lei de iniciativa do Presidente da República.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Advocacia Geral da União/Consultoria Geral da União. Nota DECOR/CGU/AGU nº 337/2008-MCL.
_______. Lei nº 8.112/91. In: Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2009.
_______. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Portarias da Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão nº 1.100/2006 e nº 3.353/2010.
_______. Superior Tribunal de Justiça. REsp 389306/PR, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 6ª Turma, j. em 15.10.2002, p. 276, Disponível em http://www.stj.gov.br> e DJ de 04.11.2002.
_______. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. AGTR - 105011/PE - 0003249-31.2010.4.05.0000, Rel. Des. Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima, 3ª Turma, j. em 29.07.2010, decisão unânime. Disponível em http://www.trf5.jus.br>.
RICOLIN, Ivan Barbosa. Comentários ao Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 68-69.
[1] RICOLIN, Ivan Barbosa. Comentários ao Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 68-69.
Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR, Pós-Graduado em Direito Público na Universidade de Brasília - UnB. Foi Coordenador Jurídico da União dos Vereadores do Estado do Ceará - UVC. Atualmente é Procurador Federal da AGU, ocupou o cargo de Coordenador-Geral da CGF - Coordenação-Geral de Assistência Jurídica à Regularização Fundiária na Amazônia Legal da Procuradoria Federal Especializada do INCRA. E hoje ocupa o cargo comissionado de Procurador-Chefe Substituto da Procuradoria Federal da Agência Espacial Brasileira - AEB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PORTELA, Bruno Monteiro. Lei nº 8.112/90 versus Lei Específica de Categoria Profissional - Jornada de Trabalho do Servidor Público Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 abr 2012, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/28434/lei-no-8-112-90-versus-lei-especifica-de-categoria-profissional-jornada-de-trabalho-do-servidor-publico-federal. Acesso em: 23 dez 2024.
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