Resumo: O presente artigo procurou trabalhar, com base em teorias sociológicas e sócio-jurídicas relevantes, um caso de desclassificação de homicídio no trânsito, ocasionado por alcoolemia do motorista responsável, de doloso para culposo, cristalizado na forma da decisão dada ao Habeas Corpus nº 107.801, no Supremo Tribunal. Procurou determinar algumas causas dos problemas no trânsito a partir de uma visão teórica heterogênea, mas coerente. Buscou-se mostrar, numa perspectiva crítica e construtiva, alguns aspectos do sistema prisional brasileiro sob a ótica de autores clássicos como Foucault e Deleuze. Por fim, realiza-se uma análise cuidadosa da decisão proferida pelo tribunal, mostrando sua pertinência ou não no contexto atual de nossa comunidade jurídica.
Palavras-chave: homicídio, trânsito, Direito, decisão judicial.
Abstract: This present article has tried to work, based on relevant sociological and socio-juridical theories, a case of disqualification of murder in traffic caused by the alcoholemy of the responsible driver, crystallized in the form of the decision given to the Habeas Corpus nº. 107.801 of the Supreme Court. Sought to determine some causes of traffic problems from a theoretical view heterogeneous but coherent. Tried to show a critical and constructive aspects of the Brazilian prison system from the perspective of classical authors such as Foucault and Deleuze. Finally, made a careful analysis of the decision issued by court, showing their relevance or not in the current context of our juridical community.
Keywords: murder, traffic, law, judicial decision.
1 Considerações iniciais: problema, caso e teorias
No ano de 2007, houve uma média de 7,6 pessoas mortas por hora no trânsito brasileiro; por dia, a cifra foi de 183 pessoas[1]. Grande parte dessas mortes se originou em acidentes envolvendo motoristas embriagados. No presente artigo, explicitarei, à luz de algumas teorias clássicas da Sociologia, em especial da Sociologia Jurídica, adotando como ponto de partida um desses inúmeros casos de homicídio no trânsito, determinadas relações que estão no cerne desse problema pertinente ao trânsito brasileiro. O caso se trata da desclassificação em decisão do Supremo Tribunal Federal de um homicídio cometido no trânsito em razão de embriaguez de doloso para culposo, caso este que teve muita repercussão e que merece ser analisado.
No entanto, antes de adentrar nos caminhos teóricos de análise do caso descrito, explicitando-lhe as causas e discutindo sobre as decisões aferidas, gostaria de fazer uma ressalva quanto às teorias aqui apresentadas: não formam, de maneira alguma, um toldo homogêneo; aqui, trarei autores que possuem muitas divergências, pertencendo, em alguns casos, inclusive a campos opostos do pensamento sociológico, como Marx e Durkheim. Mas isso não coloca suas teorias como mutuamente excludentes, ao menos não em todos os pontos; algumas de suas categorias podem ser aplicadas sem que isso implique em uma escolha de posicionamentos mais gerais. Escolhi aqui não adotar uma posição cerrada, não me filiando a nenhuma corrente sociológica mais marcadamente. Não tenho pretensão de uniformizar a sociologia, fundindo teorias das mais diferentes. Pelo contrário, tendo em vista que o essencial deste artigo é o caso tratado, as visões que expressarei sobre ele serão múltiplas e versáteis, muitas vezes de confronto entre autores. As aproximações, quando possíveis, serão feitas no limite do aceitável, sem que haja comprometimento das teorias aplicadas.
Creio que no caso estudado, algumas teorias de cunho sócio-jurídico possam nos trazer clareza quanto à forma como lidamos com o trânsito. Durkheim, Marx, Foucault, Deleuze, Beck, Habermas, Luhmann e Dworkin são autores que, embora contrastantes em muitas questões, apresentam contribuições relevantes sobre as formas de organização das sociedades e sobre as formas como o Direito interfere. No que concerne ao problema do trânsito, detive-me em alguns pontos estritos de suas doutrinas. Antes de expor-los, farei uma descrição mais detalhada acerca do caso.
2 Descrição do caso[2]
O caso que analisei se trata do homicídio da aposentada Eliete Alves de Oliveira e dos desdobramentos resultantes dele, que chegaram até a instância do Supremo Tribunal Federal (STF) através do Habeas Corpus nº 107.801. Nessa primeira etapa, farei uma breve descrição dos fatos, nos termos do inquérito policial acerca do evento, e apresentarei um resumo das etapas e instâncias dos processos de recursos da defesa até a decisão final do STF.
Segundo consta nos documentos do inquérito policial sobre o caso, na manhã do dia 19 de junho de 2002, no cruzamento da Rua Presidente Vargas com a Rua 13 de Maio, na cidade de Pradópolis – SP (Comarca de Guariba/SP), a vítima caminhava pelas citadas ruas quando foi atropelada por uma camioneta modelo GM D-20, de placa BZC – 2488, vindo, em decorrência dos ferimentos sofridos, a falecer.
O motorista do veículo no momento do acidente era Lucas de Almeida Menossi. De acordo com os autos do inquérito, ele estava em estado comprovado de embriaguez alcoólica, considerando-se, assim, que o mesmo assumiu o risco de causar a morte à vítima ao conduzir nesse estado o automóvel em via pública. Além disso, a vítima, que por prescrição médica praticava caminhada no local, foi atingida de forma súbita, não possuindo nenhuma chance de se defender ou se desviar do caminho do veículo. A peça acusatória admitiu que Menossi agiu com ânimo homicida.
Resultante disso, em junho de 2004, o juízo da Vara Única da Comarca de Guariba pronunciou Menossi por ter praticado crime de homicídio qualificado, conforme art. 121, § 2º, inc. IV, c/c o art. 18, inc. II, 2ª parte, do Código Penal. A defesa do acusado interpôs então recurso estrito no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que, em outubro de 2006, acatou o recurso, mas apenas para mudar a classificação do delito para homicídio enquadrado dentro do art. 18, inc I, 2ª parte (“doloso quando o agente [...] assumiu o risco de produzi-lo”), entendendo que, conforme foi exposto da pauta inquisitorial, o acusado assumiu o risco de produzir a morte.
Frente a isso, a defesa impetrou o Habeas Corpus nº 94916, no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Reclamava que o homicídio fosse considerado não a título de dolo eventual, mas sim como culpa consciente, uma vez que “ainda que presentes a autoria e a materialidade do delito, em nenhum momento o paciente consentiu que o evento morte fosse produzido, não havendo a presença do elemento volitivo consistente em assumir o risco de produzir o resultado, em aceitá-lo a qualquer custo, o que é imprescindível para a configuração do dolo eventual”. Considerava, assim, mais adequada a classificação do delito dentro do art. 302, inciso V, do Código de Trânsito Brasileiro, que tipificava a embriaguez em homicídio culposo no trânsito (incluso pela Lei nº 11.275/06, mas revogado posteriormente pela lei 11.705, de 2008).
Em novembro de 2009, a Quinta Turma do STJ denegou a ordem. A seu ver, a desclassificação do delito exigiria aprofundado exame do complexo probatório, pois envolveria análise da conduta do paciente, o que não somente não caberia em ação de Habeas Corpus como também estava dentro da competência da Corte Popular que julgou o caso, não podendo ser realizada pelo STJ. Para o Ministro Jorge Mussi, responsável pelo relatório, a questão quanto ao elemento subjetivo de intencionalidade, concernente à distinção entre dolo eventual e culpa consciente, envolve intensos debates doutrinários, não cabendo àquela instância determiná-lo.
Contra o acórdão do STJ, a defesa interpôs o Habeas Corpus nº 107.801, agora no STF. O teor do writ era o mesmo do apresentado ao STJ. O parecer da Procuradoria Geral da República sobre a questão e, depois, o voto da Ministra-relatora, Cármen Lúcia, ratificavam a decisão do STJ, reafirmando principalmente a impossibilidade de análise pelo STF da conduta de Menossi, porque exigiria reexame do conjunto probatório. Denegou-se a ação, determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP. Diante disso, o Ministro Luiz Fux pediu vista do processo. Afirmou em seu voto-vista que
Tal desclassificação, se omitida indevidamente, importa em graves consequências para a defesa, deslocando o processo ao Júri, cujo julgamento é sabidamente atécnico e, às vezes, até mesmo apaixonado, a depender do local onde ele ocorra.
Essas implicações potencializam-se ainda mais no caso sub judice, em que as diferenças de penas entre um e outro crime são gritantes.
Para se ter uma ideia, a diferença da entre as penas mínimas do crime de homicídio qualificado (12 anos) e do homicídio culposo em direção de veículo automotor (2 anos) é de 10 anos.
Outrossim, observa-se atualmente, de um modo geral, seja nas acusações seja nas decisões judiciais, certa banalização no sentido de atribuir-se aos delitos de trânsito o dolo eventual, o que se refletiu no caso em exame.
Frente a isso, ele concebeu a desclassificação como válida. Baseou-se nas doutrinas de Guilherme de Souza Nucci, Rogério Greco, Zaffaroni, Pierangeli, dentre outros, que mostraram argumentos pertinentes sobre a existência de dolo ou não nos casos de morte no trânsito decorrente de embriaguez. O Ministro, a partir dessas teorias, asseverou que só é crime doloso se a ingestão de álcool ou substância análoga tiver sido intencionalmente realizada para a prática do ato ilícito; se foi apenas embriaguez eventual, não é dolo. A admissão de risco de o delito ocorrer não é suficiente para classificar esse delito como intencional, pois, segundo ele, não bastaria essa incerteza do evento acontecer, sem que houvesse uma implicação volitiva. Se o agente prevê o resultado como possível ou provável, mas não o aceita ou consente, não é dolo.
Além disso, contrariando o relatório da Ministra Carmen Lúcia, considerou que o exame da questão não configurava revolvimento do complexo probatório, mas sim uma “revaloração dos fatos postos nas instâncias inferiores”, o que a via do Habeas Corpus permitiria.
Concedeu então, no que recebeu adesão de maioria da Primeira Turma, o Habeas Corpus nos termos colocados pelos impetrantes, desclassificando o homicídio de doloso para culposo, incluindo-o no art. 302, caput, do CTB. Não anuiu, contudo, com a aplicação pedida pelos impetrantes da lei 11.275/06, tendo em vista que ela não era mais favorável à defesa, conquanto aumentava a pena prevista para o crime (tratava-se da inclusão do caso no inciso V do art. 302 do código citado).
Feita a descrição, passemos à análise do caso.
3 Indiferença: por que o Direito surgido da interdependência não tem funcionado?
É preciso, antes de tudo, tentar encontrar algumas possíveis explicações para o fato de que a espécie de homicídio relatado ter se tornado cada vez mais comum em nossa sociedade. Por “comum” não apenas quero dizer freqüente, como também cotidiano, corriqueiro: há uma progressiva banalização desse tipo de crime que assusta e intriga. Por que os homicídios no trânsito têm se multiplicado dessa forma? Como foi que chegamos a uma sociedade que trivializa o crime?
Entendo que existe uma forte relação entre esses fatos e o desenvolvimento da indiferença como resultado do processo de especialização. Como mostra Durkheim, a especialização e a divisão do trabalho levam a um declínio da consciência coletiva em favor da consciência individual, que se torna cada vez mais forte. Nesse processo, as normas morais, que antes regiam a sociedade e que contavam com aquiescência imediata e inconsciente, decaem. Os indivíduos, mais livres, dissolvem-se na multiplicidade da sociedade que está se formando e, uma vez libertos do julgo do consciente comum, desenvolvem uma crescente indiferença em relação à comunidade e aos que dela fazem parte. Os interesses são plurais e divergentes, ninguém mais se atém ao que os outros estão fazendo, pensando ou sentindo. Não há tempo ou disposição para vigiar (ou zelar) a vida de outrem. A vigilância comunitária se perde nas garras da individualização (DURKHEIM, 1988).
Mas para Durkheim (e nesse ponto discordo de sua teoria), a indiferença é suprida pelo surgimento do Direito e pela interdependência que obriga o seguimento deste. Uma vez que as normas morais entraram em decadência, fez-se necessária uma nova forma de solidariedade, uma nova moral, que permitisse a manutenção da sociedade. Na visão do autor, trata-se exatamente dessa interdependência, gerada no próprio processo de especialização e de substituição das divisões segmentares pelas funcionais. Como coloca, uma vez desaparecido o tipo segmentar
O homem deixaria de estar suficientemente condicionado, deixaria de sentir em volta dele e acima dele essa pressão salutar da sociedade que modera o seu egoísmo e que faz dele um ser moral. Eis aquilo que faz o valor moral da divisão do trabalho. É que, por ela, o indivíduo retoma a consciência de seu estado de dependência face à sociedade; é dela que provêm as forças que o detém e o contêm. (DURKHEIM, 1988, p. 198 - grifo meu)
O Direito surge, então, como regulador dessa nova forma de sociedade. As normas prescritas por ele são seguidas pelo reconhecimento da necessidade de permanecer em sociedade. É nessa questão, correlacionada ao trânsito, que a teoria de Durkheim se demostra lacunosa.
O trânsito é uma esfera da vida social. Usando uma terminologia durkheimiana, cada indivíduo que atua nela é como um órgão não-autônomo, dependente dos outros órgãos (motoristas, ciclistas, pedestres, etc.) para alcançar seu objetivo, que é o deslocamento. Há, naturalmente, uma nítida indiferença entre esses muitos órgãos: não há vínculos fortes entre os indivíduos, cada qual em seu meio de transporte, preocupados apenas que os outros não lhes impeçam de prosseguir. Segundo Durkheim, a interdependência existente seria suficiente para forçar o cumprimento das normas jurídicas, incluindo as que regem o trânsito. O que se percebe é o oposto: a indiferença se sobrepõe (não de forma excepcional, mas sim frequentemente), e a devida observância das normas jurídicas não é respeitada.
É isso que o caso analisado, bem como as estatísticas, nos ensinam: a impassibilidade, a despreocupação com a vida e com o bem-estar dos outros no trânsito, tem levado ao não cumprimento das normas. O autor do crime escolheu não obedecer a regra que proíbe dirigir em estado de alcoolemia: seja com dolo eventual ou com culpa consciente, ele se mostrou indiferente quanto aos efeitos que suas ações provocariam. A indiferença também explica o porquê da banalização: as pessoas, imersas num mundo de individualidades, não mais se importam com o que acontece aos outros; os crimes cometidos perdem importância.
4 Posição marxista: alienação como causa?
Com Marx, também pode se explicitar outro aspecto, uma outra explicação possível para a ocorrência do delito: a oposição entre interesse particular e interesse coletivo.
A visão de Marx sobre essa dicotomia coletivo/individual tem enfoque diferente da de Durkheim. Para Marx a divisão do trabalho contribui para o surgimento da alienação, caracterizada pela contradição entre interesse individual e interesse da coletividade (MARX, 2001, p. 28-30).
Na visão marxista, em um primeiro momento, a divisão do trabalho se dá de forma voluntária, cooperativa. Na medida em que prossegue, no entanto, ela torna-se natural, os homens já não mais reconhecem a sua livre vontade expressa em sua origem[3]. É nesse ponto que, então, o interesse individual, antes identificado com o coletivo, passa a se opor a ele. O poder social, fundado a partir desse interesse coletivo, é formalizado na qualidade de Estado, que passa a ser algo com o qual o indivíduo não se reconhece como parte integrante, mas sim “uma força estranha, que a ele se opõe e o subjuga” (MARX, 2001, p. 28). É o que Marx denomina alienação.
Esse juízo marxista acerca da oposição entre interesse coletivo e interesse individual me parece aplicável à questão aqui retratada. O ato de dirigir embriagado é claramente uma atitude que privilegia um interesse individual, em detrimento de todos os outros interesses implicados na questão. O autor do crime não ponderou acerca dos efeitos que poderia vir a causar com sua atitude; não levou em consideração o interesse da coletividade de manter um trânsito seguro, sem mortes e fatalidades. Como admite Marx, “os indivíduos só procuram o seu interesse particular” (MARX, 2001, p.30). Atitude egoística, com sérias conseqüências.
5 Trânsito e a falência da Sociedade de Disciplina: vamos abolir os confinamentos?
A forma como temos lidado com as punições aos criminosos também pode nos dizer muito a respeito do caso em questão.
No dizer de Renato Russo, ícone do rock brasileiro da década de 1980, “ninguém vê onde chegamos: os assassinos estão livres, nós não estamos”. São versos que refletem uma contextura perceptível nas últimas décadas do século XX e atualmente, mas que, de certa forma, já havia sido descortinada e prevista por Michel Foucault quase cem anos antes: a falência da sociedade disciplinar e, consequentemente, dos sistemas penais por ela moldados. Como disse Gilles Deleuze, acerca dessa crise da disciplina após a Segunda Guerra Mundial, “sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser”. (DELEUZE, 1990)
A frase de Russo explicita a ambivalência das disciplinas no contexto atual: por um lado, falham nos confinamentos prisionais, que não asseguram a ressocialização prometida, formando, de forma quase acadêmica, criminosos veteranos mais astutos que os simples calouros. Por outro lado, produzem a maximização dos meios subjugadores em outras esferas, como a escola e a família: os indivíduos estão, literalmente, enclausurados, amedrontados com os expurgos criados nos seios das prisões; as crianças, seguras (ou presas) atrás de muros altos, grades de ferro e cercas elétricas dos colégios. Paradoxalmente, a lacuna da disciplina penal contribui para reforçar o confinamento em outros campos.
Isso não significa que esses outros modos de confinar sejam eficientes no que concerne à docilização dos corpos. Escola e família, ao contrário, são tão falíveis quanto as prisões. Disciplina, como nos assegura o Foucault, é aquilo que “resolve as confusões, as aglomerações compactas sobre as circulações incertas” (FOUCAULT, 1999, cap. 3). No tocante ao caso estudado, o exemplo dispendioso do trânsito brasileiro se insere dentro desse grupo de incertezas e confusões que o autor nos traz, e é a prova de que esse poder disciplinador não funciona.
No verso da canção, há uma nítida oposição entre o “nós”, pessoas comuns, e o “eles”, assassinos, classe de pessoas diferenciadas, que nos parece distantes, ao mesmo tempo em que próximos demais; um apêndice, insuportável para nós, do organismo social. Como já dizia Durkheim, o criminoso é o dessemelhante (DURKHEIM, 1988, p.193). No trânsito, essa distinção perde clareza: os que matam são personagens que, por vezes, revestem-se de títulos de “pessoas comuns”. São os “pais de família”, mas que gostam de beber e dirigir aos finais de semana, ou os “bons filhos”, que, no entanto, “curtem” festas, bebida e alta velocidade. Pessoas comuns, com quem convivemos: o “nós” se dissolve no “eles” e vice-versa. Família e escola, às quais se atribui o papel modulador desses indivíduos, falham em sua pretensão docilizante.
De fato, como colocou Deleuze, a sociedade disciplinar e suas múltiplas formas de confinamento estão em crise. Ele aponta que, para substituir a disciplina, surge a sociedade de controle, pautada em modos de dominação ininterrupto, não mais compartimentados. As formas de confinamento são trocadas por outros formatos de controle social: as senhas, os cartões, amostras, mercados e bancos de dados, que agem continuamente. (DELEUZE, 1990) A vigilância ilusória da máquina panóptica de Foucault se torna algo possível, real.
O autor nos remete à transformação dos regimes prisionais, com a busca de penas substitutivas e a utilização de coleiras eletrônicas (DELEUZE, 1990), em detrimento do confinamento. Parece-me necessário questionar, então, se, de fato, o regime prisional tal como nos é conhecido hoje pode ser abandonado, em favor dessas novas formas de controlar a sociedade. A “coleira eletrônica” é suficientemente eficaz para o controle criminal?
Deleuze dá o fim das formas de confinamento como algo certo. “Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo” (DELEUZE, 1990). No entanto, será mesmo possível afirmar que vamos abandonar por completo em algum momento, num futuro próximo, o modelo de prisões e cadeias que possuímos? Será possível abolir por completo o confinamento? Creio que não.
Mesmo admitindo sua evidente falha, não acredito que seja possível o desaparecimento das prisões. De fato, os controles têm conseguido ratificar a falibilidade das cadeias. A proliferação de celulares em seus interiores contribui para invalidar ainda mais a idéia central do confinar: a liberdade do corpo não é mais necessária à realização do crime - de dentro das cadeias se comandam chacinas, atentados, seqüestros e toda sorte de delitos. Mas isso não implica que elas precisem desaparecer. Talvez apenas suas formas mais tradicionais devam se dissipar. Uma remodelagem se faz necessária, uma combinação de elementos tanto da sociedade disciplinar quanto dessa nova que agora se forma.
Deleuze coloca uma linha evolutiva: a passagem da sociedade de soberania para a disciplinar, que agora dá lugar à sociedade de controle. Ele afirma que Foucault, ao teorizar sobre o surgimento da segunda, quando do desaparecimento da primeira, já sabia que aquela seria também efêmera como a outra (DELEUZE, 1990). Mas a sociedade de disciplina que nascia no século XVIII não vinha completamente desprovida de influências. O mesmo Foucault nos mostra que o inquérito, vestígio do momento medieval da trilogia, permaneceu nas sociedades disciplinares, após passar por um processo de ressignificação e adequação ao novo contexto (FOUCAULT, 1999, cap.3). Por que, então, as prisões não podem subsistir, como resquício da sociedade passada, mas sob novas formas e sentidos? É perfeitamente possível.
6 Decisão: fundamentação e integridade
Quando se trata de um caso judicial com decisão, parece-me que o mais importante é determinar sobre a coerência ou não dessa, pois, como nos traz Habermas, o objetivo do Direito é produzir decisões corretas. Para chegar a alguma conclusão sobre a decisão referente ao caso estudado, irei salientar e aclarar alguns aspectos da mesma, que teve por motivação o voto do Ministro Fux sobre o Habeas Corpus.
Primeiro, a oposição do Ministro Luiz Fux ao que havia sido posto antes pela Ministra-relatora Cármen Lúcia, pela Procuradoria Geral da República e pelo STJ. Nos episódios anteriores do processo, eles haviam sido categóricos quanto à decisão de não reavaliar o caso, alegando impossibilidade de fazê-lo por meio do Habeas Corpus e incompetência das instâncias superiores. O Ministro Fux, pedindo vista do processo, rejeitou essas considerações.
De acordo com Jürgen Habermas, apoiado em Arens, a existência de instâncias superiores e a possibilidade de recurso servem ao aperfeiçoamento Direito. Isso porque, dentro de sua teoria da argumentação jurídica, que exige que as decisões judiciais sejam fundamentadas argumentativamente, a possibilidade de reexame do caso nos tribunais superiores permite o melhor prosseguimento da argumentação, bem como demanda uma melhor fundamentação. Essa “auto-reflexão institucionalizada do direito” é benéfica para o alcance da única decisão correta. (HABERMAS, 2003)
Nesse sentido, creio que o Ministro Fux, ao não negar a possibilidade de uma nova análise dos fatos, foi condizente com o objetivo de produzir a melhor decisão, na medida em que promoveu a admissão de uma melhor argumentação. O fato de ter se utilizado de uma fundamentação cuidadosa em sua decisão, apoiando-se na doutrina existente sobre o assunto, também foi ao encontro da teoria habermasiana.
Outro ponto importante da decisão do Ministro trata da admissão, por parte dele, dos riscos do julgamento do Júri (a quem competiria a análise das provas), nas suas palavras às vezes “atécnico” e “apaixonado”, julgar mal as provas, levando a más decisões.
Urick Beck nos alerta, dentro da sociedade atual, para a existência do risco que é intrínseco a essa sociedade e que permeia quase todos os seus setores, escapando das instituições de controle (BECK, 1997, p. 14). No que concerne ao Direito, devemos nos ater para a falibilidade das decisões, que sempre envolvem uma parcela desse risco. O risco de produzir decisão incorreta e a preocupação com os efeitos que essas podem gerar devem ser introduzidos no processo judicial e levados em consideração no momento de busca pela solução correta.
No caso em questão, o Ministro demonstrou estar ciente desse risco de produção iníqua da decisão, levando em consideração seus possíveis efeitos, ao decidir avaliar o caso mais cuidadosamente e singularmente. Uma vez que o crime fosse considerado doloso, isso implicaria em uma pena seis vezes maior do que se ele fosse tido como culposo.
Claramente ele também não desconhece o tema tratado por mim anteriormente: a falência da sociedade disciplinar e do sistema penal enquanto promotor da ressocialização. A preocupação que demonstra com a diferença entre as penas e o risco de condenar alguém a uma pena maior não merecida, que o levaria a passar anos preso, comprova que o esgotamento de nosso sistema prisional é reconhecido até mesmo dentro das instituições estatais. O reconhecimento de que as cadeias falham em seu projeto tornam a atenção para o risco da decisão errada duplamente importante. É nessa esteira que se tenta minimizar, sempre que possível, as penas dos condenados. A meu ver, essa tendência contribuiu também para que ele anuísse com pedido de desclassificação de crime doloso para culposo.
Por outro lado, será que unicamente o reconhecimento de um sistema penal malogrado, que não reintegra o indivíduo à sociedade, é suficiente para se decidir não apenas à favor da desclassificação do crime, como também da soltura, por Habeas Corpus, do acusado? É suficiente para baixar o rigor punitivo?
O que os tribunais e o legislativo têm decidido no Brasil no mostra um caminho inverso do adotado pelo Ministro Luiz Fux, que decaiu o rigor do crime no trânsito em sua decisão. A Lei 11.705, de 2008, famosa Lei Seca, e agora, mais recentemente, uma decisão do próprio STF que reitera o que a lei já colocava, apontam para o aumento da severidade punitiva quanto aos crimes no trânsito. Nesse sentido, a decisão do Ministro foi justificável?
Ronald Dworkin nos fala da necessidade do Direito como integridade. Os juízes, para ele, precisam seguir uma concepção coerente de justiça, adequada à comunidade em que se inserem (DWORKIN, 2007, p. 271-272). Isso implica dizer que o juiz deve se pautar em suas decisões pelo que já foi estabelecido anteriormente, pois “o direito como integridade pede-lhes que continuem interpretando o mesmo material que ele próprio afirma ter interpretado anteriormente” (DWORKIN, 2007, p.273). Dworkin prega a metáfora do “romance em cadeia”. Cada decisão judicial é com um capítulo desse romance e precisa se manter coerente com os capítulos anteriores; cada juiz é um romancista, que precisa escrever seu capítulo objetivando criar um romance coeso (DWORKIN, 2007, p. 276).
A mesma lição nos traz Habermas: “O tribunal tem que decidir cada caso em particular, mantendo a coerência da ordem jurídica no seu todo” (HABERMAS, 2003, p.295)
No caso em questão, de fato, o Ministro considerou a importância de julgar cada caso em particular, mediante a constatação de “certa banalização no sentido de atribuir-se aos delitos de trânsito o dolo eventual”, sem exame mais detalhado do caso individual. No entanto sua decisão foi completamente destoante das outras produzidas pelo ordenamento jurídico. Como coloca Habermas, o recurso às instâncias superiores deve servir não apenas para o aprimoramento do Direito, como já foi dito, mas também para a uniformização deste, o que não decorre da decisão produzida nesse caso (HABERMAS, 2003, p.294-295)
7 Conclusões
A constância dos homicídios ocasionados no trânsito parece encontrar raízes tanto na indiferença produzida pelo crescimento das sociedades, quanto na sobreposição dos interesses dos indivíduos sobre os da coletividade. Também contribuem para esse fenômeno as múltiplas falências das formas de disciplina que nos relata Foucault: família, escola e prisão, todas têm sua parcela de culpa, resultante da sua incapacidade em docilizar, em socializar ou ressocializar.
Por outro lado, mostrei como a existência de confinamento ainda se faz necessária. Como conceber um sistema penal de portas abertas? Mesmo defeituosos, parece-me que, ao menos nos casos mais graves, eles ainda se fazem imprescindíveis. Os homicídios no trânsito são um “caso grave”? Sem dúvida que sim: não apenas por sua freqüência, mas também porque, como já foi dito, são expressão de desrespeito indiferente com a vida humana e de egoísmo inconcebível dentro de uma sociedade.
Nesse sentido, decorre-me que a forma como o Direito tem de lidar com tais casos ainda se passa no campo da punição e da clausura, porquanto ainda não inventaram métodos capazes e eficientes de substituí-las. Assim, o aumento do rigor punitivo é maneira imperfeita, mas necessária de amainar o problema. Mesmo reconhecendo a falibilidade de tal solução, no momento, não é possível furtar-se dela.
Grande parte das decisões judiciais aponta nesse sentido. A decisão que concedeu ordem de Habeas Corpus nº 107.801 foi muito dissonante, não se ateve à coerência do Direito (ou integridade, como quis Dworkin). Ela abriu um precedente sem dúvida arriscado. Mas isso não quer dizer que tenha representado um retrocesso nos caminhos que direcionam para uma pacificação no trânsito. Com efeito, a lição que, ao meu ver, fica deste caso, é aquela que nos assinala Niklas Luhmann: o erro no direito, a ação isolada, não têm o poder de, sozinha, mudar os rumos do sistema jurídico. Antes, entra para a memória do sistema, servindo-lhe de exemplo do que não fazer (LUHMANN, 1983).
Referências
- BECK, U. In: GIDDENS, A. Modernização reflexiva. Política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997, p. 14.
- DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle (1990). Disponível em: http://www.portalgens.com.br/filosofia/textos/sociedades_de_controle_deleuze.pdf. Acesso em: 21 de novembro de 2011.
- DWORKIN, Ronald. O império do direito – 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 272-279.
- DURKHEIM, Émile. A divisão do trabalho social – Livro segundo. Lisboa: Presença, 1977, p. 67-90, 193-207.
- FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão – 20ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
- HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade - I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
- LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
- MARX, Karl; ENGELS, Friendrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
- Os dados estatísticos utilizados foram retirados dos Estudos Técnicos – Mapeamento das Mortes por Acidentes de Trânsito no Brasil, realizado em 2009 pela Confederação Nacional de Municípios (CNM). Disponível em: http://portal.cnm.org.br/sites/9000/9070/ Estudos/Transito/EstudoTransito-versaoconcurso.pdf . Acesso em: 21 de novembro de 2011
- As descrições sobre o caso foram pautadas nos documentos presentes no site do Supremo Tribunal Federal: www.stf.gov.br. Acesso em: 20 de setembro de 2011.
[1] Dados retirados dos Estudos Técnicos – Mapeamento das Mortes por Acidentes de Trânsito no Brasil, realizado em 2009 pela Confederação Nacional de Municípios (CNM). Disponível em: http://portal.cnm.org.br/sites/9000/9070/ Estudos/Transito/EstudoTransito-versaoconcurso.pdf . Acesso em: 21 de novembro de 2011.
[2] A descrição foi toda baseada nos documentos sobre o caso adquiridos no site do Supremo Tribunal Federal, especialmente do voto-vista do Ministro Luiz Fux: www.stf.gov.br. Acesso em: 20 de setembro de 2011.
[3] Veja que o caminho seguido por Marx é o oposto do adotado por Durkheim. Enquanto para Marx, à medida em que a divisão do trabalho prossegue ela se torna natural, inconsciente, não voluntária, para Durkheim o desenvolvimento da divisão do trabalho promove a saída de um estado de quase inconsciência, de aquiescência involuntária às regras, para um estado de seguimento voluntário destas.
Estudante de Direito - Universidade Federal do Piauí. Pesquisadora do grupo de pesquisa República (reconhecido pelo CNPQ) e Monitora da disciplina Introdução ao Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMORIM, Thamires Arrais. De dolo à culpa - uma análise jurídico-sociológica dos problemas dos homicídios no trânsito e da falibilidade do sistema prisional brasileiro. O homicídio culposo segundo o STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 maio 2012, 09:13. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29030/de-dolo-a-culpa-uma-analise-juridico-sociologica-dos-problemas-dos-homicidios-no-transito-e-da-falibilidade-do-sistema-prisional-brasileiro-o-homicidio-culposo-segundo-o-stf. Acesso em: 23 dez 2024.
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