1. INTRODUÇÃO
Malgrado o estudo de o tipo ter conhecido no finalismo de Welzel, até então, seu ponto culminante, tal processo segue em marcha. Sem embargo da apurada técnica e segurança que confere a teoria levada a efeito pelo doutrinador alemão, o tempo é de superação de paradigmas.
Nesta esteira, urge debruçarmos sobre a interessante construção feita por Eugenio Raúl Zaffaroni. A doutrina elaborada pelo mestre argentino, como se pretende demonstrar mais tarde, possui o mérito de excluir a tipicidade (material) de condutas, a priori, tidas como típicas, na visão clássica.
2. CONCEPÇÃO DE TIPO E TIPICIDADE
Deve-se salientar que Zaffaroni (2011, v. 1, p. 387) valeu-se, como ponto de partida, da concepção de tipo e tipicidade já conhecidos da doutrina finalista, ao definir o tipo como
um instrumento legal, logicamente necessário e de natureza predominante descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes (por estarem penalmente proibidas).
O doutrinador em análise lembra que não devemos confundir as noções de tipo e tipicidade. O primeiro é a fórmula que integra a lei, enquanto que a última é a característica de que se reveste a conduta em virtude de sua subsunção ao tipo penal. Portanto, o tipo é próprio da lei, enquanto que a tipicidade repousa na conduta do agente (ZAFFARONI, 2011).
3. DA ANTINORMATIVIDADE
Em linhas gerais, Zaffaroni (2011, v. 1, p. 398) se refere à antinormatividade aduzindo que
o tipo é gerado pelo interesse do legislador no ente que valora, elevando-o a bem jurídico, enunciando uma norma para tutelá-lo, a qual se manifesta em um tipo legal que a ela agrega a tutela penal. Conforme este processo de gestação resultará que a conduta que se adequa a um tipo penal será, necessariamente, contrária à norma que está anteposta ao tipo legal, e afetará o bem jurídico tutelado. A conduta adequada ao tipo penal do art, 121 do CP será contrária à norma “não matarás”, e afetará o bem jurídico vida humana; a conduta adequada ao tipo do art. 155 será contrária à norma “não furtarás”, e afetará o bem jurídico patrimônio, etc.
Nestes termos, leciona o mesmo autor com inquestionável agudez ao observar:
a antinormatividade não é comprovada somente com a adequação da conduta ao tipo legal, posto que requer uma investigação do alcance da norma que está anteposta, e que deu origem ao tipo legal, e uma investigação sobre a afetação do bem jurídico (ZAFARONI,v. 1, pg. 398).
Com isso, busca-se evitar ilogicidades do sistema, impedindo que condutas, por vezes fomentadas ou até mesmo impostas pelo estado, possam ser enquadradas no tipo penal, o que se verifica, v.g., quando lidamos com a visão da doutrina finalista.
À guisa de ilustração, tomemos o oficial de justiça que munido de um mandado, exarado por autoridade judicial competente(ordem imposta pelo Estado), penhora e sequestra um veículo do executado para garantia do crédito exequendo. Os adeptos da teoria finalista diriam que, num primeiro momento, teríamos uma conduta típica de furto; art. 155 do Código Penal Brasileiro, mas o crime restaria afastado em razão de o servidor público ter atuado no estrito cumprimento do dever legal; art. 23, inc. III do Estatuto Repressivo, excluindo-se, desta feita, a ilicitude do fato.
No entanto, Zaffararoni (2011, v. 1, p. 400) diante desse mesmo exemplo, pondera que
a lógica mais elementar nos diz que o tipo não pode proibir o que o direito ordena e nem o que ele fomenta. Pode ocorrer que o tipo penal pareça incluir esses casos na tipicidade, como sucede com o oficial de justiça, e, no entanto, quando penetramos um pouco mais no alcance da norma que está anteposta ao tipo, nos apercebemos que, interpretada como parte da ordem normativa, a conduta que se adequa ao tipo legal não pode estar proibida, porque a própria ordem normativa a ordena e a incentiva.
Neste lanço, convém sublinhar as lições de Norberto Bobbio (1994, p.80), quando preleciona:
um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. Aqui, “sistema” equivale à validade do princípio que exclui a incompatibilidade das normas. Se num ordenamento vem a existir normas incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é verdade, quer dizer que as normas de um ordenamento tem certo relacionamento entre si, e esse relacionamento é o relacionamento de compatibilidade, que implica na exclusão da incompatibilidade.
Tendo em conta a abalizada lição acima colacionada, faz-se imperioso reconhecer que estaria igualmente alheia ao alcance da norma penal, a nosso ver, pela ótica da tipicidade conglobada, a conduta, v.g., dos pais que castiguem moderadamente o filho para fins de educação e criação, pois que agiriam os genitores, nesta hipótese, sob o manto do exercício do poder familiar, abrangido pela norma do art. 1630 e art. 1634, inc. I do Código Civil Brasileiro.
Nessa ordem de ideias, haveria patente incongruência fossem os pais processados criminalmente por exercer aquela faculdade que lhes outorga a lei civil. Seria, pois, teratológico admitirmos que no âmbito do direito civil tenhamos uma conduta lícita, ao passo que este mesmo comportamento fosse vedado na seara penal. Não há olvidar-se que o direito é uno. As divisões em direito civil e penal, dentre outros ramos, atendem a fins didáticos e metodológicos.
De igual modo, a título de ilustração, não há cogitar-se em crime a conduta do cidadão que, vítima de furto ou roubo em seu estabelecimento comercial, uma vez valendo-se da faculdade prevista na lei processual penal prende em flagrante o suspeito, detendo-o em um cômodo de sua loja até a chegada da polícia. Afigurar-se-ia contraditório que essa mesma conduta, autorizada pela lei, desse azo à deflagração de uma ação penal em que o comerciante fosse denunciado pelo crime de cárcere privado; art. 148 do Estatuto Repressivo.
4. DA TIPICIDADE MATERIAL
Consoante se extrai do entendimento do autor em tela, para concluirmos pela tipicidade penal de determinada conduta faz-se necessário indagarmos de sua previsão na lei penal (tipicidade legal), e conseguinte, se esta se afigura antinormativa, é dizer, se a referida conduta, grosso modo, não se encontra imposta, nem fomentada pelo Estado. Isto porque, na visão de Zaffaroni (2011, v.1, p.399) “as normas jurídicas não vivem isoladas, mas num entrelaçamento em que umas limitam as outras, e não podem ignorar-se mutuamente.”.
Por derradeiro, deve-se perquirir acerca da efetiva afetação do bem jurídico objeto da tutela penal, a saber, se houve conteúdo material da conduta suficiente para causar dano ou expor a perigo concreto aquele ente protegido pela norma penal.
5.CONCLUSÃO
Portanto, a análise da conduta pautada na doutrina da tipicidade conglobante ou conglobada requer a violação efetiva de um bem jurídico, ou ao menos, a exposição deste a perigo concreto. No dizer de Zaffaroni (2011, v. 1, p. 487) “fica claro que a afetação do bem jurídico é um requisito da tipicidade penal, mas não pertence à tipicidade legal, apenas a limitando”. Ainda no entender do mestre argentino, temos que
a afetação do bem jurídico pode ocorrer de duas formas: de dano ou lesão e de perigo. Há dano ou lesão quando a relação de disponibilidade entre o sujeito e o ente foi realmente afetada, isto em quando, efetivamente, impediu-se a disposição, seja de forma permanente (como ocorre no homicídio) ou transitória. Há afetação do bem jurídico por perigo quando a tipicidade requer apenas que essa relação tenha sido colocada em perigo.Estas duas formas de afetação dão lugar a uma classificação dos tipos penais em tipos de dano e tipos de perigo (ZAFFARONI, v.1, p. 488).
Corroborando essa orientação, trazemos à baila o respeitável entendimento de Luiz Regis Prado (2011, p. 72) que com rara felicidade assevera:
a tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. É imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção penal.
Neste passo, repise-se, surge a atipia conglobante como suporte teórico à aplicação do princípio da insignificância, na medida em que, por esta tese, a conduta do agente apenas se revestirá de relevância típica quando, a despeito de sua previsão na norma penal incriminadora, (tipicidade legal), restar antinormativa, além de lesar material e efetivamente o bem jurídico a que visa proteger o direito penal. Em não se verificando esses elementos diremos que houve a exclusão, no caso concreto, da tipicidade material da conduta.
Desta feita, apenas quando, e se superadas todas aquelas etapas, estaríamos diante da tipicidade penal, já que “a tipicidade penal requer que a conduta, além de enquadrar-se no tipo legal, viole a norma e afete o bem jurídico.” (ZAFFARONI, v. 1, p. 399).
Dessarte, a despeito de determinados comportamentos se amoldarem ao tipo penal isto não nos autoriza, de maneira açodada, a concluirmos pela tipicidade da conduta, como se verificaria, regra geral, à luz da concepção clássica do tipo.
Ao revés, o que se propõe é a análise conglobada do tipo penal, já que este método poderá conduzir a descaracterização da tipicidade penal, o que, de plano, implica em consequências de irrefutável utilidade prática, pois a identificação de determinada conduta como atípica, por ausência de seu conteúdo material terá o condão de evitar o início, ou se já deflagrada, a continuidade da persecução criminal, que neste caso, culminaria, ao final, com a imposição de uma pena ao réu, com todos os consectários jurídicos e sociais da sanção criminal.
BIBLIOGRAFIA
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 4ª ed. Brasília: Ed. UNB, 1996.
PRADO, Luiz Regis.Bem Jurídico Penal.5ª ed. São Paulo: RT, 2011.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl PEERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: São Paulo, RT, v. 1, 2011.
Bacharelando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo). Servidor público estadual.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVES, Marcelo Gambi. Considerações acerca da teoria da tipicidade conglobante (ou conglobada) de Eugênio Raúl Zaffaroni. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 maio 2012, 09:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29031/consideracoes-acerca-da-teoria-da-tipicidade-conglobante-ou-conglobada-de-eugenio-raul-zaffaroni. Acesso em: 23 dez 2024.
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