INTRODUÇÃO
O emprego de algemas como método de contenção sempre foi uma prática recorrente e procedimental no dia-a-dia das forças policiais. Tratava-se de medida cautelar para garantir a segurança das equipes e do preso envolvidos nas ocorrências, sejam elas de prisão ou escolta. Desde os primeiros ensinamentos nas academias de polícia até o efetivo exercício de sua profissão os métodos de contenção são treinados e aplicados de forma a preservar a garantia da ordem quando da realização do dever.
Considerando a individualidade e a imprevisibilidade do ser humano diante de sua vontade contrariada, bem como sua liberdade e não raro patrimônio cerceados, temos o momento da prisão como o evento extremamente crítico onde se faz necessária toda cautela possível, de forma a evitar o emprego de força maior para sanar qualquer tipo de problema decorrente de sua não utilização,
Paralelamente ao uso das algemas temos o fator midiático das operações policiais, com a apresentação à imprensa de presos algemados, desconsiderando não apenas o seu direito à imagem, mas também o dever de guarda do policial daquele que lhe está sob custódia.
O emprego de algemas aliado à exposição inadvertida e irresponsável de presos, principalmente após a realização de grandes operações do Departamento de Polícia Federal nas quais os presos costumeiramente eram conduzidos algemados e não raro tinham sua imagem vinculada em cadeia nacional de televisão desencadearam a edição, pelo Supremo Tribunal Federal, da súmula n.11, a qual excepcionalizou o que antes era regra:
"Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado" [1]
O COTIDIANO POLICIAL E O ORDENAMENTO JURÍDICO EXISTENTE
A edição da Súmula n.11 trouxe profundas alterações no exercício da atividade policial, procedimentos anteriormente adotados como padrão foram reformulados, estes por sua vez baseados nos costumes e na doutrina policial difundida nas academias. A título de exemplo, ao se cumprir um mandado de prisão, antes da condução do preso este era revistado e algemado, independentemente de sua periculosidade ou comportamento, tudo isso de forma a garantir a segurança dos policiais e principalmente a do preso, agora sob a total responsabilidade do Estado.
Inúmeros são os casos de fuga motivados pela ausência de algemas, desde aquele onde a presa por tráfico de drogas foge pela janela de um banheiro, até um dos mais graves, ocorrido em São Paulo e amplamente divulgado pela imprensa, onde outro preso considerado inofensivo foi capaz de tomar a arma e matar o policial responsável pelo seu transporte. Estes exemplos foram elencados unicamente com o intuito de demonstrar a incoerência do direito de fuga inerente ao preso, defeso pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 73491 / PR – PARANÁ, o qual teve como Relator o Ministro Marco Aurélio, senão vejamos:
COMPETÊNCIA - HABEAS-CORPUS - ATO DE TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL. Na dicção da ilustrada maioria, em relação à qual guardo reservas, compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeas-corpus dirigido contra ato de Tribunal ainda que não possua a qualificação de superior. Convicção pessoal colocada em segundo plano, em face de atuação em Órgão fracionário. PENA - PROGRESSÃO DO REGIME DE CUMPRIMENTO. O pleito deve estar lastreado não só no fator objetivo - cumprimento de pelo menos um sexto da pena no regime anterior - como também no subjetivo, ligado ao mérito do presidiário. Mostra-se insusceptível de acolhimento quando o exame criminológico revela desequilíbrio emocional, havendo demonstrado o preso não possuir constrangimento pelos atos delituosos cometidos e não se sentir obrigado a conformar-se com os padrões vigentes da vida gregária. Se de um lado a fuga não pode ser considerada como fator negativo, tendo em vista consubstanciar direito natural, de outro não menos correto é que a prática delituosa a partir dela torna incontroversa a falta da indispensável ressocialização. [2]
O emprego de algemas, anteriormente à edição da Súmula em comento, deveria ser disciplinado, conforme preceitua a Lei de Execuções Penais, por Decreto Federal, entretanto, a legislação só veio a contemplar parcialmente referido emprego com a edição da Lei 11.689 de 09 de junho de 2008, a qual alterou o Código de Processo Penal, o qual passou a vigorar com o seguinte teor no § 3º. do artigo 474:
“Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes”. [3]
Ainda no que tange aos dispositivos legais, temos, veladamente, salvaguarda no Artigo 292 do mesmo dispositivo legal:
“Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.” [4]
Representando situação extremamente específica, objetivando a segurança de voo nas aeronaves que realizam o transporte de passageiros na aviação comercial, temos disposições no Decreto 7.168/2012 que disciplina esta atividade, denominado PNAVSEC - Programa Nacional de Segurança da Aviação Civil Contra Atos de Interferência Ilícita – o qual é omisso quanto a obrigatoriedade da aplicação de algemas, referindo-se aos métodos de contenção de maneira genérica, entretanto, veda expressamente que o preso seja algemado juntamente à partes da aeronave:
Art. 170. A escolta deve possuir equipamentos de contenção a serem usados, se necessários.
Parágrafo único. Sob condições normais, a pessoa sob custódia não deve ser algemada a nenhuma parte da aeronave, incluindo assentos e mesas. [5]
Paralelamente a estas normatizações da utilização de algemas e de forma a determinar os limites de sua aplicação podemos elencar Direitos e Garantias fundamentais presentes na Constituição Federal, os quais restringem a aplicação desenfreada. Dentre eles podemos considerar principalmente aqueles constante no artigo 5º, os quais asseguram a dignidade da pessoa humana:
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; [6]
Nesse mesmo sentido, também temos normatização penal constante no Artigo 350 do Código Penal Brasileiro:
Exercício arbitrário ou abuso de poder
Art. 350 - Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder:
Pena - detenção, de um mês a um ano.
Parágrafo único - Na mesma pena incorre o funcionário que:
III - submete pessoa que está sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; [7]
A Legislação Especial também contempla medidas contra o abuso de autoridade, vejamos o que dispõe a lei 4898/65:
Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:
a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;
b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; [8]
Em que pese o ordenamento jurídico existente, com Garantias Constitucionais e sanções penais, o uso de algemas era indiscriminado e prática reiterada dos agentes públicos, sendo procedimentalmente adotado nos casos envolvendo presos. As algemas somente eram retiradas quando do acondicionamento em celas ou ainda, durante audiências, com expressa determinação do magistrado.
Diante da “pirotecnia” de algumas operações policias e da exposição desenfreada de presos já exposta anteriormente, bem como ausência de legislação federal que regulamente especificamente o uso de algemas houve a movimentação do Supremo Tribunal Federal, e após apenas um único julgado, a saber o HC 91952 / SP – São Paulo, desencadeou-se a edição da súmula vinculante. Vejamos o habeas corpus em comento:
ALGEMAS - UTILIZAÇÃO. O uso de algemas surge excepcional somente restando justificado ante a periculosidade do agente ou risco concreto de fuga. JULGAMENTO - ACUSADO ALGEMADO - TRIBUNAL DO JÚRI. Implica prejuízo à defesa a manutenção do réu algemado na sessão de julgamento do Tribunal do Júri, resultando o fato na insubsistência do veredicto condenatório.[9]
CONCLUSÕES
A ausência de Lei Federal responsável pela regulamentação do emprego de algemas e outros meios de contenção persiste até a atualidade. De forma a coibir os abusos de algumas autoridades na condução de seus presos o Supremo Tribunal Federal adentrou na esfera legislativa e editou a Súmula Vinculante n. 11, restringindo amplamente o uso de algemas, transformando-o na exceção.
Entretanto, conforme exposto anteriormente, o problema a ser sanado pela súmula em comento deveria ser a exposição desenfreada e o abuso de autoridade, não o uso de algemas. Nesse sentido, precisas são as palavras de Rodrigo Carneiro Gomes:
“O ato de algemar não é um constrangimento ilegal. Poderá sê-lo se procedido tão somente para filmagem e divulgação em rede nacional, em detrimento de direitos e garantias individuais do preso, o que sujeita o policial a sanções disciplinares, sem prejuízo de outras que sejam pertinentes...O que deve ser combatido é a prisão ilegal. Recriminar o uso de algemas é querer que o policial aceite que a vida do preso é mais importante que a sua própria vida, quando, na verdade, ambas têm o mesmo valor. O policial, no exercício regular da atividade policial e na forma legal, não deve deixar de “algemar” o suspeito, por compaixão ou receio de constrangimento e eleger o valor subjetivo “imagem” como mais importante que o valor “vida”. [10]
Demonstrando este mesmo entendimento, temos carta publicada pela Federação Nacional dos Policiais Federais:
“...Contudo, a Fenapef entende que não é o uso de algemas que tem resultado nos abusos mais frequentes na atividade policial. O emprego de algemas é a regra e o procedimento-padrão das polícias em todo o mundo. São a exposição indevida da imagem de investigados e a espetacularização das operações policiais que provocam graves danos morais e à imagem de pessoas, criminosas ou inocentes, cujos atos ainda serão apreciados pela Justiça. [11]
Assim, a Súmula 11 teve impacto negativo diante da sociedade uma vez que restringiu, não somente abusos e arbitrariedades, mas também, de forma velada, a segurança e o exercício da atividade policial uma vez que procedimentos antes cotidianos agora se burocratizaram fazendo com que a regra de se aplicar algemas passasse a ser exceção.
BIBLIOGRAFIA:
[1] Súmula Vinculante 11. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listar Jurisprudencia.asp?s1=11.NUME.%20E%20S.FLSV.&base=baseSumulasVinculantes - acessado em 15/05/2012.
[2] Habeas Corpus 73491 / PR – PARANÁ . Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/ jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%2873491%2ENUME%2
E+OU+73491%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos – acessado em 15/05/2012.
[3] Código de Processo Penal - §3º. do artigo 474.
[4] Código de Processo Penal - artigo 292.
[5] Decreto 7.168/2012 - PNAVSEC - Programa Nacional de Segurança da Aviação Civil Contra Atos de Interferência Ilícita – Artigo 170
[6] Constituição Federal da República Federativa do Brasil – Artigo 5º.
[7] Código Penal – artigo 350.
[8] Lei 4898/65 – Art. 4º
[9] STF HC 91952 / SP - http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp? s1=%2891952%2ENUME%2E+OU+91952%2EACMS%2E%29&base=base Acordaos – acessado em 16/05/2012
[10] GOMES, Rodrigo Carneiro. Algemas para a salvaguarda da sociedade: a desmistificação do seu uso - sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/191006i.pdf – acessado em 15/05/2012.
[11] Federação Nacional dos Policiais Federais - Policiais defendem uso de algemas e criticam sensacionalismo em operações - http://www.fenapef.org.br/fenapef/noticia/index/34484 - acessado em 17/05/2012.
Servidor Público Federal, graduando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ZULTAUSKAS, Alexandre Muller. A Súmula Vinculante n.11: algemas, a transformação da regra em exceção Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 maio 2012, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29128/a-sumula-vinculante-n-11-algemas-a-transformacao-da-regra-em-excecao. Acesso em: 23 dez 2024.
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