Não se deve olvidar que “o regime disciplinar e o processo administrativo disciplinar são institutos de que dispõe a administração para, diante de ilícitos administrativos cometidos por seus servidores, exercer seu jus puniendi com o fim não só de restabelecer a ordem interna afetada pela infração, como também como efeito didático-intimidador sobre o corpo funcional vinculado”[1] - negritou-se.
Assim, podemos entender o processo administrativo disciplinar como um procedimento instaurado pela Administração Pública, decorrente de imposição legal, para apuração de fatos relacionados à prática de ilícitos administrativos pelos servidores. Intenta-se comprovar o binômio: materialidade + autoria do ato considerado infracional[2].
Ainda nos valendo das lições do Manual de Processo Administrativo Disciplinar da Controladoria-Geral da União - CGU, o ilícito administrativo-disciplinar, motivador da responsabilização do servidor que o praticou, poderá ser definido “como toda conduta do servidor que, no âmbito de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las, contraria dispositivo estatutário”.
Desse modo, os ilícitos administrativos surgem a partir:
a) da inobservância de deveres funcionais do art. 116, e/ou
b) da afronta às vedações do art. 117 e/ou
c) do cometimento de condutas previstas no art. 132, todos da Lei nº 8.112/90.
Assim, como os arts. 116, 117 e 132, elencam as respectivas listas de deveres, proibições e condutas graves em sede administrativa, resta concluir, em primeira ótica, que qualquer prática cometida por servidor que se enquadre nas mesmas deverão ser repreendidas. Vejamos o teor destes dispositivos:
Art. 116. São deveres do servidor:
I - exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo;
II - ser leal às instituições a que servir;
III - observar as normas legais e regulamentares;
IV - cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais;
V - atender com presteza:
a) ao público em geral, prestando as informações requeridas, ressalvadas as protegidas por sigilo;
b) à expedição de certidões requeridas para defesa de direito ou esclarecimento de situações de interesse pessoal;
c) às requisições para a defesa da Fazenda Pública.
VI - levar as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ao conhecimento da autoridade superior ou, quando houver suspeita de envolvimento desta, ao conhecimento de outra autoridade competente para apuração;
VII - zelar pela economia do material e a conservação do patrimônio público;
VIII - guardar sigilo sobre assunto da repartição;
IX - manter conduta compatível com a moralidade administrativa;
X - ser assíduo e pontual ao serviço;
XI - tratar com urbanidade as pessoas;
XII - representar contra ilegalidade, omissão ou abuso de poder.
Parágrafo único. A representação de que trata o inciso XII será encaminhada pela via hierárquica e apreciada pela autoridade superior àquela contra a qual é formulada, assegurando-se ao representando ampla defesa.
Art. 117. Ao servidor é proibido:
I - ausentar-se do serviço durante o expediente, sem prévia autorização do chefe imediato;
II - retirar, sem prévia anuência da autoridade competente, qualquer documento ou objeto da repartição;
III - recusar fé a documentos públicos;
IV - opor resistência injustificada ao andamento de documento e processo ou execução de serviço;
V - promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição;
VI - cometer a pessoa estranha à repartição, fora dos casos previstos em lei, o desempenho de atribuição que seja de sua responsabilidade ou de seu subordinado;
VII - coagir ou aliciar subordinados no sentido de filiarem-se a associação profissional ou sindical, ou a partido político;
VIII - manter sob sua chefia imediata, em cargo ou função de confiança, cônjuge, companheiro ou parente até o segundo grau civil;
IX - valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública;
X - participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário;
XI - atuar, como procurador ou intermediário, junto a repartições públicas, salvo quando se tratar de benefícios previdenciários ou assistenciais de parentes até o segundo grau, e de cônjuge ou companheiro;
XII - receber propina, comissão, presente ou vantagem de qualquer espécie, em razão de suas atribuições;
XIII - aceitar comissão, emprego ou pensão de estado estrangeiro;
XIV - praticar usura sob qualquer de suas formas;
XV - proceder de forma desidiosa;
XVI - utilizar pessoal ou recursos materiais da repartição em serviços ou atividades particulares;
XVII - cometer a outro servidor atribuições estranhas ao cargo que ocupa, exceto em situações de emergência e transitórias;
XVIII - exercer quaisquer atividades que sejam incompatíveis com o exercício do cargo ou função e com o horário de trabalho;
XIX - recusar-se a atualizar seus dados cadastrais quando solicitado
Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos:
I - crime contra a administração pública;
II - abandono de cargo;
III - inassiduidade habitual;
IV - improbidade administrativa;
V - incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição;
VI - insubordinação grave em serviço;
VII - ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem;
VIII - aplicação irregular de dinheiros públicos;
IX - revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo;
X - lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional;
XI - corrupção;
XII - acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas;
XIII - transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117.
A ilicitude, objeto do procedimento disciplinar, deverá configurar afronta a qualquer dos dispositivos legais acima retratados, em outras palavras, a conduta infracional praticada pelo servidor deverá corresponder àquela prevista, em abstrato, na norma reguladora.
No entanto, mesmo que determinada prática guarde correlação com aquela legalmente prevista, dever-se-á, ainda, averiguar a ilicitude material da ação, ou seja, constatar se a conduta, mesmo que descrita em abstrato pela norma, teve o condão de causar efetivo dano ao Poder Público, lato sensu. Leia-se o seguinte excerto extraído do citado Manual:
Uma vez afirmada a ilicitude formal da conduta proibida, com seu enquadramento no tipo repressivo, cabe averiguar a ilicitude material, ou seja, se o comportamento efetivamente agride o bem jurídico protegido pela norma ou mesmo o ‘status’ de vigência formal e material dessa norma.
Mesmo que se considerasse determinada conduta praticada por um servidor, nítida afronta a alguns incisos dos dispositivos legais da Lei nº 8.112/90, ter-se-ia que apurar a “ilicitude material” daquela prática, portanto, se constata, que mesmo diante da “tipificação legal”, aquela ação tem considerável potencial ofensivo e se, caso tenha, a aplicação de qualquer penalidade ensejasse situação geradora de absoluta desproporcionalidade entre a causa (conduta) e a consequência (sanção).
Sobre as infrações administrativas consideradas de potencial ofensivo insignificante, vale mencionar o Despacho nº 129, de 04/02/05, do Consultor-Geral da União Substituto, que assim registra:
Observo, inicialmente, que a reafirmação do entendimento contido em diversas manifestações desta Advocacia-Geral da União, no sentido da obrigatoriedade da aplicação da pena de expulsão quando configurada infração disciplinar prevista no art. 132 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, vale como regra geral.
Ocorre, entretanto, que, na linha do despacho do Consultor-Geral da União, na apreciação da Nota nº AGU/WM-24/2003, de 16 de junho de 2003, relativa ao processo nº (...), já aprovado por Vossa Excelência, não se exclui a possibilidade de, ‘quando for o caso, em face de infrações menores, de potencial insignificante, afasta-se a aplicação da penalidade em razão de atipia, como a concebem os tribunais no campo penal’. Em resumo, faltando objetiva relevância jurídico-administrativa, a conduta, mesmo irregular, pode ser considerada insuficiente para aplicar-se a penalidade.
Ou seja, a conduta da autoridade pública, nestes casos, deverá se pautar não exclusivamente na legalidade, ou seja, na mera subsunção do fato à norma, no simples “encaixe” da situação concreta à previsão legal, mas, sobretudo, deverá averiguar se aquela prática deve ser disciplinarmente condenada por ter repercutido consideravelmente no bem jurídico do Poder Público.
Este raciocínio, aclare-se, não tem o escopo de imunizar o servidor faltoso, que cometa infrações, porém, tem a missão de trazer consigo o princípio da razoabilidade ao poder persecutório do Estado, evitando que o mesmo institua regime altamente rigoroso e, ao mesmo tempo, iníquo, já que a infração grave deverá ser considerada como tal, não podendo ser equiparada àquelas ações irregulares e desigualmente condenáveis.
Nessa linha, a lei não isenta o administrador de apurar atos de reduzido potencial ofensivo, posto ser, o bem público, indisponível, mas, sobretudo, põe em voga outros princípios, com a razoabilidade, proporcionalidade e eficiência, para afastar, quando possível, a sede disciplinar. Transcreve-se outro trecho do Manual de PAD da CGU:
A título de mero exemplo, com todo o risco inerente de fazê-lo distanciado de um caso concreto, pode-se ter um fato de pequeno insulto verbal proferido por servidor que, a princípio, poderia encontrar enquadramento na Lei nº 8.112, de 11/12/90, em seu art. 116, XI (quebra do dever de tratar com urbanidade as pessoas). Sendo ato intencional, de imediato, se afasta a possibilidade de se aplicar o chamado erro administrativo escusável. Não obstante, à vista de exemplificativas condicionantes de ter havido retratação do agressor e desconsideração da ofensa por parte do agredido e de não ter ocorrido outras repercussões para o ato, em tese, se poderia cogitar de a conduta formalmente ilícita não obter adequação material, por ausência de afronta ao bem jurídico internamente tutelado, obtendo-se amparo nos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e eficiência para excluir o enquadramento e afastar a sede disciplinar.
Esclarece-se, portanto, que mesmo que se considere a prática de certo servidor típico ato infracional, vislumbra-se que, em muitas ocasiões, o procedimento disciplinar é instaurado por motivações (na maioria dos casos) pessoais, que, portanto, em nada se relacionam com o interesse institucional.
Embora existam práticas, muitas vezes, repreensíveis, no ambiente profissional, posto que regras basilares de conduta devem ser respeitadas, não se vislumbra que, ante inexistente potencial lesivo da ação, se instaure desproporcionalmente procedimento disciplinar e, assim, se contribua para o dispêndio desmotivado de tempo e de recursos públicos.
A proporcionalidade e a razoabilidade devem ser sempre suscitadas, para que a lógica instituída pela máxima “para cada ação, uma consequência” seja preservada.
Por conseguinte, ante a ausência de materialidade do ato, entende-se que o procedimento administrativo disciplinar não deve ser, sequer, instaurado, já que é com este intuito apuratório que se concebe o juízo de admissibilidade[3] atribuído à autoridade instauradora do procedimento. A propósito, reproduz-se a seguinte disposição da Lei nº 8.112/90:
Art. 144. As denúncias sobre irregularidades serão objeto de apuração, desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada a autenticidade.
Parágrafo único. Quando o fato narrado não configurar evidente infração disciplinar ou ilícito penal, a denúncia será arquivada, por falta de objeto.
Isto posto, considera-se prudente que, em se tratando de procedimentos disciplinares, os administradores públicos, além da legalidade que regem seus atos, atentem, inclusive, para outros postulados, como o da razoabilidade, da proporcionalidade e da impessoalidade, sob pena de se utilizar o maquinário estatal inadequadamente, para se apurar ato que, mesmo que considerado formalmente “infracional”, não consista em ato “materialmente” danoso.
[1] In Manual de Processo Administrativo Disciplinar da Controladoria-Geral da União - CGU.
[2] Vide artigo 148 da Lei nº 8.112/90:
Art. 148. O processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido.
[3] Segundo o Manual da CGU sobre PAD, “o juízo de admissibilidade é a fase antecedente à decisão da autoridade competente em instaurar o processo administrativo disciplinar ou a sindicância contraditória ou em arquivar a representação ou denúncia e consubstancia-se nas investigações preliminares com que se buscam todos os indícios porventura existentes da suposta irregularidade funcional (acerca da materialidade e da autoria), a serem submetidos à apreciação e ponderação daquela autoridade, mediante parecer em caráter propositivo. Em síntese, o juízo de admissibilidade atua como elemento de instrução da decisão a ser tomada à vista da vinculação, pertinência e viabilidade de se determinar a instauração da sede disciplinar e de se buscar potencial responsabilização do servidor”. (negritou-se)
Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR, Pós-Graduado em Direito Público na Universidade de Brasília - UnB. Foi Coordenador Jurídico da União dos Vereadores do Estado do Ceará - UVC. Atualmente é Procurador Federal da AGU, ocupou o cargo de Coordenador-Geral da CGF - Coordenação-Geral de Assistência Jurídica à Regularização Fundiária na Amazônia Legal da Procuradoria Federal Especializada do INCRA. E hoje ocupa o cargo comissionado de Procurador-Chefe Substituto da Procuradoria Federal da Agência Espacial Brasileira - AEB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PORTELA, Bruno Monteiro. As Infrações Disciplinares e sua Materialidade Formal e Material, à luz dos Ensinamentos da Controladoria-Geral da União Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jun 2012, 09:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29779/as-infracoes-disciplinares-e-sua-materialidade-formal-e-material-a-luz-dos-ensinamentos-da-controladoria-geral-da-uniao. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
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Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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