O presente artigo tem relevância para elucidação de questão recorrente no tocante ao direito contratual. E comum que instrumentos contratuais contenham previsão que o atraso injustificado no cumprimento da obrigação confere ao credor da obrigação a possibilidade de aplicar multa por força dessa irregularidade.
O atraso no fornecimento de bens, por exemplo, é fato que ocorre com frequência nas relações comerciais fundadas em contratos privados, bem como nas contratações públicas. Não é por outra razão que se adota como praxe a inclusão de cláusula que autoriza a imposição de multa por atraso no cumprimento do objeto contratual.
Desse modo, quando a Administração Pública celebra contrato administrativo para aquisição de cadeiras para instalação de uma repartição pública, por exemplo, é possível que o atraso na entrega desses objetos tenha sido incluído como falta contratual, na medida em que a parte contratante necessita dos itens contratados para que possa exercer sua atividade institucional, pois não há como uma repartição pública entrar em atividade sem que sejam disponibilizadas cadeiras para que o público em geral faça uso, bem como para que seus funcionários possam trabalhar.
Em razão da flexibilidade inerente às relações comerciais privadas, é comum que, em casos como esse, a parte fornecedora informe previamente o contratante sobre a impossibilidade de atender o cronograma contratual previamente estabelecido, de modo que o credor normalmente se omite quanto à possibilidade de rescindir o contrato ou de exigir alguma reparação pecuniária em razão desse atraso, pois, via de regra, mesmo com a mora, remanesce ao contratante o interesse pelo fornecimento dos itens. Essa é a tônica que permeia as contratações privadas
A questão que se propõe aqui se refere especificamente às contratações públicas, no sentido de saber se a anuência da Administração quanto ao recebimento do objeto, mesmo com atraso, implicaria necessariamente em dispensa ou renúncia da possibilidade de aplicar sanção.
Em razão da rigidez imposta à Administração, entende-se que em caso de atraso na entrega de bens, o Poder Público tem o dever de aplicar a penalidade contratualmente prevista, independentemente da possibilidade de purgação da mora por parte da contratada.
A eventual concessão de novo prazo de entrega, mais dilatado, não implica no afastamento da mora quanto à obrigação, pois a concessão de novo prazo reflete apenas a concessão da possibilidade de purgação da mora por parte da parte contratada.
Entendimento contrário impõe a necessidade de reconhecer que a concessão de novo prazo para entrega implicaria em novação[1] quanto à obrigação de atendimento ao prazo inicialmente fixado.
Todavia, novação é a constituição de obrigação nova, em substituição a outra, que fica extinta[2]. Para sua efetivação, há necessidade de preenchimento a alguns requisitos de validade, abaixo elencados:
a) Consentimento e Capacidade;
b) Existência da antiga obrigação;
c) Concomitância e validade;
d) Animus novandi
Desses requisitos, o que merece especial atenção refere-se ao animus novandi, que consiste na vontade de extinguir uma obrigação criando outra.
Ocorre que esse requisito impõe a necessidade de que se faça uma demonstração inequívoca de vontade de promover a novação da obrigação, pois ninguém pode ser surpreendido pela novação se assim não desejou previamente. Logo, a novação não pode ser presumida, mas sim expressa de forma clara pela parte credora.
Inexistindo animus novandi, impossível interpretar qualquer ato ou fato como novação. Ademais, em contratos administrativos, entende-se que a novação deve ser analisada com parcimônia, uma vez que o administrador somente pode agir com amparo legal ou contratual. Ademais, a novação somente pode ser admitida excepcionalmente, pois a aplicação das cláusulas do contrato administrativo não é uma faculdade conferida ao administrados, mas sim um dever.
Portanto, a simples concessão, pelo Poder Público, de novo prazo para cumprimento da obrigação pelo contratado em nada é incompatível com a aplicação de multa de mora.
Isso porque o Código Civil, ao tratar da purgação da mora, faz menção à possibilidade de adimplemento contratual pelo credor em atraso, mediante o cumprimento da prestação com os devidos juros e demais verbas indenizatórias:
Art. 401. Purga-se a mora:
I - por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta;
II - por parte do credor, oferecendo-se este a receber o pagamento e sujeitando-se aos efeitos da mora até a mesma data.
Entretanto, como já mencionado, é possível que a Administração entenda que, mesmo havendo atraso, não haja interesse em promover a rescisão contratual, pois isso implicaria na necessidade de realização de novo procedimento licitatório ou de dispensa, o que certamente pode demandar mais tempo do que o período indicado pelo contratado para efetivar a entrega do objeto.
Logo, facultar ao contratado o cumprimento do contrato, mesmo com atraso na entrega, é ato administrativo compatível com hipótese prevista no Código Civil, que admite a purgação da mora. Assim, essa conduta se refere à possibilidade de o devedor purgar a mora, mediante a concessão de novo prazo para sua efetivação.
De acordo com César Fiúza[3], purgar a mora é efetuar ou receber pagamento, ainda que tardiamente, de modo que, sendo a mora do devedor, a purga se dará efetuando este o pagamento com os devidos juros e demais verbas indenizatórias.
Nota-se, portanto, que é possível que a Administração conceda novo prazo para que o contratado promova a purgação da mora, que se realiza mediante o adimplemento da obrigação juntamente com os acréscimos decorrentes da mora, o que não se confunde com renúncia ao poder/dever de aplicar penalidade pelo atraso relativo ao primeiro prazo fixado contratualmente.
Esse entendimento, por sua vez, não se aplica aos casos em que o atraso tem justa causa. Entretanto, há necessidade de dilação probatória administrativa, a fim de verificar a legitimidade e veracidade dos motivos apresentados pela parte contratada.
Importante registrar que a aplicação de penalidade não exige a existência de qualquer prejuízo à parte credora da obrigação, pois eventual multa decorrente do descumprimento parcial terá natureza meramente moratória, e não de indenização por prejuízos causados pelo devedor. Todavia, constatados prejuízos, merecem reparo, mediante execução de garantia contratual, aplicação de multa indenizatória ou, ainda, ingresso com demanda judicial.
Aplicável a norma inscrita no art. 397 do Código Civil:
Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.
No mesmo sentido são as seguintes normas, também do Código Civil:
Art. 408. Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora.
(...)
Art. 411. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de mora, ou em segurança especial de outra cláusula determinada, terá o credor o arbítrio de exigir a satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da obrigação principal.
Diante desses dispositivos, nota-se que a lei não realizou qualquer relação entre a multa de mora e a constatação de prejuízos ao credor.
Além disso, como já mencionado, a multa de mora não tem natureza compensatória, mas simplesmente moratória, em que o simples atraso culpável no cumprimento da obrigação contratada pode ensejar a aplicação da cláusula penal, nos termos do entendimento de César Fiúza[4].
Portanto, a diferença entre essas modalidades inicia-se pelo núcleo de direitos a que cada uma visa proteger. A multa compensatória destina-se a evitar o inadimplemento integral da obrigação, a moratória dirige-se à proteção do fiel cumprimento da obrigação, quanto à forma, ao lugar e, primordialmente, ao tempo estipulados.
Assim, a existência de prejuízo não serve de critério orientador da multa de mora.
Por fim, convém ressaltar que a aplicação de penalidade prevista em contrato administrativo não é uma faculdade do administrador, mas sim um dever. Nesse sentido é o entendimento de Marçal Justen Filho – 13ª edição – fl. 845
“(...) O instrumento contratual deverá especificar as condições de aplicação da multa. Não se admite discricionariedade na aplicação de penalidades.”
Dessa forma, nas contratações públicas para aquisição de bens, inexistindo justa causa para o atraso na entrega do objeto contratual, a Administração deve aplicar penalidade mesmo nos casos em que optar por autorizar a purgação da mora por parte do contratado, tendo em vista que a multa moratória não se confunde com multa compensatória. Ademais, as cláusulas contratuais são de conhecimento das partes desde o início do procedimento administrativo voltado à contratação, de modo que a parte contratada deve adotar as diligências devidas para que consiga cumprir a demanda que se comprometeu atender.
[1] Código Civil - Art. 360. Dá-se a novação:
I - quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir a anterior;
(...)
[2] César Fiuza. Novo Direito Civil - Curso Completo. Editora Del Rey, 7ª edição, p. 272.
[3] César Fiuza. Novo Direito Civil - Curso Completo. Editora Del Rey, 7ª edição, p. 288.
[4] Direito Civil – Curso Completo. Editora Del Rey, 7ª edição, 2003, p.354.
Procuradora Federal em exercício junto ao CADE e especialista em direito público pela UnB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROQUE, Marcela Ali Tarif. Purgação da Mora e Multa Moratória nos Contratos Administrativos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jun 2012, 23:29. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29818/purgacao-da-mora-e-multa-moratoria-nos-contratos-administrativos. Acesso em: 08 dez 2024.
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