RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discorrer sobre o ensino jurídico no Brasil começando por um relato histórico e desaguando na crise que enfrenta na atualidade. Faz-se uma análise dos fatores determinantes desta crise, assim como as suas consequências para a efetivação dos direitos no Brasil, sobretudo os direitos humanos, e, por fim, busca-se apontar possíveis alternativas para contornar esta crise. Alternativas essas que vão desde uma completa reformulação do estudo das ciências jurídicas no Brasil, passando pela própria efetivação desse direito no caso concreto.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino jurídico; crise; saberes fragmentados; visão holística.
1 – INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende fazer um relato histórico do ensino jurídico no Brasil, desde o seu surgimento até o presente momento. Tratar-se-á também dos seus principais objetivos, e de como a educação de mera instrução praticada nas academias brasileiras, contribuiu para a atual crise, que dissocia o direito da realidade social cada vez mais complexa. Esse tipo de educação não ensina os alunos a terem uma visão crítica, se limitando a formar profissionais reprodutores de normas desvinculadas e descomprometidas com a realidade social. Em seguida, buscar-se-á apontar alternativas para a saída da crise. Far-se-á também uma análise crítica a fragmentação dos saberes consolidada pela filosofia cartesiana, e discorrer-se-á sobre a necessidade de estudar o direito de forma unificada e interligada com as demais áreas do conhecimento, ou seja, com uma visão holística. Por fim, serão apresentadas sugestões para uma reforma na educação e no pensamento, que modifique o ensino jurídico, aproximando-o da sociedade e tornando-o capaz de ser um importante vetor de transformação social, possibilitando a efetivação dos direitos fundamentais constantes das normas principiológicas constitucionais. Para tanto, tem-se como referencial teórico as obras de Edgar Morin, Frei Betto e Fritjof Capra, dentre outros.
2 – UMA VISÃO HOLÍSTICA DE INTEGRIDADE
Os primeiros cursos de direito surgiram no Brasil na data de 11 de Agosto de 1827 na cidade de Olinda e Recife e tinham como objetivos principais formar jovens da elite para ocupar cargos públicos e garantir a manutenção da classe dominante no poder. O acesso, como não podia ser diferente, era restrito a esses “donos do poder”. Desde o seu surgimento, o ensino jurídico no Brasil, teve como característica principal a transmissão de um “ensino bancário” (VITAGLIANO, 2011), onde o professor deposita conhecimentos que considera verdadeiros e o aluno memoriza e repete esse conhecimento, formando profissionais alheios a realidade social, senão vejamos:
Os cursos jurídicos desde a sua implementação no Brasil, tiveram como característica principal a transmissão um ensino jurídico meramente reprodutor, primando em preparar um operador do direito tecnicista, prisioneiro do mundo do “dever ser”. Este ensino era composto por disciplinas altamente positivadas, baseadas em um sistema de codificações, abstrações e formalismo procedimental e técnico. A realidade e as transformações da sociedade foram ignoradas, causando um descompasso do ensino (consequentemente do direito) com a realidade (às avessas com os novos tempos), criando uma crise de paradigma do direito, tendo como corolário, sérias complicações multifacetadas. (TAQUES, 2006, p. 1)
Esse tipo de educação meramente reprodutora permanece até hoje e contribuiu para a formação do direito instalada no país, e caracterizada pela impossibilidade de dar à sociedade as respostas para as suas necessidades mais elementares, como por exemplo, os direitos humanos. E não é apenas o ensino jurídico que está em crise, mais também o sujeito. Este encontra-se em uma crise de subjetividade que produz vítimas, pois as pessoas são extremamente individualistas e centradas em uma racionalidade cientificista impotente, senão vejamos:
No entanto, aqui estamos, cercados de enigmas, suportando sofrimentos – fomes, guerras, separações, discriminações, opressões; deparando-nos com os limites da existência – enfermidades, ignorância, incompreensões, velhice, morte; sem desfrutar das maravilhas só acessíveis a quem dispõe de recursos financeiros – moradias confortáveis, veículos possantes, telefones celulares, fax e computadores. (BETTO, 2008, p. 53).
Na mesma linha, segue Paulo Cesar Carbonari (2006, p.1), in verbis:
A noção de sujeito construída sobre a base da idéia de indivíduo, herança da modernidade, está em crise. A crise não significa que sujeito é um tema que deixou de ter sentido ou que está interditado. A crise é produtiva, pois aponta para a possibilidade de superação de abstrações contidas nesta noção e aponta para a possibilidade de construção de uma nova subjetividade.
No entanto, deve-se compreender a tal crise a luz dos Direitos Humanos, ou melhor, na necessidade de efetivá-los, o que resulta necessariamente numa educação complexa, pois, somente uma visão holística é capaz de unir os saberes fragmentados, senão vejamos:
Ao contrário do que supunha Einstein, Deus parece jogar dados com o Universo. As imutáveis e previsíveis leis da natureza em sua dimensão macroscópica não se aplicam à dimensão microscópica - eis a descoberta fundamental da física quântica. Na esfera do infinitamente pequeno, segundo o princípio quântico da indeterminação, o valor de todas as quantidades mensuráveis - velocidade e posição, momento e energia, por exemplo - está sujeito a resultados que permanecem no limite da incerteza. Isso significa que jamais teremos pleno conhecimento do mundo subatômico, onde os eventos não são, como pensava Newton, determinados necessariamente pelas causas que os precedem. Todas as respostas que, naquela dimensão, a natureza nos fornece, estarão inelutavelmente comprometidas por nossas perguntas. Essa limitação do conhecimento não estaria atualmente condicionada pelos recursos tecnológicos de que dispomos? Não se poderia criar, no futuro, um aparelho capaz de acompanhar o movimento do próton sem interferir na sua trajetória? A incerteza quântica não depende da qualidade técnica dos equipamentos utilizados na observação do mundo subatômico. Esta é uma limitação absoluta. (BETTO, 2008, p. 92).
Neste diapasão, a aprendizagem baseada em problemas e a metodologia da problematização são propostas que apresentam diferentes caminhos e afirmam que o ensino jurídico deve ter uma abordagem ativa, pelo menos é o que se depreende da lição de Neusi Aparecida Navas Berbel (1998, p. 1), in verbis: “O conhecimento de suas características não permite confundi-las, mas, com certeza, tomá-las como alternativas inspiradoras de um ensino inovador que ultrapasse a abordagem tradicional”. Assim, elas rompem com o paradigma positivista do século XIX, que consiste numa “educação bancária”, de instrução que escraviza o indivíduo e que forma meros reprodutores de normas, o que acabou gerando esta crise no ensino.
No nosso país, as primeiras faculdades de direito surgiram no século XIX, época em que Hans Kelsen, adepto do positivismo, critica o jusnaturalismo e torna o direito uma ciência, pois esta possuía método e objeto próprio. Ele acreditava que a norma seria pura. Em seguida, Miguel Reale, contraria este pensamento, e possibilita um corte epistemológico do paradigma positivista, ao afirmar, que é impossível uma ciência neutra e que a norma resulta de fato, valor e norma, conforme palavras do jus-filósofo, citadas no texto de Francisco da Cunha e Silva Neto (2005, p. 1), in verbis:
Direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito, não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor.
A universidade de direito não costuma cumprir o seu papel tão bem descrito pelo professor Vitagliano (2011), in verbis:
É necessário que se passe um pouco da fantasia para a realidade, que se aplique a Constituição, que se incentive o estudante a combater as forças opositoras a isso. O estudante deve deixar de ser mero espectador da realidade jurídica atual, deve participar ativamente dos processos de mudança, deve pesquisar, produzir ciência, manifestar-se acerca dos fatos que estão ocorrendo em nosso país. As faculdades devem ser laboratórios de pesquisas e devem não só incentivar como propiciar meios aos alunos para produzirem ciência. (VITAGLIANO, 2011, p.1)
A academia colocada no seu devido lugar e cumprindo a função para a qual existe é um pressuposto para formar cidadãos com saberes científicos, profissionais e humanos, tornando-se assim, antídoto para a educação bancária, que não estimula o indivíduo a pensar de forma crítica, e, possibilitou a fragmentação dos saberes a ponto de gerar a atual crise no ensino.
O professor Vitagliano (2011), aponta como saída para a crise, a aplicação de um método alternativo que rompe com o positivismo reducionista e com a visão mecanicista, buscando um novo paradigma que têm como limites os princípios gerais do direito. Este novo modelo, tem como base a desvinculação do juiz perante a lei na hora de decidir, devendo buscar antes o sentido da justiça, mais do que aplicar a letra da lei tendo como objetivo a realização concreta da justiça, senão vejamos:
O que a alternatividade não reconhece é a identificação do direito tão-só com a lei, nem que apenas o Estado produz direito, nem tampouco que se dê à norma cunho de dogma (verdade absoluta, inquestionável), o que é diverso da negativa à lei. Busca-se não a anomia, repito, mas uma dominação justa em oposição à ausência de denominação ou a formas injustas de dominação. O que a alternatividade busca é novo paradigma, com superação do legalismo estreito, mas tendo como limites os princípios gerais do direito, que são conquistas da humanidade. Seria ingenuidade, extrema e insustentável, uma construção teórica que outorgasse poderes quase teocráticos ao julgador. (VITAGLIANO, 2011, p. 1)
A visão Newtow-cartesiana fragmentou os saberes e somente uma visão holística é capaz de uni-los novamente. Essa visão é um desafio para a ciência e para os seres humanos e constitui-se numa das alternativas para a saída da crise, ao propor a ligação do direito com outras áreas do conhecimento, além de impedir a departamentalização do próprio conhecimento jurídico, haja vista que a sociedade e, por conseguinte, os seus problemas são cada vez mais complexos e interconectados. Na mesma linha Fritjof Capra (2008), defende a necessidade de uma nova visão de mundo, pois, segundo ele, vivemos em uma época de mudança, chegando a um ponto de mutação que envolve todo o planeta, mutação esta que nos leva a uma visão holística e sistêmica do saberes.
Neste diapasão, o direito deve ser estudado de maneira global para que se tenha uma visão interdisciplinar, constituindo em uma verdadeira ligação com as demais disciplinas e principalmente com os Direitos Humanos, pois saberes fragmentados não correspondem com a nossa realidade.
“Buscar os elementos de ligação entre as diferentes áreas do conhecimento é a grande tarefa do pesquisador detentor da visão de integridade. O olhar lançado pelo Holismo não se dá apenas dentro do sistema jurídico. É uma visão do sistema em relação aos demais sistemas e subsistemas.” (FAGÚNDEZ, 2000, pg. 85)
Na mesma linha:
“É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto.” (MORIN, 2008, p.89).
Assim, é necessária uma reforma na educação e no pensamento, que consequentemente modificará o ensino e a sociedade. Instaurando assim, um novo paradigma que traga consigo o desafio da complexidade, onde “o conhecimento das partes depende do todo e o conhecimento do todo depende do conhecimento das partes”. O objetivo desta reforma é educar os homens dentro de uma visão holística e sistêmica, onde os conhecimentos estejam ligados e haja união entre o pensamento científico e o pensamento humanista, sendo necessário para tanto a criação de um sistema aberto, capaz de enfrentar as incertezas do futuro dentro de uma visão transdisciplinar, pois, como visto, saberes fragmentados impedem de ver o global.
3 – CONCLUSÃO
O ensino jurídico no Brasil, desde o início, caracterizou-se por uma “educação bancária”, de mera instrução, e que tinha como função principal constituir o direito em um objeto de manipulação da elite dominante com vistas a sua permanência no poder. A academia empenhou-se em formar meros reprodutores de norma alheias e observadores da realidade social, distanciando o aluno de uma postura crítica, necessária para a consolidação, ainda que tardia (estamos em tempos de globalização) do Estado Social, o que só ocorrerá com a efetivação dos direitos fundamentais constantes das normas principiológicas da Carta Constitucional. A metodologia da problematização, parece ser uma boa alternativa a este paradigma positivista, apresentando um método de aprendizagem baseada em problemas concretos, que estimulam o aluno a pensar criticamente e produzir conhecimento, aproximando-o da complexidade da vida real. A sociedade é complexa, mais que isso, ela é dinâmica, e como tal reclama esse dinamismo também no direito, o que de pronto demonstra a limitação do alcance da norma positivada, estática no tempo e no espaço. Neste diapasão, a elevação da jurisprudência ao status de norma talvez seja o caminho. Mas não esta jurisprudência formada por reprodutores do direito e muito menos formada por juízes voluntaristas que arrumam princípio para justificar qualquer coisa. Fala-se aqui da jurisprudência formada pelos juristas que serão fruto de uma nova Universidade, mais antenada com uma visão holística e sistêmica, em que haja a união entre o pensamento científico e o humanista, e o direito seja relacionado com as demais áreas do conhecimento numa visão transdisciplinar, enfim, que una os saberes fragmentados em uma visão jurídica de integridade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERBEL, Neusi Aparecida Navas. A problematização e a aprendizagem baseada em problemas: diferentes termos ou diferentes caminhos? Interface — Comunicação, Saúde, Educação, v.2, n.2, 1998. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/icse/v2n2/08.pdf>. Acesso em 10 de maio de 2011.
BETTO, Frei. A obra do artista: uma visão holística do universo. 3º Ed. São Paulo: Ática, 2008.
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. 2° Ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
CARBONARI, Paulo César. Sujeito de direitos humanos: questões abertas e em construção. Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos. Natal, ano XVI. Disponível em: http : // www . dhnet . org .br / dados / livros / edh / br / fundamentos / 12_cap_2_artigo_04. Pdf. Acesso em : 02 de maio de 2011.
FAGUNDEZ, Paulo Roney Ávila. Direito e Holismo: introdução a uma visão jurídica de integridade. São Paulo: LTr, 2000.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução Eloá Jacobina. 15º Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 12º Ed. São Paulo: Editora Cortez, 2007.
TAQUES, Silvana. A crise do ensino jurídico: uma abordagem crítico-reflexiva perante a necessidade de transformação da realidade sócio-jurídica. Uberaba, ano 9, n. 752, 30 de julho de 2006. Disponível em: < http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1449>. Acesso em 30 de maio de 2011
VITAGLIANO, José Arnaldo. A Crise do Ensino Jurídico no Brasil e o Direito Alternativo. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 48, 1 dez. 2000. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/44>. Acesso em: 1 jun. 2011.
Graduanda em direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - AGES.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRITO, Daniela de Oliveira. O ensino jurídico e uma visão holística de integridade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jul 2012, 08:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29996/o-ensino-juridico-e-uma-visao-holistica-de-integridade. Acesso em: 23 dez 2024.
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