Talvez, condicionados por uma inércia preconceituosa, estamos sempre suscetíveis a apreender a personificação da bondade como característica plasmada em todos os idosos. Consoante esta mesma disposição dinâmica de nossa sensibilidade perceptiva estamos sempre prontos, também, a ver em todas as crianças a encarnação do ser angelical; em todas as mães, uma santa; em todos os pais, um herói; e em todos os espécimes hominídeos, um humano. Em vários fatos que nossa cotidianidade descortina somos remetidos a uma realidade que desmente o caráter de necessidade de tal testemunho. Naquele velhinho em quem nos apressamos em identificar o bondoso pode estar mascarado o pedófilo psicopata que ronda a espreita de suas vítimas inocentes; aquela criança que nos desperta a ternura pode encerrar uma latência da índole mais devastadoramente perversa e cruel, capaz de arrepiar-nos todos quando manifesta; a mãe que inspirou tantos poetas e evoca arquetipicamente Nossa Senhora Mãe de Jesus pode disfarçar uma natureza extremamente egoísta e perversa, capaz até de matar os próprios filhos se assim a convier; o pai que inspirou tantos roteiros cinematográficos protagonizando o herói e que arquetipicamente nos faz aflorar a imagem e semelhança do Deus Pai, pode configurar-se no mais odioso e desprezível genitor; o espécime hominídeo a quem lhe arrogamos qualidades humanas, movidos inercialmente por mecanismos culturais primordiais, pode, tão simplesmente, não ser humano, mas, apenas, um espécime que por suas características fenotípicas guardam semelhanças externas que nos induzem a confundi-lo com o ser humano e a resistir à constatação de que nele está plasmada toda hediondez de um ser bestial, que de humano não há nem resquícios. Com certeza, em face de tudo o que acima se está a considerar, é impossível experienciar algum transporte poético, pois tal realidade é dramaticamente dura e depressora. Contudo, não é sensato e muito menos sábio ignorá-la em razão de possíveis melindres. O preço que nos é cobrado a todos em sociedade e pago, por resistirmos em admitir esse aspecto sombrio que permeia a paisagem existencial de nossa realidade, é muito alto, cifrado em muitas injustiças; perdas de vidas significativas, sócioexistencialmente considerando da perspectiva da cidadania; impunidades; banalização da vida; inseguranças; sem falar nos graves transtornos psicopatológicos decorrentes de um contexto sóciocriminal angustiante e agravado pela inoperância ou impotência institucional do Estado. http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=.36511
A despeito do quão chocante o enfoque pontual de tais fatos possa nos parecer, ele nos expõe contingências verdadeiras e ignorá-las não nos coloca fora do alcance da sua radiância malévola. Impõe-se então confrontá-las numa disposição afirmativa de superação desses focos da maldade. Esta, no contexto histórico da pósmodernidade em que vivemos, é recorrentemente evitada como temática na especulação filosófica e antropológica. É como se a mesma não existisse na categoria de entidade. Isto acontece porque a hipocrisia, como traço cultural marcante e poderoso que permeia toda a nossa arquitetura civilizacional, funciona como um agente inibidor da hegemonia do Bem na sociedade como um todo. Ignorar o Mal numa perspectiva ontológica não me parece sensatamente razoável. Ele existe, e numa dimensão em que se pode aferir-lhe o alcance, a proporção, a potencialidade danosa, a prospecção de sua possibilidade futura, em suma, ele é real e encerra tanta objetividade em sua configuração ôntica quanto àquilo que carregamos no interior de nossos intestinos.
As culminações do pensamento pósmoderno, de Nietzsche para cá, se empenham em negar essa verdade, o que, talvez, explique algo do mundo perigoso e imprevisível em que vivemos. O fato é que se percebe claramente nos dias atuais uma conivência e tolerância difusas referentes à maldade manifesta de forma inequívoca e, muitas vezes, gratuita, nos mais diversos fatos que pontuam a nossa interatividade social.
A crise que atravessamos não se restringe, em suas implicações, apenas a esfera jurídico institucional, em que o mal é formalmente tipificado com vistas as suas conseqüências pertinentes, mas permeia todo o etos cultural no qual nos manifestamos e se traduz na forma mesquinha, desleal, indiferente e às vezes omissa no que diz respeito as nossas obrigações morais para com o próximo, seja o nosso colega de trabalho, parentes ou até mesmo desconhecidos.
A onda do politicamente correto tomou conta do planeta de tal forma que nomear e classificar objetivamente determinados comportamentos e ajuizá-los da forma pertinente pode custar-lhe constrangimentos, aborrecimentos e até processos judiciais. O cidadão vê-se de tal forma acabrunhado que a tudo se sujeita e sofre, porque se reagir pode ficar-lhe pior.
Veio-me a lembrança um fato ocorrido em Belo Horizonte na Avenida General Olímpio Mourão Filho, no Bairro Planalto, Região Norte, do qual se pode extrair uma faceta hilária. O dono de uma padaria, tendo sido assaltado várias vezes pelo mesmo facínora, na última vez em que tal fato repetira-se, decidiu reagir e, levando vantagem, deu-lhe um mol de peia que fez o bandido baixar hospital. O assaltante, através de seu advogado, moveu uma ação na justiça, no Fórum Lafayette, contra o dono da padaria por danos morais e lesão corporal. Não sei se vai obter sucesso. Entrevistado pelo repórter o seu advogado, com indignação, alegou que o seu cliente sofreu lesão corporal e se sentiu insultado e rebaixado por ter levado uma sova. Sem querer zombar da má sorte do proprietário da padaria, que, segundo declaração sua, trabalhou 20 anos para conseguir comprar esta padaria sem que nada lhe fosse fácil e que nunca precisou roubar para viver, não dá para segurar o riso ou até mesmo a gargalhada. Fatos assim, junto a muitos outros, verdadeiros folclores do nosso universo jurídico institucional, ensejam muito pensar.
A relativização, levada às últimas conseqüências como paradigma fundamental de uma avaliação moral sobre os comportamentos, eliminou por completo as balizas de ordem ética necessárias para definição das categorias de certo, de errado, do bem, do mal, do justo, do injusto, de tal forma que, de um modo geral, hoje em dia, todo mundo se sente a vontade para sacanear um colega de trabalho, puxar-lhe o tapete, prejudicá-lo funcionalmente, sem ter que ser repreendido pelos demais colegas ou incomodado de alguma forma, porque não há o que se repreender nem o que se reprovar segundo os parâmetros, se é que existem, em que a visão pósmoderna se fundamenta para ajuizar qualquer conduta de comportamento. Tudo fica reduzido a uma questão de perspectivação, de angulação, contextualização, de mais o que o paradigma da relativização absoluta possa oferecer para justificar, às vezes, o injustificável.
Este fenômeno pósmoderno que conforma toda a ambiência e dinâmica social por nós vivenciada se consubstancia no esgaçamento dos valores morais que um dia constituíram nossa arquitetura civilizacional. Tal fato repercute no âmbito total da nossa realidade com reflexo inclusive em todas as instituições que ordenam a vida em sociedade, tanto na forma como estão dispostas como na maneira pela qual são aplicadas. É o que se constata freqüentemente em situações onde a inversão de valores é de tal ordem manifesta e evidente que agride ao mais insensível dos hominídeos. O que resulta disso é a consolidação de uma lógica perversa a condicionar de modo vicioso todo o etos que nos constitui como povo. A inércia desse dinamismo ao longo de nossa história tem anestesiado a nossa consciência moral de tal forma que nada mais nos mobiliza, no sentido da indignação, da revolta, do protesto! Ser assaltado quase todo o dia no semáforo, no restaurante em que se está a almoçar, no Super Mercado fazendo compras ou na saída do Banco e ser humilhado pelos vagabundos incorporou a normalidade da nossa rotina de cidadão contribuinte. E não adianta fazer nenhuma imprecação em desabafo porque poderão tomar- lhe por louco. Isso é o normal. Por outro lado, quando acontece da polícia de elite, no exercício de sua função, enfrentar dez facínoras que estão a assaltar um super mercado, fortemente armados com pistolas, fuzis e metralhadoras, levar a melhor sobre eles, eliminando pelo menos uns seis do grupo, imediatamente surge um punhado de pessoas, inclusive algumas agentes representantes do Estado, para chorar a morte dos bandidos, pré-julgar os policiais da operação, antecipando-se, juntamente com a mídia, na execração destes profissionais da segurança e, por extensão, conspurcando a honra da Corporação a que pertencem. Os agentes representantes do Estado têm o seu salário pago pelos cidadãos contribuintes e não pelos bandidos, que não recolhem imposto de renda, posto que não haja tributação sobre o que resulta do roubo. Acontece de morrer bandidos nos confrontos com a polícia porque aqueles, por opção pessoal, abraçam uma atividade de altíssimo risco, por ocasião da qual outras pessoas, além deles próprios, incluindo os policiais, são expostas a perigos iminentes. Após qualquer operação policial no confronto com os facínoras em que resulte certo número de baixas destes, não é correto sair-se por aí alardeando que os bandidos foram executados, antecipando-se ao devido levantamento pericial do local da ocorrência com a conclusão formalmente expressa em um laudo, que integrará, como peça processual, o inquérito que venha a ser instruído com vista a ser encaminhado, pelo Ministério Público, a justiça, se assim for o caso. Só após corrido o processo legal na corte de justiça, transitado em julgado e prolatada a sentença judicial em que os policiais venham a ser condenados, aí sim, cabe a exprobação com a devida pena. O que certas pessoas não entendem, ou não querem entender, é que vivemos hoje uma indisfarçável guerra urbana em que a bandidagem cai em campo disposta a tudo ou nada, portando armamento de guerra, atropelando todos os princípios, valores, critérios, regras e direitos possíveis e imagináveis, impondo uma estratégia de ação na qual nada é inadmissível e todo qualquer custo é cabível, enquanto a parte adversária, no afã de confrontá-la em defesa da sociedade, tem que agir com seu espectro de ação muito prejudicado por todos os óbices que a formalidade institucional impõe. Na realidade é uma guerra desigual em que a vantagem operacional está sempre do lado do bandido e a sociedade é que dança no final. Não entendam que estou a advogar em favor de uma prática que tome a barbárie como paradigma de abordagem no confronto com o mundo do crime. Mas convenhamos que haja certos exageros em algumas disposições legais, que pontuam nosso ordenamento jurídico, eficazes em prodigalizar vantagens apenas a quem transgride em detrimento das vítimas. Por ex: A lei ampara o estuprador e homicida que esconde seu rosto diante das câmaras, em sua própria camisa, na intenção de impedir sua identificação pela sociedade. A autoridade de Estado não pode obrigar-lhe a se mostrar. Neste caso o legislador ao proteger o anonimato do criminoso ampliou a vulnerabilidade da sociedade que deveria preceder o facínora na exigência de proteção.
Há também o caso em que a polícia é impedida legalmente de monitorar a ação de bandidos assaltantes, com vista a antecipar-se aos mesmos, num esforço de proteger os cidadãos, porque a escuta telefônica só é admissível com autorização judicial. Ou seja; após todo o trâmite burocrático corrido para a obtenção da permissão desse procedimento investigativo, possivelmente o princípio da oportunidade já foi perdido juntamente com informações imprescindíveis e os bandidos já partiram para a operação marcando mais um tento em sua ação criminosa para a decepção da sociedade. Aqui, mais uma vez, o legislador cioso dos direitos dos bandidos se esquece que o cidadão, acatador dos preceitos da cidadania, contribuinte do fisco, é que tem que precedê-los no quesito segurança. Assim, a inversão de valores prossegue numa extensa seqüência de situações em que disposições legais favorecem mais aos bandidos do que protegem os cidadãos contribuintes que financiam toda a estrutura estatal. O cidadão, que prescinde de todo esse aparato legal protecionista pelo simples fato de ser cidadão, não estando em falta com a cidadania, se pergunta, perplexo, pela razão de ser do Estado. Pergunta-se também porque quando um deles é morto ao chegar em sua casa pela ação de assaltantes e sua família não recebe nem um cartão de condolências por qualquer um de certos agentes representantes do Estado, mas, quando a polícia confrontando bandidos mata alguns deles chega causar tanta indignação, mesmo antes da devida apuração formal, se for o caso, esgotada em todas as suas instâncias legais. Seria para a Polícia trabalhar insegura no confronto com a criminalidade? Nosso povo anda confuso e não se sente protegido enquanto a bandidagem cada dia que passa se torna mais ousada, cruel e desafiadora até mesmo com a polícia. A parte da população que é mais dramaticamente penalizada com isto é a de baixa renda que não anda em carros blindados e nem dispõe de segurança armada ao chegar em sua residência. E ainda por cima se vê achincalhada quando presencia através dos nossos noticiosos em sua televisão pessoas representando o Estado, e que não são parentes dos vagabundos mortos pela polícia, se indignarem com a ação desta, que estão atuando em defesa da sociedade expondo a sérios riscos as próprias vidas. É preciso mais sensibilidade e prudência do agente estatal, como da mídia em geral, ao posicionar-se, em cadeia nacional de comunicação, em face de tais situações, para não suscetibilizar o sentimento moral do povo, que, numa perspectiva etológica, tem sua percepção do que seja certo e do que seja errado. Sabe separar nitidamente quem seja cidadão de quem seja bandido e não coloca ambos credores dos mesmos direitos. Determinados discursos politicamente corretos se constituem, na maioria dos casos, um escárnio ao sofrimento desse povo já tão penalizado pela brabeza da vida, quando deixam escapar nas entrelinhas a clara preterição do homem de bem em relação ao bandido quando o que está em jogo é a precedência deste último em relação aquele no que diz respeito às garantias protetoras institucionais.
Desvio de conduta é um fato que se pode observar em pessoas no exercício da função de qualquer categoria laboral e não somente no meio policial. Obviamente uma vez constatado tal comportamento, através de indícios ou provas periciais formalmente consignadas, é imperativo reprová-lo e submetê-lo ao devido processo judicante. O que não é correto é o alardear levianamente precipitado de conclusões apressadas.
É bom, enquanto ainda é oportuno, acordar-se para esta realidade e não abusar mais, por muito tempo, da paciência desse povo que um dia pode nos surpreender a todos a exemplo do que se tem observado em povos de outros países.
http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,deus-a-possibilidade-do-humano,35550.html
Profº de Filosofia c/ Pós-Graduação em Filosofia da Ciência e da Linguagem. Contato: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, José da Silva. O Mal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 ago 2012, 08:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/30181/o-mal. Acesso em: 23 dez 2024.
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