Resumo: Durante as últimas duas décadas, a questão do Estado ou, mais especificamente, a discussão em torno da reforma do Estado e do aparelho estatal tornou-se tema central na vida das sociedades modernas. Devido à amplitude e abrangência da temática faz-se a delimitação da área de estudo, buscando analisar, a partir de uma revisão bibliográfica variada, os modelos de reforma em curso. No presente estudo: “Entre o gerencialismo e a gestão social: a reforma do Estado brasileiro” verificou-se a evolução destas vertentes – gerencial e societal – e apresentam-se os seus ideários e suas características, técnicas e políticas, seu desenvolvimento histórico visando construir categorias de análise facilitadoras do desenvolvimento de um exercício comparativo entre estas propostas de reforma do Estado brasileiro.
Introdução
Nos últimos anos a produção acadêmica brasileira sobre a administração pública e a reforma do aparelho estatal tem se desenvolvido significativamente. Neste contexto, a importância da realização de pesquisas e análises dos aspectos técnico- administrativos sob a perspectiva das ciências sociais vem se destacando. Ainda que cada uma delas apresente suas peculiaridades, seus “olhares”, as tentativas de se realizar análises integradas vêm revelando grandes possibilidades de leituras cruzadas e o estabelecimento de valorosas pontes de acesso a saberes distintos que nos conduzem ao desenvolvimento de um saber administrativo-técnico que contemple os aspectos políticos.
Historicamente, observa-se que o Estado brasileiro foi assumindo novas formas e dando origem a um aparelho que corporificou as características centrais das relações de produção capitalista em desenvolvimento no Brasil. Entre outras, destaca-se
o caráter centralizador do Estado, traço distintivo de uma sociedade hierarquizada desde seu nascedouro. A estatização das relações de produção reflete o caráter paternalista e
de classe do Estado brasileiro. Os interesses corporativados e a privatização do espaço público formam o conjunto de pêndulos que fazem o Estado declinar em favor dos interesses do capital em plena expansão.
O processo de evolução da gestão pública brasileira passa por três modelos básicos: da administração patrimonialista, para a administração burocrática - que aos poucos vem dando sinais de cansaço e de esgotamento, e, por fim, para a administração chamada gerencial voltada para eficiência na gestão da coisa pública. Paralelo a este processo, caminham, de forma independente, experiências de gestão estatal de caráter societal, com a valorização da participação popular.
Atualmente, as referências indicam a tendência de desestimular o Estado paternalista, no sentido de se alcançar um novo Estado voltado para o controle dos resultados e de ação descentralizada para alcançar seus objetivos sociais.
Para verificar a evolução destas vertentes, faz-se necessário identificar os seus ideários e suas características, técnicas e políticas. Neste artigo, o que se pretende é possibilitar esta leitura através do exame de literatura pertinente, bem como o desenvolvimento histórico destas vertentes visando construir categorias de análise facilitadoras do desenvolvimento de um exercício comparativo entre estas propostas ao Estado brasileiro.
A Evolução do Estado brasileiro
O processo de formação do Estado brasileiro tem suas origens ainda no período colonial, sustentado numa relação tutelar entre o Estado e nação, entretanto, é a partir da década de 1930 que se pode considerar o nascimento do Estado burocrático brasileiro, fortemente centralizado e intervencionista, e ao paralelo da uma classe empresarial altamente dependente de proteção e favores oficiais.
Antes da Revolução Getulista de 1930, segundo Ianni (1994, p.22), predominava no Brasil “um patrimonialismo que compreendia tanto o patriarcalismo da casa-grande e do sobrado como a mais brutal violência contra os movimentos populares no campo e na cidade”. A economia de fonte primária e exportadora e o exacerbado patrimonialismo em assuntos privados e públicos.
Desde então, o Brasil passa a integrar-se ao conjunto de países em busca de desenvolvimento. A criação de uma série de empresas estatais voltadas a dirigirem o desenvolvimento brasileiro a partir do Estado, transforma definitivamente o caráter sócio-econômico do Estado brasileiro.
Por ter ingressado tardiamente na revolução industrial, por ter permanecido durante séculos apenas como abastecedor dos centros capitalistas, com sua produção primária – em grande parte de produção extrativista - a burguesia nacional não dispunha de reservas de capital, nem mesmo de tecnologia para prover sua industrialização. Assim, o Estado teve que avocar para si a responsabilidade de promover tal desenvolvimento. IANNI (1994)
Faz-se necessário destacar que neste período grande parte da população brasileira ainda se concentrava no campo, onde os grandes conflitos ocorriam em características muito similares às dos séculos XVIII e XIX, o país vivia uma realidade social escravagista e semifeudal, de industrialização insipiente, onde os primeiros capitalistas não detinham nem o poder econômico, nem político, posto que este poder ainda se encontrava nas mãos da oligarquia agrária nacional.
Ao findar o segundo governo Vargas, vimos os rumos da economia nacional e da sociedade brasileira serem traçadas sob fortes pressões e tensões internas. Os trabalhadores se agitavam, mas detentores de pequeno poder de mobilização e reivindicação não conseguiram promover as mudanças institucionais importantes, continuando atrelados aos ditames do Estado burguês. Estreitava-se a aliança entre a burguesia emergente e a velha oligarquia com o objetivo de ver avançar o capitalismo centralizador divergentes apenas em discursos que ora defendiam o nacionalismo- desenvolvimentistas e, ora o internacionalismo como projeto para a nação.
Com o golpe militar, ocorrido em 31 de março de 1964, a burguesia nacionalista que vinha ampliando seus espaços, obstaculizado pelo crescimento da presença de capitais estrangeiros, significativos principalmente no período Jucelinista, vê seu projeto de hegemonia fracassar. Ainda que apoiando de certa forma o golpismo, o comando do Estado brasileiro nas mãos do militares, os nacionalistas vêem o surgimento de um Estado disposto a rearticular as forças conflitantes no topo e excluir todo e qualquer tipo de oposição além de manter a classe trabalhadora subjulgada. O desenvolvimento de uma estrutura administrativa excessivamente centralizada e a substituição da interferência direta por diversos organismos da administração indireta levou o Estado brasileiro a colocar em prática uma série de políticas públicas desarticuladas e fragmentadas. Percebe-se a existência de um Estado à deriva: sem planos gerais de longo alcance, sem mecanismos de participação popular ou parlamentar o Estado brasileiro caracteriza-se por um espaço de articulação de interesses privados e concessões que, ocultos pelas nuvens da burocracia excessiva e da turva desorganização institucional facilitadora de fraudes e corrupções.
Nesse período anterior a redemocratização “o capitalismo brasileiro assinala um caminho conservador de edificação do Welfare State, e, através de todas as distorções que examinamos, especifica-o praticamente negando o bem-estar prometido pelo progresso econômico”. (DRAIBE, 1993, p.31)
É pacifico afirmar a consideração sobre os avanços de correntes teóricas liberais e conservadoras com críticas contundentes aos que defendiam a atuação mais abrangente do Estado nos mais diversos espaços da sociedade e economia. É na crise econômica de 1970, onde a estagnação e inflação se agravam, que as correntes liberais passam a acusar o Estado como o grande vilão da depressão, as teses conservadoras afirmavam que a crise do Welfare State levara à crise econômica.
Ainda que seja, em nosso entendimento, mais coerente considerar que durante todo o processo de formação e estruturação das formas do Estado moderno no Brasil, não se tenha implementado mais do que apenas algumas políticas de bem-estar social, apenas uma face do Welfare State, que também ataca outras questões relevantes
(o desemprego, a melhoria dos salários, o controle macro-econômico), além do mero atendimento assistencial, e não tenhamos vivenciado por um todo a experiência do advento do Estado de Bem-Estar Social com a mera adoção de políticas básicas de assistência social, vale destacar que a crise do Welfare State é uma crise de caráter financeiro-fiscal, aspectos relevantes de uma crise econômica.
A diminuição das receitas públicas devido à crise econômica produzirá a redução de investimentos e financiamentos dos programas sociais. Os programas sociais não podem ser realizados através da cobrança de impostos para as massas já economicamente desequilibradas, assim a crise fiscal do Estado, se expressa nos gastos sociais que aumentam cada vez mais diante dos mesmos níveis de arrecadação.
Desde o fim dos anos 70 acompanhamos avaliações, quase que unânimes, no sentido de que a excessiva centralização decisória do governo, patrocinada pelo regime militar, havia produzido, além da ausência de participação popular no processo decisório, a corrupção e a ineficiência da máquina pública. Esta avaliação alimentou grandes reivindicações democráticas e, dentre elas, a descentralização das políticas públicas. Assim, no Brasil dos anos 80, a centralização e autoritarismo ambos encarados como filhos da ditadura, ao passo que descentralização, democratização do processo decisório e eficiência na gestão pública andariam automaticamente juntas.
Cobrindo um período que se estendeu desde o pós-guerra até os meados dos anos de 1980, uma ampla estrutura institucional intervencionista e regulatória foram montadas, e havia a presença marcante do Estado em todos os setores da vida econômica do país. A condução do processo de desenvolvimento e modernização, de uma forma ou de outra, adotou um modelo de corte keynesiano – com superdimensionamento do espectro estatal. Sob essa condição surgiu, então, no país, um tipo de capitalismo ancorado e dependente da proteção do setor público, diga-se estatal.
No plano interno, a predominância do enfoque neoliberal nos leva a crer que as raízes da crise se encontram no gigantismo estatal, levando a reformas que propõem fundamentalmente a redução de gastos e do déficit público, elevando à primazia do mercado a alocação de recursos e a busca de eficiência.
Os desdobramentos históricos da década de 1980 impuseram à sociedade brasileira um momento de encontro entre o passado de superdimensionamento do Estado e a necessidade de desenvolver-se. Encontro que se dá ao mesmo tempo em que
a estrutura estatal não apresenta condições de responder aos problemas e a crise econômica que o país enfrentava. Adversidades que não tinham os mesmos fundamentos das crises anteriores e que exigia medidas que fugiam ao padrão de solução tradicional.
A questão que se apresentava não era apenas a de restabelecimento do regime democrático, com valores políticos liberais, nem somente de colocar a economia no curso da acumulação que se estabelecera com o processo de industrialização. A crise do Estado, nos anos 80, que se manifestara claramente por meio de sua face fiscal, da face do modo de intervenção do Estado, da face da forma burocrática pela qual o Estado é administrado e da face política. (PEREIRA, 1998)
A busca de um novo arcabouço institucional, que vem sendo tentada desde o início da fase de redemocratização, mostra que as transformações não chegaram a atingir profundamente o ordenamento social, muito embora a Carta Constitucional de 1988 tenha adotado dispositivos incorporadores de importantes avanços no campo social, esses não se mostraram capazes de democratizar profundamente as relações do Estado com a sociedade.
Esse distanciamento entre Estado e sociedade é plenamente observável diante da continuada edição de Medidas Provisórias – instrumentos que re-estabelecem as prerrogativas dos Decretos-Leis que serviram ao poder discricionário dos governos militares.
A manutenção deste artifício permite o fortalecimento do circuito de poder, a despeito da redemocratização em pauta, e “no que tange à produção de políticas, portanto o que se tem observado é a proliferação de decisões tomadas com total liberdade do Executivo, sem consulta, sem transparência, por um pequeno círculo que se localiza em instâncias enclausuradas da alta burocracia governamental”. (DINIZ, 1998, p.34)
Nas últimas décadas, engajados no processo de redemocratização, os brasileiros buscam reformar o Estado e construir um modelo de gestão pública capaz de torná-lo mais aberto às necessidades dos cidadãos, mais transparentes e voltado para o interesse público, mais eficiente na coordenação da economia e dos serviços públicos.
A partir dos meados da década de 1990 as políticas de liberalização econômica e de reestruturação produtiva do Estado solaparam as bases ainda resistentes
do Estado desenvolvimentista. O processo de privatização, a reforma administrativa do setor público, a extinção de vários órgãos e autarquias com o conseqüente sucateamento
da inteligência nacional com a redução de recursos para pesquisa, tecnologia e infra- estrutura são traços distintivos e responsáveis por assegurar uma transformação radical das relações entre Estado e sociedade rumo à concepção liberal de mercado.
Nesse processo de redefinição da agenda de reforma, disputaram espaço internamente, por um lado o ideário neoliberal, consubstaciado na doutrina do Consenso de Washington, que ganha força nos países centrais, a partir do qual o próprio Estado nacional desenvolvimentista seria o gerador de sua crise, apresentando programas de ajustes voltados ao desmantelamento deste Estado e para reformas que reduzam o tamanho do Estado, desregulamentem a economia e garantam a abertura do mercado; e por outro, o esforço democrático manifesto nas experiências alternativas de gestão pública expressos nos conselhos gestores e nos orçamentos participativos que tem suas raízes fincadas no ideário dos herdeiros políticos das mobilizações populares contra a ditadura e a pela redemocratização do país.
BRASIL: dois modelos de gestão pública
O Brasil, ainda que não tenha tido um Estado de Bem-Estar Social, nos moldes das economias avançadas, uma vez que o estado nacional-desenvolvimentista tenha produzido muito mais acúmulo de capital do que força de trabalho, também se vê diante situação de crise similar dos países de Welfare State desenvolvido. Ocorre que no caso brasileiro esta crise se amplia frente às críticas ao patrimonialismo, ao autoritarismo e ao centralismo do Estado brasileiro partindo para sua reinvenção e redefinição.
É válido se registrar que a crise do Estado e a redemocratização do país que se processou a partir dos anos 80, trouxeram à tona dois projetos políticos: um considerado como de corte neo-liberal, que defende a administração pública gerencial, e outro considerado como democrático progressista calcado nas experiências inovadoras de gestão pública caracterizadas como democrático-populares.
A Administração Pública Gerencial
A administração pública gerencial brasileira tem sua origem no intenso debate que se deu nas décadas de 1980 e 1990 sobre os baixos índices de credibilidade e da crise de governabilidade do Estado em toda a América Latina. Por sua vez, teve seu debate situado no contexto do movimento internacional de reforma do aparelho do Estado iniciado na América do Norte e Europa – mais precisamente nos governos Reagan, nos Estados Unidos e Thatcher, na Inglaterra, com referência teórica constituída por diversas matizes, tendo como precursores Osborne e Gaebler.
Nesses países, o movimento gerencialista do setor público é baseado na cultura de empreendedorismo, reflexo do capitalismo flexível consolidado nas últimas décadas através da criação de um código de valores e condutas que orientam a organização das atividades de forma a garantir o controle, a competitividade e a eficiência nos mais elevados índices. (HARVEY, 1992)
No Brasil este movimento ganhou força, nos anos 90, com os debates, promovidos pelo governo brasileiro, sobre a reforma gerencial do Estado e o desenvolvimento da administração pública gerencial. A crise do nacional desenvolvimentismo e as críticas ao patrimonialismo e ao autoritarismo do estado brasileiro estimulou a emergência de um consenso político de caráter liberal, que sustentou a formação de uma ampla aliança social-liberal, que se sagrou vitoriosa no pleito eleitoral de 1989, levando o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) ao
poder.
As experiências práticas pelo modelo gerencial, baseadas no pluralismo organizacional elevado sobre bases pós-burocráticas – também conhecida como nova administração pública, emergiram como modelo ideal para o gerenciamento do Estado reformado pela adequação ao diagnóstico de crise do Estado realizado pela aliança social-liberal e também pelo alinhamento em relação às recomendações do Consenso de Washington para os países latino-americanos.
Em atendimento as orientações do Banco Mundial (FRISCHTAK, 1994) os debates sobre a reforma do Estado brasileiro aponta para a alternativa de estruturar a sua “governance” - a capacidade governamental de criar e assegurar a prevalência de regras universalistas aplicáveis às transações sociais e econômicas capazes de promover arranjos cooperativos eficientes e de custos reduzidos - através da escolha de um Estado distanciado das tarefas desenvolvimentistas e de provisão, para fortalecer as funções de um Estado promotor e regulador do desenvolvimento. Opção esta diagnosticável por processos básicos da reforma do Estado no Brasil, a citar: (1) delimitação das funções do Estado, minimizadas através das privatizações, terceirizações e “publicização”(criação de um terceiro setor: “público-não-estatal”); (2) redução do grau de interferência do estado, transformando-o em promotor da capacidade competitiva do país no plano internacional, ao invés de promotor do mercado interno; (3) aplicação de ajuste fiscal e organizacional, como forma de garantir a autonomia financeira do Estado.
Assim, se implantaria no Brasil o processo de reforma administrativa de caráter gerencial em substituição ao modelo burocrático vigente, e a separação entre a formulação de políticas públicas e sua execução, buscando o fortalecimento da governabilidade por mecanismos de responsabilização e de contratualização.
De acordo com Pereira (1997) essa mudança de postura indica a opção por um Estado regulador das relações contratuais ou das concessões aos agentes não estatais
de atividades de interesse ou relevância pública, como as áreas de infraestrutura e de serviços sociais.
Diante da opção governamental pela adoção do modelo gerencial, como forma de desconstrução do modelo burocrático, de sua rigidez e do desvelamento de sua neutralidade, o Estado brasileiro, segundo Pereira (1997), busca a introdução de práticas de gestão que considerem a interação do ambiente organizacional com o ambiente social. Neste sentido, Abrucio (1997) apresenta como principais tendências:
- a introdução de mecanismos de avaliação de desempenho;
- o estabelecimento do conceito de planejamento estratégico;
- a flexibilização das regras orientadoras da burocracia pública;
- a profissionalização do serviço público;
- o incentivo à realização de parcerias com o setor privado e com organizações não governamentais;
- horizontalização da estrutura hierárquica e;
- a descentralização política.
Para Pereira (1998), a nova administração pública se diferencia da administração pública burocrática, pois ao seguir os princípios do gerencialismo procura: (1) melhorar as decisões estratégicas do governo e da burocracia; (2) garantir a propriedade e os contratos, promovendo o bom funcionamento dos mercados; (3) promover a capacitação e a autonomia gerencial do administrador público; e por fim (4) assegurar a democracia através da prestação de serviços públicos orientados para o cidadão-cliente e controlados pela sociedade.
A Administração Pública Societal
Originária de uma vertente ligada à tradição mobilizatória brasileira, que teve seu auge na década de 1960 durante o governo João Goulart, a proposta de administração pública societal teve seu desenvolvimento barrado pelo golpe militar de
1964.
Inspirada pelos ideais da Teologia da Libertação e da educação popular, as mobilizações populares encontraram abrigo na igreja católica, que catalisou toda a discussão dos problemas coletivos nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), reemergindo na década de 1970, após o mais nefasto período da repressão militar.
Gohn (1995) destaca as CEBs como o espaço alternativo para a mobilização política, uma vez que estimulavam a participação popular no debate das dificuldades cotidianas e para a formação de novas lideranças populares, originando reivindicações populares junto ao poder público (transportes, habitação, saúde, puxavam uma interminável fila de problemas). O autor ressalta o protagonismo de algumas mobilizações por direitos de cidadania: é o caso dos movimentos contra o custo de vida, o desemprego, a repressão política e a opressão das minorias. Das CEBs vieram os centro populares, organizações de base comunitária, com assessores, educadores e organizadores populares; e estes, a partir da década de 1980 passaram a ser denominados como organizações não governamentais (ONGs).
Na esteira destes movimentos, no âmbito do processo de redemocratização do país, tomou impulso uma agenda de reforma inspirada em iniciativas inovadoras levadas à prática por governos estaduais e municipais de oposição. Tratava-se de implementar mudanças não apenas no regime político, mas também no nível das políticas públicas, do Estado em ação (O’Donnell, 1989), procurando se superar as críticas do padrão brasileiro de intervenção do Estado, privilegiando-se, a partir de então, aspectos institucionais e aqueles relativos ao processo de articulação entre o Estado e sociedade.
É a partir dos exemplos, das iniciativas de participação nos governos de Franco Montoro, em São Paulo e José Richa, no Paraná, bem como nos mutirões de casas populares e hortas comunitárias de Lages, em Santa Catarina, dentre outras tantas experiências, que se consolida no campo movimentalista, expressão apresentada por Doimo (1995), no qual transitavam os movimentos populares e sociais, o movimento sindical, as pastorais sociais, os partidos políticos de esquerda e de centro-esquerda e as ONGs. Entre esta diversidade de movimentos, tendências e matizes também se degladiavam. Umas buscando tencionar e alterar a forma de intervenção estatal, outras encarando “de frente” a forma de se fazer política e de administrar o Estado tentavam romper com a forma centralizada e autoritária de exercício do poder político.
A inserção da participação popular na gestão pública é o cerne desta mobilização, que diante de sua heterogeneidade mesclava reivindicações de cidadania e no fortalecimento da sociedade civil na condução da vida política do país, questionando o papel do Estado como protagonista da gestão estatal.
Draibe (1992) destaca que as propostas, neste momento enfatizavam a descentralização e a participação dos cidadãos na formulação e na implantação das políticas públicas, posto que estas, a descentralização e a participação, eram vistas como ingredientes fundamentais desta orientação voltada para a garantia da eqüidade e para a inclusão de novos segmentos da população na esfera do atendimento estatal.
Não resta dúvidas que estas organizações e movimentos aproveitaram este momento político para reforçar suas ações de lobby frente ao Estado e conseguir vantagens e concessões para o desenvolvimento de sua intervenção, se mostrando capazes de atender melhor que o Estado, às questões sociais dentro de um processo político de caráter autônomo. (SANTOS, 2005)
Neste contexto, multiplicaram-se pelo país governos com propostas inovadoras de gestão pública, que abrigaram diferentes experiências de participação social. Experiências estas construídas a partir de uma nova teoria da democracia que articula uma política progressista à virtuosa lógica da reciprocidade própria do princípio da comunidade e à lógica da cidadania própria do princípio da formação do Estado. Santos (2005) argumenta em favor da existência do Estado como um novíssimo movimento social, como fundamento e causa de toda a luta política transformadora de uma cidadania abstrata em um exercício efetivo de cidadania.
De um modo geral, estes novos formatos institucionais ampliam e consolidam a articulação entre sociedade civil e Estado, enfatizando o desenvolvimento endógeno facilitado através de iniciativas de co-gestão e de participação dos cidadãos nas decisões públicas, possíveis a partir dos Fóruns Temáticos, Audiências Públicas, dos Conselhos Gestores e dos Orçamentos Participativos, experiências disseminadas em diversas administrações públicas, das mais diversas cores partidárias.
Por se tratar de um projeto que se encontra em construção, cujas forças políticas que, historicamente, o representa se encontrem em constante processo de consolidação e distanciamento, a vertente societal não é monopólio de um determinado partido ou força política, nem dispõe da mesma clareza e consenso da vertente gerencial em relação aos objetivos e características de seu projeto político.
Buscando concluir
Durante a década de 1990, enquanto se implantava no Brasil a reforma gerencial da administração pública, também se encontrava em curso um novo paradigma reformista: o Estado como novíssimo movimento social, expressão utilizada por Santos (2005), como forma de combinar democracia representativa e participativa.
Ambas as vertentes se proclamam portadoras de um novo modelo de gestão pública e afirmam estar em busca da ampliação da democracia no país. A primeira de caráter gerencial, que se constituiu no Brasil durante os anos 90, no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), e não fora negado pelo atual governo. Esta corresponde à chegada da administração pública a era denominada pós-burocrática, que sem superá-la propõe a adoção de expedientes que primem pela eficiência, eficácia e efetividade das ações governamentais, além de avaliar os processos e resultados, propiciando o reordenamento destas ações quando se fizer necessário.
A segunda corrente, de vertente societal, enfatiza a defesa de propostas de descentralização das políticas públicas e recursos, tendo a participação dos cidadãos na formulação e aplicação destas. Diferentemente da abordagem neo-liberal gerencial, esta não pretende o desmantelamento do Estado, mas sim a reforma da ação estatal adequada aos desafios que se apresentam a nação e ao desenvolvimento da cidadania social.
O exame da literatura nos oferece a possibilidade de argumentar que a vertente gerencial possui ênfase destacada nas dimensões econômico-financeira e institucional-administrativa, com projeto centrado no ajuste estrutural do aparelho estatal, com foco nas questões administrativas. Por sua vez, a gestão social voltada à dimensão sócio-política, enfatiza a participação social como forma de estruturar um projeto que repense o desenvolvimento brasileiro, a estrutura do aparelho do Estado e o paradigma de gestão.
A construção de um Estado moderno, a serviço da sociedade brasileira, não é tarefa isolada de um governo e não pode ser executada pela simples intervenção técnica, supostamente neutra, que mereça receber esta ou aquela denominação. Em verdade corresponde a um processo político submetido à relação do Estado e sociedade civil, possível a partir da expansão da esfera pública.
Trata-se de um jogo político em que diferentes atores agem de forma a maximizar e tornar prioridade governamental suas demandas. De concreto, espera-se do Estado o seu esforço para o necessário atendimento dessas demandas como direitos fundamentais do cidadão e, libertando-se das forças econômicas e simbólicas dos países dominantes, que repense sua atuação pautada em valores como a solidariedade, a responsabilidade social, a participação política-cidadã e as relações democráticas. Por sua vez da cidadania eleva-se a necessidade de lutar pela democratização e da desprivatização do Estado, como forma de tornar efetivamente público aquilo que é estatal.
Referências
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FERREIRA, A.L.S. Lages, um jeito de governar. Pólis, n.5, 1991.
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OSBORNE, David e GAEBLER, Ted. Reinventar o governo. Brasília: MH Comunicação, 6.ed. 1995.
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Reforma do estado nos anos 90: Lógica e
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SANTOS, Boaventura de Souza. Reinventar la democracia, reiventar lo estado. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
Bacharel em Direito pela UNESC e Mestre em Direito pela UFSC. Atua como professor da disciplina de Sociologia Jurídica nos cursos de Direito no UNIBAVE (Orleans/SC) e na ESUCRI (Criciúma/SC)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FELISBERTO, Nilzo. A Reforma do Estado Brasileiro: gerencialismo e gestão social em debate Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 ago 2012, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/30436/a-reforma-do-estado-brasileiro-gerencialismo-e-gestao-social-em-debate. Acesso em: 23 dez 2024.
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