A Lei n. 9.099/95 instituidora dos Juizados Especiais foi criada com o escopo de promover a cidadania através do acesso a justiça pelos cidadãos com a promessa inicial de informalidade, celeridade e rápida solução de litígios, sem que com isso os houvesse a necessidade de custear altos gastos com advogados (art.9, que trata dispensa de causídico em causa de valor até 20 (vinte) salários mínimos) e com custas, despesas processuais e honorários advocatícios em primeira instancia, art. 55). Não obstante, referidas benesses não foram estendidas ao duplo grau de jurisdição, implicando a parte que busca a tutela jurisdicional na hipótese de inconformismo com a decisão singular, que assuma a responsabilidade pelas custas e despesas processuais, bem como com os honorários advocatícios na hipótese de improvido o recurso. Referida circunstancia, tem sido utilizada por alguns julgadores como óbice restritivo do acesso ao duplo grau de jurisdição.
Inobstante a incansável busca pela minimização e redução da lentidão do trâmite processual, através da restrição econômica ao recurso para evitar a interposição indiscriminada não se pode deixar de lado as garantias fundamentais do processo civil tradicional, o que exige cautela na implementação das reformas (CAPPELLETTI e GARTH; 1988, p. 162). Na contraposição de valores e normas, o princípio do duplo grau de jurisdição esta incluso no rol dos direitos e garantias fundamentais do cidadão e tem primordial importância na defesa de direitos, já que visa abolir decisões não alinhadas com os valores supremos da justiça.
No mister da advocacia este Causídico tem se deparado com referidos filtros limitadores, criados em decisões, notadamente nos Juizados Especiais Cíveis, que “supostamente motivadas” em alegações infundadas como: de exercício de profissão em carteira, percepção de renda fixa na media de um cidadão comum, contratação de advogado particular, lugar onde mora, carro que possui, valor que atribui ao pedido, contratos que assina e etc, que colidem diretamente com a natureza da lei instituidora da justiça gratuita 1.060/50, que a mens legis conduz ao acatamento da presunção de hipossuficiência àquele que a alegue.
A lei 1.060/50 tem a função de assegurar os direitos mínimos constitucionalmente devidos aos cidadãos através do acesso a justiça sem qualquer ônus, desde observados estritamente os requisitos nela delineados, possibilitando que este venha a presença do poder judiciário sem prejuízo de ter cerceado ou ameaçado o custeio cotidiano e atual das despesas com saúde, educação, alimentação, moradia, lazer, segurança (art. 6º da CF/88), direitos estes mínimos ao desiderato da vivencia em condições de dignidade (art. 1º, III da CF/88), valores estes em que se funda o Estado Democrático de Direito que vivemos.
De fato, não se descura que a presunção de hipossuficiência financeira albergada pela lei 1.060/50 é relativa, dotada de presunção iuris tantum, e opera-se mediante requerimento expresso da parte (art. 4º) sob pena de responsabilidade pela declaração prestada, de modo que impera normativamente a presunção de hipossuficiência até PROVA EM CONTRÁRIO a quem sustentar tal condição nos termos dessa lei (§1°).
Nesta perspectiva, impõe-se ao magistrado o acatamento da presunção atribuída pela lei 1.060/50, uma vez que o critério normativo informado, não se esbarra na demonstração inequívoca pelo postulante de uma situação de miserabilidade ou indigência, mas sim pela ideia de insuficiência ou prejudicialidade atual de recursos em prejuízo próprio e do orçamento familiar, caso seja submetido ao custeio de custas, despesas e honorários advocatícios ou periciais.
Não se descura que nosso ordenamento jurídico não impõe ao magistrado o acatamento exclusivo da declaração de hipossuficiência como requisito automático para o deferimento do beneficio de assistência judiciária, todavia, a lei 1.060/50 faculta ao julgador que na hipótese de duvidas pautadas em “FUNDADAS RAZÕES” (art. 5º da Lei nº 1.060/50) tendo por lastro as provas havidas nos autos, as valorize para o fim de determinar ao postulante que preste outros esclarecimentos em suporte aos já havidos nos autos, e na hipótese de inércia injustificada, proceda o indeferimento do pedido. Neste sentido, entende-se ser vedado ao magistrado o indeferimento da gratuidade à revelia do postulante, tendo por base desconfianças e meros indícios intrinsicamente deduzidos pelo julgador. Lembre-se, o livre convencimento é sempre motivado (art. 93, IX da CF/88), com base em elementos de prova verossímeis e não presumíveis havidos nos autos. A presunção sempre milita em favor do postulante, aplicando-se, subsidiariamente o principio do in dubio pro misero.
O magistrado ao valorar as provas constantes dos autos, deve pautar-se pela situação atual e iminente do postulante, levando-se em conta a isonomia, notadamente no aspecto do trato sem distinção de qualquer natureza, não obstante, observando a isonomia no aspecto lógico pelo trato dos desiguais na medida de suas desigualdades. Cada qual é um qual, e em que pese o generalismo ser norteador da atual justiça, cada individuo deve ser tratado segundo suas acepções de vida e convívio em sociedade.
Deste modo, como consequência do principio da adstrição, impõe-se ao magistrado que na hipótese de duvidas tendo por base os elementos dos autos que o convençam da existência de fundadas razões pelo indeferimento, que determine a parte postulante da gratuidade que preste outras provas possíveis ou esclarecedoras sob o elemento de duvida, tudo, sob pena de não o fazendo, por ficção legal, manter-se a presunção de hipossuficiência contida na norma de regência.
Destarte, decisões judiciais pelo indeferimento da justiça gratuita, pautadas nas matérias a seguir dissociam-se do ideal justiça, pois tiradas com o manifesto caráter de impedir ao jurisdicionado que tenha o livre acesso ao duplo grau de jurisdição, ferramenta esta caracterizada como “gargalo da justiça”, impedindo o cidadão ao pleno acesso a justiça em todas as suas instancias.
A fundamentação pelo indeferimento pautada em emprego formal com percepção de salário/remuneração, não se sustenta, eis que renda abaixo de 3 (três) salários mínimos afigura-se como critério adotado pela Defensoria Publica, uma vez que referida estimativa é limitativa a condição de dignidade humana através da realização dos direitos sociais mínimos no ambiente familiar do cidadão.
A fundamentação pelo indeferimento pautada na contratação de advogado para defesa dos interesses da parte requerente da gratuidade da justiça, é frágil Isso porque, a atividade advocatícia não importa no necessário pagamento antecipado de honorários, podendo o causídico convencionar seu recebimento em caso de êxito na demanda, o que não implica em prejuízo econômico do cliente. Ademais restou consolidado que a assistência de advogado particular, por si só, para afastar a presunção legal (RT 700/119; JTJ 320/89, 301/383). Ademais, destaque-se que na forma do art. 9º da lei 9.099/95, as causas com valor superior a 20 (vinte) salários mínimos é obrigatória a assistência de advogado.
A fundamentação pelo indeferimento pautada na atribuição do valor da causa, não encontra respaldo legal em nosso ordenamento jurídico, haja vista que o valor da causa decorrera do pedido e da causa de pedir, de modo que a parte demandante narrara em sua formulação os motivos pelo qual entende ser justa e razoável a pretensão deduzida. Cabe ao juízo analisar o caso concreto, tratando os desiguais na medida de suas desigualdades, não fazendo comparações das condições e critérios de vantagem econômica havidas entre as partes do litigio na hipótese de recurso ou não recurso.
O indeferimento sob o argumento do lugar onde mora, carro que possui ou os empréstimos ou contratos que assinou, também afiguram-se frágeis no sentido de que para a aferição da condição de hipossuficiência econômica, deve ser levada em consideração a situação atual e momentânea da parte que a postula, sob pena de inviabilizar-se o livre acesso a justiça àqueles que comprovadamente a demonstrem. Ademais, a lei em comento faculta ao adverso a qualquer momento mediante comprovação requerer a juízo que revogue o beneficio concedido.
Gize-se que a lei 1.060/50, impõe ao magistrado a observância de FUNDADAS RAZÕES (art. 5º), para a emenda ou indeferimento do beneficio da gratuidade da justiça e seus consectários, tendo por lastro o suporte probatório existente nos autos. Gozando a norma de presunção iuris tantum, apenas pode ser afastada a condição de hipossuficiência em razão de provas em sentido contrario. Repita-se que suposições, indícios ou desconfianças não possuem o suporte probatório apto a afastar a presunção de veracidade.
Ocorre que alguns julgadores, desprezando as provas havidas nos autos e a presunção que destas deriva, optam por ignorar a boa lógica jurídica e contrariando a norma do art. 4º, § 1º, da Lei 1.060/50, invertem a presunção legal e, sem fundadas razões de direito ou elementos concretos de convicção, e passam a exigir que o postulante da gratuidade da justiça, comprovem fato negativo, ou seja, de não terem condições de arcar com as despesas do processo.
Frise-se que, a lei de assistência judiciária gratuita, impõe no art. 7º, que a parte adversa reunindo condições para tanto, impugne o beneficio pleiteado e prove a inexistência ou o desaparecimento dos requisitos essenciais à sua concessão. Quis o legislador que referido encargo fosse atribuída a parte adversa, em razão de ser esta sujeito jurídico na relação e detentor de provas e informações daquele com quem fez surgir a relação jurídica.
Deve ser ressaltado, ainda, que o indeferimento da gratuidade da justiça, sem fundadas razões para fazê-lo, pode implicar em negativa de acesso à justiça ao hipossuficiente, o que contraria o disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. Temos que é impossível concretizar-se a cidadania se não houver disponibilidade de mecanismos de acesso efetivo a um aparato jurisdicional, que venha atender aos anseios por justiça.
BIBLIOGRAFIA
CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 5. ed. São Paulo:Malheiros Editores, 2002. Tomo II.
GRUNWALD, Astried Brettas. A gratuidade judiciária: uma garantia constitucional de acesso à Justiça como forma de efetivação da cidadania. Jus Navigandi, Teresina, a.7, n.73, set. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp>? Id=4363. Acesso em: 12 set. 2012.
LUIZ, Simone Oliveira Dornellas; GOMES, Andréa de Lacerda; ALBUQUERQUE, Núbia Ramos de. Democratização da justiça e acesso aos juizados especiais – Campina Grande: PROINCI/UEPB, 2005.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil – teoria geral e processo do conhecimento. 7. ed. rev. e atual.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 10 V. 1.
Advogado e Consultor Jurídico, Sócio do escritório Urcioli Advogados, mestrando Direito Civil e especialista em Direito Civil e Processo Civil pela EPD, com extensões nas áreas de direitos do consumidor, contratual, bancário, empresarial e tributário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Jefferson Ursioli. A ausência de "fundadas razões" para o indeferimento dos benefícios da justiça gratuita Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 set 2012, 08:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/30942/a-ausencia-de-quot-fundadas-razoes-quot-para-o-indeferimento-dos-beneficios-da-justica-gratuita. Acesso em: 23 dez 2024.
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