RESUMO: Hans Kelsen foi um formidável jurista e filósofo que sempre apontou temas com infinitas discussões e dentre eles se destaca a sua idéia de justiça. Atualmente, nas aplicações do direito moderno ainda é muito debatida a idéia da justiça com valores não absolutos, além da associação do direito positivo ao senso de justiça, e é para tentar vislumbrar esses debates que surge esse trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: justiça; valores; direito; moderno.
1 – INTRODUÇÃO
A evolução do sistema jurídico como um todo, seja no campo nacional quanto no campo internacional sempre esteve embasada na necessidade da sociedade contemporânea e no senso de justiça que estava implícito a todo homem social. Nesse contexto, o jurista e filósofo Hans Kelsen começou a tentar separar o direito positivo da justiça, e partindo da idéia de que um ideal de justiça não se revelara absoluto, defendeu que a teoria jurídica e/ou direito positivado podia contrariar algum mandamento de justiça, e nem por isso deixaria de ser válido.
Para adequar-se aos anseios da sociedade que rege, o Direito reitera modificações em seu sistema através da própria percepção dos legisladores. Daí encontra-se nesse momento uma dúplice discussão quanto à teoria de justiça de Kelsen, quais sejam: a primeira refere-se à reafirmação de que não há valores absolutos, e sim relativos, pois para alguns pensadores, o que é justo pode não ser para outros, o que leva a crer na impossibilidade de existir uma só justiça; já a segunda, refere-se ao questionamento de que se realmente há a possibilidade de trabalhar e discutir o direito positivo hoje sem a influência do senso de justiça impregnado ao ser social, que como tal encontra-se regrado por normas que quase sempre irão violar esse ou aquele direito.
Nesse ínterim, ao passo das mudanças do ordenamento jurídico de forma geral, faz-se necessário sempre a adaptação ou a alteração de interpretação das teorias para um melhor aproveitamento das mesmas.
2 – A TEORIA DE KELSEN E A CONTEMPORANEIDADE
Segundo Hans Kelsen, a ciência “não tem de decidir o que é justo, isto é, prescrever como devemos tratar os seres humanos, mas descrever aquilo que de fato é valorado como justo, sem se identificar a si própria com um destes juízos de valor" (KELSEN. O problema da justiça, 2003). É confusa a teoria, mas objetiva, pois, segundo o seu entendimento, nada é capaz de ser absoluto, com a suficiência de sair do sensível mundo do ser e penetrar no mundo normativo. O filósofo acreditava que uma norma poderia ser deduzida apenas de outra norma, e um dever-ser poderia ser derivado apenas de um dever-ser.
O homem é um ser volúvel e disso não se tem dúvida, além do mais, é impossível afirmar que como tal ele não tenha pensamentos diferentes do próximo e num mundo de regras jurídicas veja justa uma regra que não o seja para outro. Dois dos princípios que regem o direito positivo como um todo são fundamentais na busca pelo “juridicamente correto”, quais sejam o da igualdade e o da imparcialidade, inclusos no art. 5º da Constituição Federal Brasileira. E nesse aspecto, não há que se discordar do jurista Kelsen, no sentido de que a interioridade das pessoas atrapalha a devida aplicação daqueles princípios nos casos práticos, afinal, talvez nunca tenha existido a imparcialidade no mundo jurídico e o que é igual para uma parte no processo não necessariamente será para a outra.
“O que de fato ocorre é que Kelsen quer expurgar do interior da teoria jurídica a preocupação com o que é justo e o que é injusto. Como visto, o valor justiça é relativo, e não há concordância entre os teóricos e entre os povos e civilizações de qual o definitivo conceito de justiça” (BITTAR, Moral, Justiça e Direito na Teoria de Hans Kelsen, 2009). Porém, apesar de reconhecer essas dificuldades, nos dias atuais é difícil idealizar um direito positivo sem o senso mínimo do que é justo, mesmo que essa compreensão seja distinta do legislador para a população por exemplo.
É claro que conceituar justiça é praticamente impossível do ponto de vista do valor absoluto, mas ainda que a justiça não seja absoluta a sociedade deve ser regrada por um senso de justo ou injusto para que o próprio direito não incorra em um sistema desnecessário a ela. Afinal, para que serve o direito se não para socorrer a justiça e defender os direitos do homem social, e como tal não poderá ter sua teoria jurídica e o seu positivismo distante do ideal, ainda que relativo, de justiça. E para representar a necessidade do senso de justiça no manuseio do direito positivo hoje, faz-se preponderante discutir um tema que se apega à justiça do ponto de vista do raciocínio subjetivo face à lei.
3 – ANÁLISES DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
É fato que o ordenamento jurídico passou a adotar critérios de relativização do princípio da obrigatoriedade, classicamente reconhecido pelo brocardo do pacta sunt servanda, o qual obriga as partes contratantes aos termos precisos do contrato assinado (artigo 422 do Código Civil). Só para se ter uma idéia de autorização legal para reajuste de um contrato, salienta-se a teoria da imprevisão, em que a parte prejudicada e forçada a adimplir um contrato que lhe recai excessivo pode rever os termos da avença contratada.
Nesse contexto, um importante segmento empresarial que busca sustentar suas avenças contratuais por este princípio da obrigatoriedade é o de seguros, principalmente no que recai sobre veículos. As seguradoras dependem da mantença de todas as cláusulas contratuais avençadas para que seja possível garantir o lucro do negócio. Entretanto, forçoso reconhecer a tarefa impossível dessa intenção, já que o próprio sistema jurídico nacional advoga de forma contrária a essa pretensão, já que desta forma tais contratos acabam por esbarrar não apenas na teoria da imprevisão, mas também nos institutos previstos no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº. 8.078/90) sempre que houver o enquadramento dos conceitos de consumidor e fornecedor.
Nas ações decorrentes desta relação, nota-se que as seguradoras vêm mantendo o triste hábito da má-fé contratual ao não alertar os seus clientes (consumidores no termo técnico da palavra, segundo o artigo 2º do CDC) em relação a possíveis débitos em aberto. Trata-se de parcelas inadimplidas, por motivo qualquer, que a seguradora deixa de cobrar, maliciosamente, para que, em havendo sinistro no veículo, possa negar a indenização devida ao segurado. Diante das recorrentes demandas sobre a matéria e atentos às tendências contemporâneas, os tribunais pátrios passaram a formular entendimento unânime no sentido de impossibilidade de a seguradora negar ao segurado o pagamento da indenização que lhe caberia no cumprimento do contrato, mesmo que se trate de um segurado inadimplente.
A jurisprudência adota o que se chama de teoria do adimplemento substancial ou adimplemento satisfatório, tese importada das cortes jurídicas da Inglaterra, onde é aplicada desde o século XVIII. Em resumo, essa teoria alberga a pretensão do devedor que se insurge contra a rescisão contratual e suas consequências, quando rescindido unilateralmente pelo credor com base no inadimplemento de parcelas. Em tais casos, se restar constatado que os pagamentos feitos pelo devedor apontam para a conclusão de que houve adimplemento de maior parte das parcelas, então, há, implicitamente, um desinteresse na rescisão contratual comum às duas partes, razão pela qual o negócio jurídico deve permanecer. Nesse entendimento:
O adimplemento substancial analisa a obrigação em seu aspecto essencial, e não secundário. Examina se, no caso concreto, a obrigação foi cumprida em seus pontos relevantes, importantes, essenciais. Não supervaloriza elementos de somenos importância. O adimplemento substancial não permite, por exemplo, a resolução do vínculo contratual se houver cumprimento significativo, expressivo das obrigações assumidas. Nesse contexto, se ínfimo, insignificante ou irrisório o "descumprimento" diante do todo obrigacional não há de se decretar a resolução do contrato, de maneira mecânica e autômata, sobretudo se isso conduzir à iniqüidade ou contrariar os ideais de Justiça (VIANNA, 2008).
Quanto às seguradoras, uma matéria de defesa muito utilizada é o artigo 763 do Código Civil, que ao tratar especificamente de inadimplemento nos contratos de seguro estatui que “não terá direito à indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação”. O impacto causado ao segurado é de fazê-lo imaginar não ter qualquer direito em postular o recebimento da indenização contratada. No entanto, ele (segurado) deverá sustentar o entendimento dominante dos tribunais superiores e da maior doutrina, que afirmam não ser possível à rescisão unilateral do contrato de seguro por motivo de inadimplemento de poucas parcelas, principalmente se a seguradora agiu com má-fé, não notificando o segurado do seu estado de mora.
4 – CONCLUSÃO
Dessa forma, ficou evidente no caso da teoria do adimplemento substancial que a discussão acerca do senso de justiça precisa ser levada em consideração na aplicação do Direito. Afinal, no caso suscitado das seguradoras, se fosse levado em conta apenas o aspecto positivo da norma, a interpretação jurisprudencial não seria em favor dos segurados, mas quando amparados por um ideal de justiça, os intérpretes do ordenamento jurídico pátrio relativizaram a norma em favor dos segurados.
Logo, apesar de Hans Kelsen ter lutado para limpar do interior da teoria jurídica a preocupação com o que é justo ou injusto, é impossível para o Direito moderno se dissociar totalmente de um mínimo de senso de justiça. Ainda que a definição de justiça seja praticamente impossível, como já ressaltado, a sociedade e as regras que a regem devem estar amparadas em um ideal de justiça mesmo que seja apenas para que o Direito não se torne desnecessário a este ideal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KELSEN, Hans. O problema da justiça. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CIVIL, Código: promulgado em 10 de janeiro de 2002. Obra coletiva de autoria da Editora Rideel com a organização de Marcos Antônio Oliveira Fernandes. 8. ed. São Paulo: Rideel, 2009.
CONSUMIDOR, Código de Defesa: promulgado em 11 de setembro de 1990. Obra coletiva de autoria da Editora Rideel com a organização de Marcos Antônio Oliveira Fernandes. 8. ed. São Paulo: Rideel, 2009.
BITTAR, Eduardo C. B. Moral, Justiça e Direito na Teoria de Hans Kelsen. Disponível em: http://www.mundodosfilosofos.com.br/bittar.htm. Acesso em: 12 de abril de 2012.
VIANNA, José Ricardo Alvarez. Adimplemento substancial. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/11703/adimplemento-substancial. Acesso em: 17 de abril de 2012.
Graduando em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais AGES.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANDES, Hyran Ferreira. A visão de justiça de Hans Kelsen no direito moderno: análise da teoria do adimplemento substancial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 set 2012, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/31020/a-visao-de-justica-de-hans-kelsen-no-direito-moderno-analise-da-teoria-do-adimplemento-substancial. Acesso em: 23 dez 2024.
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