RESUMO: Nos últimos tempos, têm sido propostos, no Congresso Nacional, diversos projetos de lei visando à introdução, no Direito brasileiro, de cotas para "negros e pardos" nas suas Instituições de Ensino Superior. Porquanto, este artigo toma como ponto de partida a proposta corrente de racialização da população brasileira pelo Estado, com vistas a amparar programas de Ação Afirmativa para o atendimento específico daqueles que se autodenominarem negros. Não obstante, discute-se a singularidade do racismo no Brasil como um tipo de discriminação cívica particularmente importante, mas que, também, reflete um padrão muito mais abrangente de desrespeito a direitos e de agressão à cidadania.
PALAVRAS-CHAVE: Constituição brasileira; Política de cotas; Projetos de lei; Cotas; Julgado do TSF.
INTRODUÇÃO
Entre a promulgação da Constituição brasileira de 1988 e a III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, na África do Sul, em 2001, a postura do governo do Brasil perante a questão racial mudou radicalmente.
Talvez valha a pena explicitar-ressaltar a natureza dessa mudança, pois na Constituição de 1988, as palavras "raça" e "racismo" aparecem três vezes, cada uma delas no sentido de repudiar "raça" como critério de distinção. Tal Constituição reconhece e condena o racismo, pois no inciso VIII do artigo 4 afirma que: “a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelo repúdio ao terrorismo e ao racismo". Finalmente, o inciso XLII do artigo 5 define a prática do racismo como "crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei".
É evidente que, a adoção de cotas como política de Estado não foi precedida de um debate público significativo, entre os representantes dos eleitores, antes dos decretos ministeriais e da promulgação da lei de cotas no Rio de Janeiro e da adoção delas na Universidade de Brasília (UNB).
Pois, antes da Conferência de Durban, o comitê nomeado pelo governo federal para preparar a posição do Brasil promoveu apenas três seminários, em Belém, Salvador e São Paulo. Mas poucos souberam ou participaram, além de ativistas negros. O frágil debate começou, portanto, depois dos fatos consumados. De maneira que, a falta de debate público impediu que se pudesse verificar se houve ou não uma mudança radical no Brasil como um todo.
O fato é que, o debate atual sobre a instituição de cotas para negros nas Universidades enseja uma boa oportunidade para repensar a especificidade da discriminação racial no Brasil, e o potencial transformador das políticas de Ação Afirmativa (AA) propostas para combatê-la.
Assim, procurar-se-á caracterizar brevemente AA, para relacioná-la em seguida com a questão mais ampla do respeito aos direitos de cidadania de uma maneira geral, trazendo à tona suas implicações para o cotidiano dos cidadãos, onde a articulação entre identidades, direitos e sentimentos ganha destaque.
O PRINCÍPIO DA AÇÃO AFIRMATIVA
No período que vai de 1983 a 2000 foram enviados vários projetos de lei orientados pelos princípios da ação afirmativa ao Congresso Nacional. Mas antes de fazer referência a tais projetos faz-se importante destacar estudos como os de Sérgio da Silva Martins que observa uma mudança na maneira como o governo federal tem tratado o problema do racismo.
Pois, até pouco tempo no discurso das autoridades afirmava-se que o Brasil constituía-se como uma democracia racial, onde negros e brancos gozavam de iguais oportunidades e condições de desenvolvimento individual. Neste quadro, apenas as práticas de racismo isoladas constituíam-se um problema a ser resolvido (BERNARDINO, 2002).
E, por isso, Silva Martins destaca que a elaboração de uma política nacional brasileira de ação afirmativa para combater o racismo não corresponde a uma revolução nas atitudes da sociedade civil concernindo o racismo, pois:
essa mudança revela uma antiga tradição da sociedade brasileira: as mudanças verticais, onde a sociedade civil é mera espectadora, assistindo aos fatos bestilizada, sem entender o que se passa. [...] Cabe ressaltar que as políticas de ação afirmativa não foram objeto de reflexão do Movimento Negro ao longo de sua existência no Brasil. O novo discurso aparece articulado pelo Estado [...]. (Silva, 1996: 203).
Vale ressaltar que, a crítica de que a política de cotas e outras políticas de ação afirmativa para a população negra tenham sido impostas à sociedade, sem qualquer reflexão ou debate prévio, nem sempre se aplica, pois essas se mostram bem mais complexas do que se pode imaginar.
Porquanto, Silva Martins e antropólogos como P. Fry e Y. Maggie (2002) assinalam que o debate público sobre políticas públicas de ação afirmativa, e, em particular, a questão da política de cotas para negros em universidades públicas, começou tarde. Com respeito ao Rio de Janeiro, os autores apontam o fato de que o debate público só começou depois de que um projeto de lei estabelecendo um sistema de cotas para negros e pardos nas universidades públicas estaduais no Rio de Janeiro foi votado por aclamação pelos deputados estaduais da Assembléia Legislativa
Contudo, o objetivo deste subtítulo é refletir sobre o processo de construção de uma política pública, mesmo sendo tardia ou imposta de cima para baixo, pois o esforça é dado aqui para analisar o porquê da implementação de tais medidas que visam aumentar o número de estudantes negros nas universidades brasileiras.
De modo que, é perceptível que a política pública supracitada teve como motivadores, mas não determinantes, a ação dos movimentos de ativistas negros que deram origem a acontecimentos como a hoje histórica Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida que enfatizaram a necessidade de colocar o problema da discriminação racial na agenda política nacional e a criação e implementação de políticas para a promoção da igualdade. (Marcha Zumbi, 1995).
Visto que, os líderes da Marcha acreditavam que um vasto corpo de legislação e políticas públicas antidiscriminatórias em vigor no Brasil não haviam produzido as mudanças esperadas: igualdade de oportunidade e tratamento para a população negra.
Não obstante, os resultados de pesquisas estatísticas examinando os diversos indicadores socioeconômicos das condições de vida da população (estatísticas sobre educação, trabalho, saúde, violência, saúde, violência, etc.) descreviam a magnitude da situação de desigualdade entre brancos e negros no Brasil, e revelava uma fundamental insuficiência da legislação.
A legislação antidiscriminatória, por sua vez, inclui leis estaduais e municipais com esse fim e a criminalização de atos de racismo pela Constituição Federal e pelo código civil e criminal, além das normas de direito internacional das quais o Brasil é signatário: a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (1958), A Convenção Contra Todas as Formas de Discriminação Racial da ONU (1966).
Assim na tentativa de impedir a reprodução das práticas discriminatórias:
(...) face ao quadro de discriminação generalizada que atinge a população negra, não é suficiente que o Estado se abstenha de praticar a discriminação em suas leis ou práticas administrativas. É dever do Estado Democrático de Direito esforçar-se para favorecer a criação de condições efetivas que permitam a todos beneficiar-se da igualdade de oportunidade, assegurando a eliminação de qualquer fonte de discriminação direta ou indiretamente (...). Não basta, repetirmos, a mera abstenção da prática discriminatória: impõem-se medidas eficazes de promoção da igualdade de oportunidade e respeito à diferença. (...) Trata-se de um esforço que deverá ter como principal escopo tornar a igualdade formal, a igualdade de todos perante a lei, em igualdade substancial: igualdade de oportunidade e tratamento (Marcha Zumbi, 1995: 23-24).
A citação acima apresenta parte de um programa de superação do racismo e da desigualdade racial que incluía recomendações de políticas nas áreas de: informação, trabalho, educação, cultura e comunicação, saúde, violência, religião e terra.
Também incluído no documento estava o Projeto de lei número 1239 de 1995, organizado pelo Movimento Pelas Reparações (MPR) e pelo Movimento Negro Unificado, apresentado ao Congresso pelo Deputado Federal Paulo Paim (PT/RS) - que será aludido mais tarde, juntamente com outros políticos que enviaram Projetos de Lei, com princípio afirmativo, para votação no congresso.
A proposta pedia o resgate da cidadania dos descendentes de africanos escravizados no Brasil, por meio de um programa de reparações e políticas públicas compensatórias, nas áreas de: terras, educação (entendida em parte como a criação de cotas em universidades públicas), emprego, mídia e habitação, incluindo o pagamento de um título de reparação, a cada um dos descendentes de africanos escravizados no Brasil, o valor equivalente a R$102, 000,00. (Art. 2, Projeto de lei número 1239, apud Marcha Zumbi, 1996: 34).
Com o aparente intento de fazer valer parte de tais reivindicações no dia 20 de novembro de 1995, o Presidente FHC instituiu, por decreto presidencial, o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (Decreto de 20 de Novembro de 1995, apud Marcha Zumbi, 1996: 32)
Mas o tempo passou e o que se viu foi uma série de indicações de mudanças relativas à adoção de políticas de promoção da igualdade esbarrar numa estrutura política inflexível e numa sucessão de medidas - no mínimo não debatidas com a paciência e a precaução necessárias - como poderá ser percebido no subtítulo a seguir.
VISÃO PANORÂMICA DOS PROJETOS DE LEI ORIENTADOS PELOS PRINCÍPIOS DA AÇÃO AFIRMATIVA.
Embora as propostas pensadas pelo Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra - formado durante o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) - excluíssem as cotas como modo de promover o acesso da população negra a Universidade, políticos eleitos na esfera federal do governo parecem ter sido de opinião diferente. Começando em 1983, com o Senador Abdias do Nascimento (PDT/RJ), vários políticos em Brasília propuseram legislações orientadas pelos princípios de ação afirmativa que frequentemente previam a criação de um sistema de cotas no trabalho, educação e mídia para negros e às vezes para índios, e alunos da rede pública.
Um levantamento dos projetos de lei orientados pelos princípios da ação afirmativa no Congresso Nacional no período de 1983 a 2000 aponta para o entendimento que nos legou a política de cotas.
Pois a começar pelo Senador Abdias do Nascimento (PDT/RJ) que em 7 de junho de 1983 apresentou o Projeto de lei Nº1.332 tendo por fim a a adoção de medidas de ação compensatória com a intenção de promover a participação dos brasileiros negros (de ascendência africana) em todos os níveis do emprego (público e privado); reserva de bolsas de estudo do Estado para estudantes negros; reserva de vagas para negros no Instituto Rio Branco.
É interessante perceber que, para tal lei, são consideradas pessoas negras as que se enquadrarem como pretos ou pardos, conforme a classificação adotada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Para tal instituto, existem oficialmente cinco termos aceitos para classificar a cor da pele dos Brasileiros: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. Porém na década de 90, o instituto realizou um estudo específico sobre o tema e registrou mais de cem tonalidades diferentes de cor e raça (Metodologia do Censo Demográfico 2000).
Não obstante, em 1993 surge o Projeto de Emenda Constitutional Nº 8583-6 do Deputado Federal Florestan Fernandes (PT/SP). Tal Emenda Constitutional previa a Concessão de bolsas de estudo para cobrir as despesas de subsistência, durante o período escolar para crianças, adolescentes e adultos negros.
Nesse mesmo ano surgem outros dois projetos, mas de autoria da Senadora Benedita da Silva (PT/RJ), o Projeto de Lei Nº 4.339 e o de Nº 3.791. O primeiro previa a Criação de cotas para os setores etnoraciais socialmente discriminados em instituições de ensino superior, públicos e particulares, federal, estadual e municipal. E o segundo a Inclusão de artistas e profissionais negros nas produções das emissoras de televisão, filmes, e peças publicitárias. Essa última previa a inclusão de um mínimo de 40% de artistas e profissionais negros; seguindo para efeito de classificação racial os critérios utilizados pelo IBGE.
Conquanto, seguiram-se a tais projetos o do Deputado Federal Paulo Paim, em 1995, Projeto de Lei Nº 1239,que garante a reparação com indenização para os decendentes dos escravos no Brasil; o do Senador Luiz Alberto (PT/BA), em junho 1998, Projeto de Lei Nº 4.567 que cria o Fundo Nacional para o Desenvolvimento de Ações Afirmativas (FNDAA); o do Senador Antero Paes de Barros (PSDB/MT), em maio 1999, Projeto de Lei Nº 298, que criou um sistema de cotas de admissão nas universidades públicas para estudantes da escola pública; o do Senador José Sarney (PMDB/AP), em dezembro 1999, Projeto de Lei Nº 650, que instituiu cotas de ação afirmativa para a população negra no acesso aos cargos e empregos públicos, à educação superior e aos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES); e por fim outro Projeto do Senador Paulo Paim (PT/RS), em 16 de junho de 2000, Projeto de lei Nº 3.198 que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, em defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça, e/ou cor, e dá outras providências.
O certo, é que, em recente julgado do STF (Supremo Tribunal Federal), ficou definido que o sistema de cotas apresentado em lei é Constitucional. Senão vejamos sinteticamente o entendimento de cada Ministro da Alta Corte brasileira:
Ayres Britto disse durante o voto que os erros de uma geração podem ser revistos pela geração seguinte e é isto que está sendo feito.
Em um voto de quase duas horas, o ministro Ricardo Lewandowski afirmou que o sistema de cotas em universidades cria um tratamento desigual com o objetivo de promover, no futuro, a igualdade. Para ele, a UnB cumpre os requisitos, pois definiu, em 2004, quando da sua implantação, que ele seria revisto em dez anos. "A política de ação afirmativa deve durar o tempo necessário para corrigir as distorções."
Luiz Fux foi o segundo voto a favor das cotas raciais. Segundo Fux, não se trata de discriminação reservar algumas vagas para determinado grupo de pessoas. "É uma classificação racial benigna, que não se compara com a discriminação, pois visa fins sociais louváveis".
A ministra Rosa Weber também seguiu o voto do relator. Para ela, o sistema de cotas visa dar aos negros o acesso à universidade brasileira e, assim, equilibrar as oportunidades sociais.
O quarto voto favorável foi da Ministra Cármen Lúcia, que citou duas histórias pessoais sobre marcas deixadas pela desigualdade na infância.
Em seu voto, o ministro Joaquim Barbosa citou julgamento da Suprema Corte americana que validou o sistema de cotas para negros nos Estados Unidos, ao dizer que o principal argumento que levou àquela decisão foi o seguinte: "Os EUA eram e continuam a ser um país líder no mundo livre, mas seria insustentável manter-se como livre, mantendo uma situação interna como aquela".
Peluso criticou argumentos de que a reserva de vagas fere o princípio da meritocracia. "O mérito é sim um critério justo, mas é justo apenas em relação aos candidatos que tiveram oportunidades idênticas ou pelos menos assemelhadas", disse. "O que as pessoas são e o que elas fazem dependem das oportunidades e das experiências que ela teve para se constituir como pessoa."
O ministro Gilmar Mendes também votou pela constitucionalidade das cotas em universidades, mas fez críticas ao modelo adotado pela UnB. Ele argumentou que tal sistema, que reserva 20% das vagas para autodeclarados negros e pardos, pode gerar "distorções e perversões".
Celso de Mello disse, durante seu voto, que ações afirmativas estão em conformidade com Constituição e com Declarações Internacionais subscritas pelo Brasil.
Marco Aurélio Mello também seguiu o relator e votou pela constitucionalidade do sistema de cotas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O sistema de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras, implantado como políticas afirmativas para diminuir as diferenças sociais existentes entre brancos e negros, foi adotado como política social de desenvolvimento, porém sua efetivação contraria os preceitos constitucionais.
Por mais que, as ações afirmativas possuam um caráter temporário, pois objetivam combater discriminações e eliminar desigualdades historicamente acumuladas. Sendo utilizável apenas, enquanto persistirem os desequilíbrios sociais do grupo beneficiado. Há nelas preceitos inconstitucionais e, além disso, nos países em que elas foram efetivadas ou tiveram o sistema de cotas raciais implantado, os resultados não alcançaram seus objetivos.
Por isso que, visando promoção da igualdade, faz-se necessária, não apenas a simplória legalização das cotas, mas sim a implementação de outros programas educacionais. Para assim, superar o sistema educacional brasileiro que tradicionalmente se configurou como fomentador de uma educação de inferior qualidade para os negros e pobres em geral e melhorar esse que, ao invés de incluir, segregou todo um Brasil.
Por fim, é fato que, a instituição de políticas afirmativas só terá eficácia na medida de sua sincronia com um modelo de desenvolvimento comprometido com a geração de emprego, a distribuição da terra e da renda, a justiça social, a preservação da vida e a construção de novos horizontes para as gerações futuras.
REFERÊNCIAS
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LELES, José Sólon. Análise do princípio legal das cotas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 set 2012, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/31591/analise-do-principio-legal-das-cotas. Acesso em: 23 dez 2024.
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