Antes da implantação da doutrina da proteção integral no Brasil, a situação do jovem infrator foi regulada por dois outros sistemas jurídicos, iniciando-se com a o Direito Penal do menor, que não fazia distinção entre adultos e crianças no que se refere ao ato infracional e a aplicação das medidas punitivas. Posteriormente surge o Código de Menores, defendendo ao longo de seu texto a doutrina da proteção irregular, constituindo um sistema em que o menor de idade era objeto tutelado do Estado, sobrevelando a responsabilidade da família.
No art. 2° do Código de Menores de 1979, considerava-se menor em situação irregular aquele que poderia ser encontrado em seis situações distintas, quais eram: o menor abandonado em saúde, educação e instrução; a vítima de maus tratos ou castigos imoderados; os que se encontravam em perigo moral; os privados de assistência judicial; os desviados de conduta e o autor de infração penal.[i]
Ressalta-se que o Código de Menores de 1979 não recebeu somente a inspiração da teoria da situação irregular, mas também do regime totalitarista e militarista vigente no país, apesar de ter sido elaborado sob a influência da Declaração dos Direitos da Criança de 1959. Suas medidas criadas para cuidar de "patologias jurídico-sociais" definidas na lei, amparava-se em conceitos e princípios simplistas e falaciosos, que resultavam na prática e um controle social da pobreza.[ii]
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, aprovada por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, consagrou em seu texto a doutrina da proteção integral, que se contrapõe ao tratamento social excludente da criança e do adolescente, apresentando um conjunto social, metodológico e jurídico que permite compreender e abordar as questões relativas a estes peculiares sujeitos sob a ótica dos Direitos Humanos.[iii] O Brasil ratificou a convenção com a publicação do Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990, transformando-a em lei interna.
A doutrina da proteção integral estabelece que as crianças, sendo nesta categoria abrangidos todos os seres humanos com idade inferior a dezoito anos, são sujeitos de direitos especiais, devendo ser protegidas por se encontrarem em um processo de desenvolvimento, que as fazem serem merecedoras de prioridade absoluta.[iv]
Maria Inês Fontana Pereira de Souza defini o revogado Código de Menores como um código penal do “menor”, disfarçado sobre a imagem de sistema tutelar, cuja as medidas não passavam de puras sanções. A própria substituição do termo menor, que reporta a ideia da situação irregular, pelos termos criança e adolescente, representa uma mudança com potencial simbólico do novo paradigma, demonstrando a passagem de uma legislação e política repressiva para uma de proteção integral e políticas universais e participativas.[v]
De acordo com Antônio Carlos Gomes da Costa:
“A nova ordem decorrente da Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança, da qual o Brasil é signatário, promoveu uma completa metamorfose no direito da Criança no País, introduzindo um novo paradigma, elevando o até então menor á condição de cidadão, fazendo-se sujeito de direitos”.[vi]
No mesmo sentido, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, no seu art. 37, traz uma gama de orientações a respeito da proteção dos Direitos Humanos aplicáveis a condição especial dos jovens, algumas específicas a privação de liberdade:
“[…] Os Estados Partes zelarão para que:
a) nenhuma criança seja submetida a tortura nem a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Não será imposta a pena de morte nem a prisão perpétua sem possibilidade de livramento por delitos cometidos por menores de dezoito anos de idade;
b) nenhuma criança seja privada de sua liberdade de forma ilegal ou arbitrária. A detenção, a reclusão ou a prisão de uma criança será efetuada em conformidade com a lei e apenas como último recurso, e durante o mais breve período de tempo que for apropriado;
d) toda criança privada de sua liberdade tenha direito a rápido acesso a assistência jurídica e a qualquer outra assistência adequada, bem como direito a impugnar a legalidade da privação de sua liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial e a uma rápida decisão a respeito de tal ação […]”
A Constituição Federal de 1988, acompanhando a tendência das constituições democráticas modernas no reconhecimento e proteção dos direitos do homem, e posteriormente o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, rompem com o paradigma da doutrina da situação irregular e estabelecem a doutrina da proteção integral. Desse modo surge um projeto político social para o país, ao mesmo tempo que contempla a criança e o adolescente como sujeitos que possuem características próprias ante a situação de desenvolvimento em que se encontram, compelindo para que as políticas públicas sejam realizadas em ação conjunta com a família, a sociedade e o Estado.[vii]
Afonso Armando Kozen ensina que a implementação de um novo ideal doutrinário presente no ECA e um novo compromisso assumido pelo Estado a respeito da situação da criança e do adolescente representa uma ruptura paradigmática em diversos níveis, tanto na esfera das práticas judiciais, como das ações de preparação á jurisdição e de implementação da providência determinada pela autoridade judiciária em razão de ato infracional, desafiando os respectivos operadores a trabalharem com esse novo sistema.[viii]
O ECA garante que todos os direitos desfrutados pelos adultos deverão ser aplicados ao adolescente, desde que sejam compatíveis com a sua idade. Além disso o adolescente tem direitos especiais decorrente do fato de que ainda não tem acesso ao conhecimento pleno de seus direitos e não atingiram condições de defendê-los frente as omissões e transgressões. O jovem não conta com meios próprios para arcar com a satisfação de suas necessidades básicas e por se tratar de um ser em pleno desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e sociocultural, não pode responder pelo cumprimento de leis e demais deveres e obrigações inerentes á cidadania da mesma forma que um adulto.[ix]
A doutrina da proteção integral tem como uma de suas características principais admitir a infância e a adolescência como prioridade absoluta exigindo uma consideração especial, de modo que sua proteção deve sobrepor-se a quaisquer outras medidas, objetivando o resguardo de seus direitos fundamentais. Defende o princípio do melhor interesse da criança, de tal modo que a família, a comunidade e o poder público devem estar empenhados para fazer prevalecer a premissa. A família é reconhecida como o grupo social primário e ambiente “natural” para o crescimento e bem-estar de seus membros, em especial as crianças.[x]
Segundo Seda, quando nosso país realizou o processo de adequação imediato ao espírito e letra da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, assumiu o compromisso de redistribuir parcelas de poder na condução de políticas sociais, transferindo-as para a comunidade.[xi]
Salienta Castro que a doutrina da proteção integral vêm a afirmar o valor intrínseco da criança como ser humano, respeitando sua necessidade especial devido sua condição de pessoa em desenvolvimento. O valor prospectivo da infância e da juventude, como portadores da continuidade do seu povo, da sua família e da espécie humana e o reconhecimento da sua vulnerabilidade, tornam as crianças e os adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar com empenho máximo por meio de políticas específicas para o atendimento, a promoção e a defesa dos seus direitos.[xii]
O ECA determina o dever que têm a família, a comunidade, a sociedade em geral e o poder público em assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária das crianças e adolescentes. A Constituição Federal, no art. 227 da CRFB, declara ainda que é obrigação de todos colocar a criança e o adolescente a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Assim, tanto a Constituição como a legislação infraconstitucional reforçam o compromisso da família, da sociedade e do Estado para garantir a criança e ao adolescente uma passagem saudável e digna até a vida adulta, tendo para isso a doutrina da proteção integral como o pilar para a efetivação desse objetivo.
Referências bibliográficas
AGLIARDI, Delcio Antônio. Histórias de vida de adolescentes com privação de liberdade: como narram a si mesmo e aos outros. 2007. 91 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul, Porto Alegre, 2007.
COSTA, Antônio Carlos Gomes. De menor á cidadão: notas para uma história do novo direito da infância e da juventude no brasil. Brasília: CBIA, 1991.
COSTA, Antônio Carlos Gomes. O ECA e o trabalho infantil: trajetória, situação atual e perspectivas. Brasília, DF: OIT, São Paulo: LTR, 1994.
SEDA, E. M. O Novo direito da criança e do adolescente. Brasília: CBIA – MAS, 1993.
SOUZA, Maria Inês Fontana Pereira de. O Trabalho Infantil em pespectiva. 2001. 190 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Franca, 2001.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente. Florianópolis: OAB/SC, 2006.
[i]VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.
[ii] RANGEL, Patrícia C; CRISTO, Keley K Vago. Breve histórico dos direitos da criança e do adolescente. Disponível em: <http://www.pailegal.net/chicus.asp?rvTextoId=1099220789>. Acesso em: 12 jan. 2010.
[iii] AGLIARDI, Delcio Antônio. Histórias de vida de adolescentes com privação de liberdade: como narram a si mesmo e aos outros. 2007. 91 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul, Porto Alegre, 2007.
[iv] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.
[v] SOUZA, Maria Inês Fontana Pereira de. O Trabalho Infantil em Pespectiva. 2001. 190 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Franca, 2001.
[vi] COSTA, Antônio Carlos Gomes. De menor á cidadão: notas para uma história do novo direito da infância e da juventude no brasil. Brasília: CBIA, 1991.
[vii] COSTA, Antônio Carlos Gomes. De menor á cidadão: notas para uma história do novo direito da infância e da juventude no brasil.
[viii] KONZEN, Afonso Armando. Pernitência socioeducativa: reflexões sobre a natureza jurídica das medidas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
[ix] COSTA, Antônio Carlos Gomes. O ECA e o trabalho infantil: trajetória, situação atual e perspectivas. Brasília, DF: OIT, São Paulo: LTR, 1994.
[x] SEDA, E. M. O novo direito da criança e do adolescente. Brasília: CBIA – MAS, 1993.
[xi] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.
[xii] COSTA, Antônio Carlos Gomes. O ECA e o trabalho infantil: trajetória, situação atual e perspectivas.
Acadêmico do Curso de Direito na Universidade do Vale do Itajaí.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINHEIRO, Raphael Fernando. A evolução do direito da criança e adolescente no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 set 2012, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/31623/a-evolucao-do-direito-da-crianca-e-adolescente-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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