1. A Sociologia do “Homem Cordial” e o Decreto Antinepotismo[1]
Émile Durkheim, em sua obra “As Regras do Método Sociológico”, buscou definir o conjunto de imposições da coletividade ao indivíduo como “fato social”[2]. No plexo constitutivo do fenômendo denominado “fato social”, encontram-se as leis (em sentido amplo).
É e justamente uma dessas leis – em sentido amplo – que se busca analisar, ainda que de forma muito breve. Trata-se do Decreto nº 7.203/2010, ato normativo inibidor do nepotismo na sociedade brasileira do nepotismo, mais especificamente, entre os milhares de servidores federais.
Em busca da compreensão sociológica para a justificação da necessidade do Decreto em análise, encontra-se a obra “Coronelismo, Enxada e Voto” (1948) do Ministro do Supremo Tribunal Federal, cassado pelo Ato Institucional nº 6 da Governo Militar, Victor Nunes Leal. Tal obra evidencia as relações de poder dos fazendeiros em face de seus cidadãos locais e o pernicioso reflexo social disso, materializadas em práticas pouco republicanas como o “voto de cabresto”.
Outra célebre obra “Raízes do Brasil” (1936) de Sérgio Buarque de Hollanda concebe a figura do “homem cordial” a densificar a confusão patrimonial do público com o privado que marcou o processo de formação de povo brasileiro[3][4][5].
É nesse contexto sócio-histórico, ainda que muito resumido, que se dão os debates em torno do nepotismo no Brasil e que, ainda que de forma indireta e remota, é possível encaixar o Decreto nº 7.203/2010 nesse contexto.
2. Histórico: a Resolução nº 7 do Conselho Nacional de Justiça e a Súmula Vinculante nº 13 do Supremo Tribunal Federal
Em 2005, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ editou a Resolução nº 7 com objetivo de vedar o nepotismo. O alcance de tal resolução, como não poderia deixar de ser, se aplicava apenas ao Poder Judiciário, o que significa não que, por outros fundamentos jurídicos, a prática não pudesse ser considerada ilegal para os outros poderes da República.
A Associação Nacional dos Magistrados ingressou, então, com ação constitucional no Supremo Tribunal Federal – STF[6] para ver a confirmação da legalidade – ou não – da norma pelo STF. A ação ganhou o registro de Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 12 – ADC nº 12.
Em 20/08/2008, o STF se pronunciou pela constitucionalidade da Resolução do CNJ. Na oportunidade, também foi julgado o Recurso Extraordinário nº 579.951/RN onde se discutia a necessidade de lei ou ato expressos – a exemplo da resolução do CNJ – para coibir tal prática para os Poderes Legislativo e Executivo. O STF entendeu, então, que a proibição ao nepotismo decorre diretamente dos princípios constitucionais do art. 37, caput, da Carta Maior. Confira-se o Informativo nº 516:
O Tribunal deu parcial provimento a recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte que reputara constitucional e legal a nomeação de parentes de vereador e Vice-Prefeito do Município de Água Nova, daquela unidade federativa, para o exercício dos cargos, respectivamente, de Secretário Municipal de Saúde e de motorista. Asseverou-se, inicialmente, que, embora a Resolução 7/2007 do CNJ seja restrita ao âmbito do Judiciário, a vedação do nepotismo se estende aos demais Poderes, pois decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da CF, tendo aquela norma apenas disciplinado, em maior detalhe, aspectos dessa restrição que são próprios a atuação dos órgãos jurisdicionais. Ressaltou-se que o fato de haver diversos atos normativos no plano federal que vedam o nepotismo não significaria que somente leis em sentido formal ou outros diplomas regulamentares fossem aptos para coibir essa prática, haja vista que os princípios constitucionais, que não configuram meras recomendações de caráter moral ou ético, consubstanciam regras jurídicas de caráter prescritivo, hierarquicamente superiores às demais e positivamente vinculantes, sendo sempre dotados de eficácia, cuja materialização, se necessário, pode ser cobrada por via judicial. Assim, tendo em conta a expressiva densidade axiológica e a elevada carga normativa que encerram os princípios contidos no caput do art. 37 da CF, concluiu-se que a proibição do nepotismo independe de norma secundária que obste formalmente essa conduta. Ressaltou-se, ademais, que admitir que apenas ao Legislativo ou ao Executivo fosse dado exaurir, mediante ato formal, todo o conteúdo dos princípios constitucionais em questão, implicaria mitigar os efeitos dos postulados da supremacia, unidade e harmonização da Carta Magna, subvertendo-se a hierarquia entre esta e a ordem jurídica em geral. RE 579951/RN, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 20.8.2008. (RE-579951)
Aduziu-se que art. 37, caput, da CF/88 estabelece que a Administração Pública é regida por princípios destinados a resguardar o interesse público na tutela dos bens da coletividade, sendo que, dentre eles, o da moralidade e o da impessoalidade exigem que o agente público paute sua conduta por padrões éticos que têm por fim último alcançar a consecução do bem comum, independentemente da esfera de poder ou do nível político-administrativo da Federação em que atue. Acrescentou-se que o legislador constituinte originário, e o derivado, especialmente a partir do advento da EC 1/98, fixou balizas de natureza cogente para coibir quaisquer práticas, por parte dos administradores públicos, que, de alguma forma, buscassem finalidade diversa do interesse público, como a nomeação de parentes para cargos em comissão ou de confiança, segundo uma interpretação equivocada dos incisos II e V do art. 37 da CF. Considerou-se que a referida nomeação de parentes ofende, além dos princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade, o princípio da eficiência, haja vista a inapetência daqueles para o trabalho e seu completo despreparo para o exercício das funções que alegadamente exercem. Frisou-se, portanto, que as restrições impostas à atuação do administrador público pelo princípio da moralidade e demais postulados do art. 37 da CF são auto-aplicáveis, por trazerem em si carga de normatividade apta a produzir efeitos jurídicos, permitindo, em conseqüência, ao Judiciário exercer o controle dos atos que transgridam os valores fundantes do texto constitucional. Com base nessas razões, e fazendo distinção entre cargo estritamente administrativo e cargo político, declarou-se nulo o ato de nomeação do motorista, considerando hígida, entretanto, a nomeação do Secretário Municipal de Saúde. RE 579951/RN, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 20.8.2008. (RE-579951)
Com base nesses julgamentos, o STF editou a Súmula Vinculante nº 13 com a seguinte redação:
“A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendendo o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”
3. Regime Jurídico Básico do Decreto nº 7.203, de 4 de junho de 2010
Foi nesse contexto sociológico e jurídico que o Presidente da República editou o Decreto nº 7.203, em 4 de junho de 2010. Segundo noticia o sítio da Controladoria-Geral da União, a Exposição de Motivos do Decreto afirmou que “no âmbito do Poder Executivo Federal, há evidente necessidade de regras mais detalhadas que os princípios da Constituição, mais amplas que a regra da Lei 8.112, e mais minuciosas que a da Súmula Vinculantes”[7].
O Decreto detalha a vedação do nepotismo, exclusivamente, na esfera federal. Define família de forma bastante semelhante ao conceito definido na Súmula Vinculante: “familiar: o cônjuge, o companheiro ou o parente em linha reta ou colateral, por consanguinidade ou afinidade, até o terceiro grau”.
Interessante anotar que o Decreto avança em relação à Súmula Vinculante para proibir a contratação de familiares para o atendimento a necessidade temporária de excepcional interesse público ou estágio, salvo se a contratação tiver sido precedida de regular processo seletivo.
Também merece destaque a percepção da existência do chamado nepotismo cruzado e a sua proibição nos seguintes termos: “aplicam-se as vedações deste Decreto também quando existirem circunstâncias caracterizadoras de ajuste para burlar as restrições ao nepotismo, especialmente mediante nomeações ou designações recíprocas, envolvendo órgão ou entidade da administração pública federal”.
Outra inovação em relação à Súmula é a de ficar explícito que “é vedada também a contração direta sem licitação, por órgão ou entidade da administração pública federal, de pessoa jurídica na qual haja administrador ou sócio com poder de direção, familiar de detentor de cargo em comissão ou função de confiança que atue na área responsável pela demanda ou contratação ou de autoridade a ele hierarquicamente superior no âmbito de cada órgão e de cada entidade”.
Importante também as hipóteses em que não se trata de nepotismo:
Art. 4º Não se incluem nas vedações deste Decreto as nomeações, designações ou contratações:
I - de servidores federais ocupantes de cargo de provimento efetivo, bem como de empregados federais permanentes, inclusive aposentados, observada a compatibilidade do grau de escolaridade do cargo ou emprego de origem, ou a compatibilidade da atividade que lhe seja afeta e a complexidade inerente ao cargo em comissão ou função comissionada a ocupar, além da qualificação profissional do servidor ou empregado;
II - de pessoa, ainda que sem vinculação funcional com a administração pública, para a ocupação de cargo em comissão de nível hierárquico mais alto que o do agente público referido no art. 3º;
III - realizadas anteriormente ao início do vínculo familiar entre o agente público e o nomeado, designado ou contratado, desde que não se caracterize ajuste prévio para burlar a vedação do nepotismo; ou
IV - de pessoa já em exercício no mesmo órgão ou entidade antes do início do vínculo familiar com o agente público, para cargo, função ou emprego de nível hierárquico igual ou mais baixo que o anteriormente ocupado.
Parágrafo único. Em qualquer caso, é vedada a manutenção de familiar ocupante de cargo em comissão ou função de confiança sob subordinação direta do agente público.
Embora óbvio, entende-se como extremamente relevante o dispositivo que impõe aos titulares dos órgãos a efetiva exoneração ou dispensa do agente público em situação de nepotismo ou requerer a quem tiver o poder para tanto, sob pena de responsabilidade.
Não menos saudável é a previsão de apuração para os casos em que haja indícios de influência dos agentes públicos das situações de nepotismo. Merece aplausos, ainda, a dicção do Decreto que proíbe expressamente “a vedação de que familiar de agente público preste serviços no órgão ou entidade em que este exerça cargo em comissão ou função de confiança”.
Por fim, é de se registrar que o poder conferido à Controladoria-Geral da União para dirimir casos ou omissos ou que suscitem dúvidas não afasta igual prerrogativa conferida à Advocacia-Geral da União pelo art. 131, caput, da Constituição Federal. Tais órgãos, na verdade, devem interpretar os dispositivos de forma a que prestem mútua cooperação e parceria para a consecução do objetivo comum de dar execução ao princípio constitucional da moralidade adminstrativa.
4. Conclusões.
Seja pela pena do Ministro Victor Nunes Leal seja pela caneta dos relatores Ministros Carlos Ayres Britto e Ricardo Lewandowski e seus pares Ministros, o Supremo Tribunal Federal prestou um grande serviço à nação, a partir de atuação vanguardista do Conselho Nacional de Justiça.
Com semelhante coragem institucional, adveio o importante Decreto nº 7.203/2010 com âmbito de incidência ampliado em relação à Súmula Vinculante nº 13 da Suprema Corte em benefício da moralidade administrativa.
[1] O título deste curto artigo é uma alusão à célebre obra “Coronelismo, Enxada e Voto” (1948) do Ministro do Supremo Tribunal Federal, cassado pelo Ato Institucional nº 6 da Governo Militar, Victor Nunes Leal.
[2] Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/resenhasdelivros/3737583
[3] Disponível em: http://aquiesta.wordpress.com/2008/06/17/hello-world/
[5] PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Relendo Raízes do Brasil. Disponível em: http://www.bresserpereira.org.br/papers/2000/00-71.RelendoRaizesDoBrasil-Holanda.pdf
[6] Há mais de dez anos antes, o STF já tinha sido chamado a se manifestar sobre o tema do nepotismo por força de ADI ajuizada pelo Ministério Público Federal contra emenda constitucional antinepotismo à Constituição Estadual gaúcha. Na oportunidade, manteve o núcleo da lei com a declaração de inconstitucionalidade apenas do poder de extinguir os cargos em situação de nepotismo, embora o MPF pedisse declaração total de inconstitucionalidade da lei (Informativo nº 63/STF). Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/informativo/verInformativo.asp?s1=nepotismo&numero=63&pagina= 18&base=INFO
[7] Disponível em: http://www.cgu.gov.br/imprensa/Noticias/2010/noticia06710.asp
Procurador Federal/AGU/PGF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Carlos Vitor Andrade. "Nepotismo, Enxada e Voto": o "Homem Cordial", a Súmula Vinculante nº 13 do Supremo Tribunal Federal e o Decreto nº 7.203/2010 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 out 2012, 10:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/31996/quot-nepotismo-enxada-e-voto-quot-o-quot-homem-cordial-quot-a-sumula-vinculante-no-13-do-supremo-tribunal-federal-e-o-decreto-no-7-203-2010. Acesso em: 23 dez 2024.
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