Introdução
No Estado Democrático de Direito as contratações a serem celebradas pelo Poder Público reclamam a preservação da isonomia, da impessoalidade e da economicidade (eficiência, eficácia e efetividade).
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, após trazer expresso no caput do art. 37 o dever de atuação da Administração Pública tendo sempre em vista os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, estabelece como obrigação prévia e inafastável do Estado, ressalvados os casos previstos na legislação, a realização de licitação pública para a contratação (art. 37, inciso XXI, CF/88).[1]
É que o procedimento licitatório consubstancia-se em instrumento democrático e isonômico que afasta favoritismos, na medida em que garante aos interessados em contratar com o Estado igualdade de condições de participação, e propicia a contratação da proposta mai vantajosa para Administração Pública.
É por esse motivo que o processo de licitação pública somente pode conter exigências de participação (qualificação técnica e financeira) que forem indispensáveis para a execução do objeto a ser contratado. Logo, a estipulação de tais exigências não está ao alvedrio do administrador, devem, ao revés, ser proveniente de estudos preliminares que explicitam e motivam a necessidade de cada uma delas. Dando, assim, concretude à norma contida no art. 3º da Lei no 8.666, de 21 de julho de 1993, que estabeleceu normas gerais sobre licitação e contratos administrativos.[2]
Com isso é possível reproduzir da doutrina pátria o conceito de licitação pública. Assim, Odete Medauar entende que,
“Licitação, no ordenamento brasileiro, é processo administrativo em que a sucessão de fases e atos leva à indicação de quem vai celebrar contrato com a Administração. Visa, portanto, a selecionar quem vai contratar com a Administração, por oferecer proposta mais vantajosa ao interesse público. A decisão final do processo licitatório aponta o futuro contratado”. (MEDAUAR, 1996. p. 205.)
Para Carlos Ari Sundfeld,
“Licitação é o procedimento administrativo destinado à escolha de pessoa a ser contratada pela Administração ou a ser beneficiada por ato administrativo singular, no qual são assegurados tanto o direito dos interessados à disputa como a seleção do beneficiário mais adequado ao interesse público”. (SUNDFELD, 1994, p. 15.).
Na lição da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro,
“Aproveitando, parcialmente, conceito de José Roberto Dromi (1975:92), pode-se definir a licitação como o procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitem às condições ficadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente pra a celebração de contrato.” (DI PIETRO, 2012, p. 368).
No que tange aos contratos administrativos, o professor Celso Antônio Bandeira de Mello traz o seguinte conceito:
“é um tipo de avença travada entre a Administração e terceiros na qual, por força de lei, de cláusulas pactuadas ou do tipo do objeto, a permanência do vínculo e as condições preestabelecidas assujeitam-se a cambiáves imposições de interesse público, ressalvados os interesses patrimoniais do contratante privado.” (MELLO, 2005, p. 580-581).
O legislador ordinário, por outro lado, conceitua o Contrato Administrativo como “todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontade para a formação do vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada” (art. 2º, parágrafo único, da Lei no 8.666/93).
Licitação: preservação do interesse público primário
Infere-se do conceito de licitação que a finalidade do processo licitatório é a de permitir à Administração Pública a aquisição mais vantajosa possível do bem pretendido (necessário ao mister público), garantindo, ao mesmo tempo, iguais chances de participação entre os particulares.
Nesse diapasão, o prestígio à isonomia, impessoalidade, transparência (publicidade dos atos) e à motivação, todos direitos fundamentais caros ao Estado Democrático de Direito, consagrados pelo devido processo administrativo licitatório, busca garantir à Administração Pública a obtenção da proposta mais vantajosa à realização do interesse público primário.
Como se sabe, o fim precípuo do Estado não é a obtenção do lucro, mas a tutela do bem comum. Com isto, mesmo na hipótese de a administração contratar com preços vantajosos sem licitação, não poderá afirmar que o interesse público primário foi atingido. Talvez, tenha-se atendido o interesse público secundário.
A rigor, é dever do Estado o atendimento dos direitos fundamentais, estes não podem ser colocados em segundo plano sob a bandeira de que se está realizando ato mais econômico para a administração.
Nesse sentido, em obra específica sobre licitação, o professor Lucas Rocha Futado averbera que “[...] a busca de maiores vantagens, não autoriza a violação das garantias individuais ou o tratamento mais favorecido a determinada empresa ou a particular em detrimento dos demais interessados em participar do processo.” (FURTADO, 2009, p. 31).
Para Celso Antônio:
“A licitação visa a alcançar duplo objetivo: proporcionar às entidades governamentais possibilidades de realizarem o negócio mais vantajoso (pois a instauração de competição entre ofertantes preordena-se a isto) e assegurar aos administrados ensejo de disputarem a participação nos negócios que as pessoas governamentais pretendam realizar com os particulares.
Destarte, atendem-se três exigências públicas impostergáveis: proteção aos interesses públicos e recursos governamentais – ao se procurar a oferta mais satisfatória; respeito aos princípios da isonomia e impessoalidade (previstos nos arts. 5º e 37, caput) – pela abertura de disputa do certame; e, finalmente, obediência aos reclamos de probidade administrativa, imposta pelos arts. 37, caput, e 85. V, da Carta Magna brasileira.” (MELLO, 2005, p. 492).
Observa-se, portanto, que a realização do processo licitatório está intimamente ligada à observância do direito fundamental à boa administração pública, que impõe, como visto, gestão proba, transparente, impessoal e economicamente justa.
Contrato público e atendimento ao interesse público primário
A perseguição do interesse público reclama do ente público uma atuação constante e por vezes complexa. Desse modo, seria impossível exigir que o Estado aja sempre de forma direta. É por essa razão que a administração com cada vez mais freqüência realiza seu mister com o auxílio do ente privado na execução material.
Com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social, o interesse público, determinado pelo ordenamento jurídico, impôs ao Estado nova gama de deveres, demandando, por conseguinte, novo modo de atuar estatal. Isto é, se no Estado Liberal a atuação se dava, via de regra, unilateralmente, no Estado Social a prestação de novos serviços reclamou do Poder Público atuar com auxílio de outros entes.
Cristiana Fortini com propriedade ensina que:
“Nós sabemos que o Estado Liberal caracteriza-se pela retração da atuação estatal. Na verdade, reconhecia-se no Estado um certo risco, reconhecia-se na atuação estatal um perigo para a preservação das idéias de liberdade, de direito de propriedade, o que justificava a existência de um arcabouço jurídico voltado para frear a presença estatal na vida do particular. A presença do Estado era bem-vinda apenas em determinados segmentos. A atividade administrativa se fazia sentir sobretudo na esfera do "poder polícia", oportunidade em que a manifestação estatal era realizada sobretudo por meio de atos unilaterais. Então se o Estado, naquela época, era conclamado a atuar para executar a fiscalização, era fundamental confeccionar um instrumento de atuação capaz de propiciar que a ação ocorresse a contento. Daí a relevância do ato administrativo, manifestação unilateral, dotada de atributos, que nós todos conhecemos como imperatividade, auto-executoridade, presunção de legitimidade e veracidade. Este é o perfil da Administração Pública própria do Estado Liberal e o ato administrativo é o instrumento basilar de atuação da Administração Pública também próprio daquele período.
Mas com o avançar do tempo, o Estado Liberal foi substituído por um Estado Prestacional, uma vez que a presença do Estado passou a ser desejada. Ao contrário do vivenciado na época do Estado Liberal, detecta-se um clamor popular, há um reclame da sociedade para que o Estado esteja ali não só garantindo liberdade e propriedade, mas também a ofertar serviços públicos. O novo paradigma impõe a remodelagem das ferramentas, dos instrumentos do agir estatal para que paulatinamente se substitua o modelo unilateral, que é o modelo do Ato Administrativo, para possibilitar o enfretamento da nova gama de demandas sociais. As palavras consensualidade e contratualização ganham destaque.
A figura do contrato surge com muito mais nitidez no Estado Social exatamente porque o contrato passa a ser instrumento de igual importância quando comparado à figura do Ato Administrativo.” (FORTINI, 2008).
Nesse sentido, os contratos administrativos são importantes instrumentos de realização indireta pelo Estado do interesse público primário.
A propósito, o professor Lucas Furtado ensina que a Constituição brasileira de 1988 trouxe nova perspectiva ao Estado de Direito, Social e Democrático: a perspectiva de cooperação entre o Poder Público e as entidades privadas com objetivo de realizar o interesse público. Veja-se a lição do autor:
“O Estado brasileiro, conforme o modelo definido pela Constituição Federal, é democrático, de direito, cooperativo e social.
É democrático, em primeiro lugar, porque nascido da vontade do povo; de direito, porque se submete ao ordenamento jurídico previamente estabelecido, conforme definido na Constituição; cooperativo, porque, em inúmeras situações, necessita da participação de segmentos do setor privado para desempenhar suas atribuições; e social porque atua de modo a realizar o bem comum visando à satisfação dos direitos relacionados à dignidade da pessoa humana – saúde, educação, cultura, segurança etc.” (FURTADO, 2007, p. 36. Grifou-se).
Destarte, os direitos fundamentais, que constituem o verdadeiro interesse público, são realizados também por meio dos contratos administrativos. Estes, em verdade, se mostram instrumentos importantes e hábeis à consecução do bem comum.
Lucas Furtado pondera que:
“A atividade material da Administração Pública não se desenvolve apenas por meio de atos unilaterais. Historicamente, estes constituíam o principal instrumento de atuação da Administração Pública. Esta se tem utilizado, todavia, com cada vez mais freqüência de novos instrumentos para formalizar o seu relacionamento com os particulares.
Administração sente a necessidade de firmar acordos com entidades privadas com vista ao desempenho das suas necessidades relacionadas à realização de obras, à aquisição de bens ou à prestação de serviços. O objetivo desses acordos de vontade era e continua a ser em grande medida o de atender às demandas internas da Administração Pública, que sempre necessitou da colaboração dos particulares para o fornecimento de bens e de serviços.” (FURTADO, 2009, p. 411).
Sendo assim, os contratos administrativos são ferramentas importantes utilizadas pela Administração Pública para a realização do interesse público. É por esse motivo, não é demais repisar, que os contratos administrativos são submetidos ao regime jurídico de direito público, que garante ao ente público prerrogativas inerentes ao cumprimento do mister constitucional (cura do bem comum).
Conclusão
O processo de contratação pública carreia em si valores inerentes ao Estado Democrático de Direito. É que as licitações públicas permitem à Administração a contratação de proposta mais vantajosa, submetida a um certame isonômico, objetivo e transparente, e os contratos administrativos encerram a consecução de objeto imprescindível à consecução do interesse público primário.
BIBLIOGRAFIA
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Editora Atlas. 25ª ed., 2012.
FORTINI, Cristiana. Aspectos relevantes dos contratos administrativos. Biblioteca Digital Fórum de Contratação e Gestão Pública FCGP, Belo Horizonte, ano 7, n. 83, nov. 2008. Disponível em: <http://www.editoraforum.com.br/bid/bidConteudoShow.aspx?idConteudo=55668>. Acesso em: 31 outubro 2010.
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. 1º Ed, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. Revista dos Tribunais, 1996.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros. 18ª ed., 2005.
SUNDFELD, Carlos Ari. Licitação e Contrato Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1994.
SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos. O processo e o procedimento das licitações: novas tendências. Biblioteca Digital Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 5, n. 57, set. 2006. Disponível em: <http://www.editoraforum.com.br/bid/bidConteudoShow.aspx?idConteudo=37488>. Acesso em: 11 novembro 2010.
[1] “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...]
XXI – ressalvados os casos específicos na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”
[2] Lei n 8.666/93. Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a selecionar a proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional, e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatos.
Advogado da União - AGU. Procurador-Seccional da União em Uberlândia. Mestre em Administração Pública pela FGV/EBAPE
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOBATO, Marcelo Costa e Silva. Licitações e Contratos Administrativos como vetores do interesse público primário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 nov 2012, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32625/licitacoes-e-contratos-administrativos-como-vetores-do-interesse-publico-primario. Acesso em: 23 dez 2024.
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