O presente estudo buscará analisar se a Administração Pública pode impor uma sanção a um possível infrator, na hipótese em que este vem a falecer no curso do processo administrativo.
De início, cumpre esclarecer que o ponto central da questão está em compreender os fundamentos do direito administrativo sancionador.
A Administração Pública, muitas vezes, depara-se com a necessidade de impor aos administrados punições no intuito de garantir a higidez da ordem jurídica, ou o perfeito funcionamento dos serviços públicos. Esse poder se funda na supremacia que o Ente Público exerce sobre os particulares, a qual pode ser geral ou especial. A primeira é traduzida em face da preservação do interesse coletivo, e decorre do poder que o Estado possui sobre todos os indivíduos que estão no território nacional. Já supremacia especial é dirigida àquelas pessoas que têm uma relação jurídica específica com o Estado, submetidas a regime jurídico de cunho publicístico[1].
Diante desse cenário, surge o instituto chamado de direito penal administrativo, que “tende ao estabelecimento das infrações administrativas, necessárias para o funcionamento da Administração Pública, e o seu adequado regime de sanções”[2].
Nesse ponto, deve-se registrar que essa questão não passou despercebida pelo STF, conforme se pode extrair do MS 20.999, em decisão unânime do Tribunal Pleno, publicada no Diário da Justiça em 25-05-1990. No voto do Min. Celso de Mello, relator do caso, restou afirmado que a consagração do contraditório e da ampla defesa na Constituição Federal de 1988 implicou no reconhecimento, na esfera do processo administrativo punitivo, de clara limitação dos poderes da Administração, em contrapartida à crescente intensificação do grau de proteção jurisdicional dispensada aos direitos dos administrados.
Assim, tendo em vista que a identificação da responsabilidade criminal é privativa do Judiciário, com a aproximação do processo administrativo ao judicial verifica-se a aplicação dos parâmetros referentes ao jus puniendi no tocante aos crimes ou delitos, na medida do possível, ao processo administrativo sancionador. Esse, inclusive, é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, conforme se observa do seguinte precedente jurisprudencial:
DIREITO ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE SANCIONATÓRIA OU DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO PROCESSO PENAL COMUM. ARTS. 615, § 1o. E 664, PARÁG. ÚNICO DO CPP. NULIDADE DE DECISÃO PUNITIVA EM RAZÃO DE VOTO DÚPLICE DE COMPONENTE DE COLEGIADO. RECURSO PROVIDO.
1. Consoante precisas lições de eminentes doutrinadores e processualistas modernos, à atividade sancionatória ou disciplinar da Administração Pública se aplicam os princípios, garantias e normas que regem o Processo Penal comum, em respeito aos valores de proteção e defesa das liberdades individuais e da dignidade da pessoa humana, que se plasmaram no campo daquela disciplina.
2. A teor dos arts. 615, § 1o. e 664, parág. único do CPP, somente se admite o voto de qualidade - voto de Minerva ou voto de desempate - nos julgamentos recursais e mandamentais colegiados em que o Presidente do órgão plural não tenha proferido voto quantitativo; em caso contrário, na ocorrência de empate nos votos do julgamento, tem-se como adotada a decisão mais favorável ao acusado.
(...)
4. Recurso a que se dá provimento, para considerar aplicada ao Servidor Policial Civil, no âmbito administrativo, a sanção suspensiva de 90 dias, por aplicação analógica dos arts. 615, § 1o. e 664, parág. único do CPP, inobstante o douto parecer ministerial em sentido contrário. (STJ, Relator Ministro Napoleão Maia Filho, RMS 24559 / PR, 5ª Turma, DJe 01/02/2010) (realce atual)
A doutrina igualmente se manifesta de acordo com o entendimento ora exposto:
O certo é que vigora, fortemente, a idéia de que o Estado possui um único e unitário poder punitivo, que estaria submerso em normas de direito público. Essa caracterização teórica do poder punitivo estatal tem múltiplas consequências, e, paradoxalmente, parte de algumas das situações que lhe servem de premissa. A mais importante e fundamental consequência da suposta unidade de ius puniendi do Estado é a aplicação de princípios comuns ao direito penal e ao Direito Administrativo Sancionador, reforçando-se, nesse passo, as garantias individuais.[3]
Dessa forma, ainda que não se admita a aplicação do princípio da intranscendência da pena, tendo em vista que a sanção administrativa efetivamente não se configura uma pena, enquanto perdurar o processo administrativo de aplicação da sanção, os princípios do devido processo legal e da ampla defesa são de suprema importância.
Nesse sentido, é inegável que fere o direito de defesa a aplicação de uma sanção administrativa a uma pessoa que já morreu. Afinal, a se considerar a premissa de que a mera ocorrência do fato punível, ainda que ocorra o falecimento do infrator, é suficiente para a incidência da sanção, poderá haver hipóteses em que esta será aplicada sem que a pessoa sancionada sequer tenha tido condições de se defender. Para melhor visualizar a situação, basta citar o exemplo de o processo administrativo ser instaurado após a morte do infrator.
Não bastasse tal argumento, deve-se lembrar ainda que a multa é apenas uma das sanções possíveis à disposição da Administração Pública, podendo ainda ser aplicadas outras punições, tais como advertência, suspensão das atividades, declaração de inidoneidade, entre outras. Ora, a se permitir que a multa passe do infrator para o espólio e, por questões práticas, negar tal possibilidade as demais sanções, isso acabará por induzir a Administração a aplicar uma multa, ferindo a sua imparcialidade.
Dessa forma, com o devido respeito aos posicionamentos divergentes, considero que o processo administrativo sancionador, quando se encontra em curso, mais se aproxima do processo penal, devendo ser garantido ao infrator o respeito em sua inteireza ao contraditório e à ampla defesa. Apenas quando escolhida por parte da Administração Pública a sanção a ser aplicada, e exclusivamente no caso de multa definitivamente constituída, pode-se afirmar que se trata de uma dívida de valor e, portanto, de natureza real.
Vale dizer, quando a pessoa comete uma infração, cabe ao Ente Público escolher entre as sanções aplicáveis aquela que melhor se ajusta ao caso concreto. Assim, nem sempre a infração administrativa dará ensejo a uma sanção pecuniária. E, o princípio aplicável a uma situação deve ser o mesmo a todas as demais sanções, sob pena de ofensa à isonomia.
Considero, pois, inaplicáveis os postulados do direito tributário ao caso submetido à análise, em virtude de que, por expressa disposição legal (art. 3º do Código Tributário Nacional), o tributo não pode ser uma sanção por ato ilícito, justamente o inverso da sanção administrativa. Assim, a aplicação do tributo (e com ele a multa fiscal) e a sanção administrativa partem de premissas opostas, razão pela qual parece incoerente que cheguem a mesma conclusão.
Nesse sentido, não se pode perder de vista que a responsabilidade do espólio é exclusivamente patrimonial, razão pela qual o artigo 1.997 do Código Civil fala claramente em “dívida”, donde se infere que o crédito deve estar definitivamente constituído.
Por fim, merece registro o fato de que, apesar de a sanção administrativa possuir múltiplas finalidades, a preponderante, sobretudo durante o curso do processo administrativo sancionador, é a punitiva. Tanto isso é verdade que há independência das instâncias, isto é, ainda que o infrator seja condenado a pagar uma multa no processo administrativo punitivo, isso não impede que o Ente Público ingresse com uma ação autônoma para reparação do dano, visto que as finalidades são distintas.
Diante desse contexto, na situação em que o infrator vem a falecer no curso do processo administrativo sancionador, entende-se que não é possível a cobrança da multa eventualmente já imposta, ainda pendente de confirmação, sob pena de ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Por outro lado, caso a referida multa já tenha sido constituída definitivamente, ela deve ser considerada uma dívida, a atrair a incidência do artigo 1.997 do Código Civil.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010.
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
ROJAS, Andrés Serra. Derecho Administrativo: doctrina, legislacion y jurisprudencia. 4. ed. Cidade do México : Libreria de Manuel Porrua S.A., 1949. t.2.
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 818-846:
[2] Tiende al estabelecimento de las infracciones administrativas, necessarias para el funcionamento de la Administración Pública, y a su adequado régimen de sanciones (ROJAS, Andrés Serra. Derecho Administrativo: doctrina, legislacion y jurisprudencia. 4. ed. Cidade do México : Libreria de Manuel Porrua S.A., 1949. t.2, p. 1.125).
[3] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 102.
Procuradora Federal. Graduada em Direito pela UFPE. Pós-Graduada em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques. Da cobrança da multa administrativa no caso de óbito do infrator Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2012, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32779/da-cobranca-da-multa-administrativa-no-caso-de-obito-do-infrator. Acesso em: 23 dez 2024.
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