“A abordagem econômica do direito é criticada por ignorar a justiça. É preciso distinguir entre os diferentes significados desta palavra. Algumas vezes pode significar justiça distributiva, ou seja, o grau adequado de igualdade econômica. (...) Um segundo significado de justiça, talvez o mais comum, é o de eficiência”.
Richard A. Posner[1]
Inicialmente, antes de abordar em termos específicos o objeto deste breve estudo, o tipo de assunto escolhido como tema demanda um esclarecimento de alguns dos seus pressupostos. A justiça, nos termos em que aqui será analisada, será entendida como um conjunto de critérios de repartição ou participação em bens de uma sociedade.[2] Para fins deste artigo, a justiça não constituirá uma forma de atitude ou emoção. Em outras palavras, ela não será definida ou entendida como uma complexa forma de um sentimento altruísta.[3] Esta maneira de perceber a justiça, difundida na modernidade, é denominada por filósofos, como Alasdair MacIntyre, de emotivismo.[4] A justiça é identificada como uma simples manifestação subjetiva de cunho sentimental daquele que a invoca, o que a torna incapaz de ser empregada em um sentido racional que possa ser consensual no âmbito jurídico.
A afirmação no parágrafo acima conduz ao segundo pressuposto sobre a justiça: ela possui uma relação conceitual com o direito. Na medida em que a justiça é compreendida como um critério de divisão de bens exteriores dentro de um grupo social, o direito será um importante instrumento de sua manifestação.[5] Nesse aspecto, para se ter uma breve noção da importância do pressuposto mencionado, observa-se que um dos teóricos do direito mais citados no Brasil sustenta que, por razões conceituais, cada ordenamento jurídico deve ter uma pretensão de justiça, pois uma ordem normativa sem este intento não pode, conceitualmente, ser considerada direito.[6] Não obstante este tipo de consideração, há diversas maneiras de pensar esta relação. Este trabalho busca investigar uma das maneiras de perceber a relação conceitual existente entre justiça e direito.
2. Relação conceitual da justiça com o direito.
É relevante dizer também que subjaz a estes pressupostos o fato de necessitarmos de justiça porque somos seres humanos e vivemos em sociedade, junto com outras pessoas. Apesar de essas relações ocorrerem em diversos graus e níveis de complexidade, não podemos negar que os outros terão alguma influência em nossas vidas. Em uma vida em sociedade, portanto, é fundamental que possamos pensar que nossas relações políticas e jurídicas sejam pautadas ao menos pela justiça. É interessante notar que, se justificarmos a vida em sociedade tanto pelo auto-interesse, quanto pelo contrário, não poderemos deixar de lado uma concepção de justiça. A justiça tem como elemento essencial, portanto, uma idéia de alteridade, pois somente terá algum sentido discuti-la quando pensamos em relações entre pessoas.[7] Assim, Tercio Sampaio Ferraz Junior adverte que a justiça possui uma natureza intersubjetiva e pensá-la em termos individuais constitui um equívoco.[8] Ao contrário, a alteridade da justiça qualifica-a como uma das principais virtudes políticas na vida em sociedade.
Nesse sentido, refletir sobre a necessidade humana de justiça não é algo novo na história. Na antigüidade, Aristóteles é o primeiro a propor uma teoria de caráter sistemático sobre a justiça e a destacar a sua relevância na realização do ser humano. Ainda no mundo clássico, para ilustrar a importância da justiça, podemos destacar a conhecida indagação de Santo Agostinho na sua obra A Cidade de Deus: "Retirada a justiça, então, o que são os reinos além de grandes roubos?" Tem razão, assim, José Reinaldo de Lima Lopes ao afirmar que a questão da justiça fornecia “um sentido a todo o estudo e aplicação do direito em tempos pré-modernos”.[9] Em outras palavras, a síntese de Lima Lopes é que “a justiça foi, durante muito tempo, o critério de racionalização do direito”.[10]
Compartilha-se, por conseguinte, pelo menos em algum nível, a noção que a justiça é essencial caso tenhamos a pretensão de viver com outras pessoas, em sociedade. Como já disse, a relação entre justiça e Direito é pensada de inúmeras formas. Em um sentido geral, no projeto moderno traçado para o direito, observamos que é privilegiada na concepção de justiça a segurança jurídica, esta entendida no sentido que os sujeitos sabem quais serão as conseqüências jurídicas dos seus atos, ou seja, a previsibilidade consubstanciada na seguinte fórmula “se A é, logo, B deve ser”. Nesse ponto, diagnostica Luis Fernando Barzotto que “um dos traços característicos do fenômeno conhecido como ‘modernidade’ é a crise de fundamentos”, assim, “a angústia provocada no homem moderno por essa situação, leva-o a uma busca desesperada por segurança e certeza”.[11]
Uma tentativa de refutação desse projeto moderno argumenta que este perdeu a noção de relação conceitual entre justiça e direito. Não se pode reduzir justiça à ideia de segurança jurídica porque, na verdade, esta última noção pode ser simplesmente pensada como um aspecto interno da justiça que pode muito bem consistir em um dos critérios para se avaliar desigualdades sociais ou como um fator de justiça social.
Constituindo um aspecto da justiça, a segurança pode passar a relacionar-se conceitualmente com o direito, na formulação “segurança jurídica”, tanto de uma maneira interna à sociedade, quando consideramos qual o bem que será repartido, quanto de uma forma externa, na medida em que se pode utilizar este conceito como um argumento em favor da paz, evitando-se assim uma guerra. Um problema que se constata na negação da existência de uma relação de cunho conceitual entre justiça e direito reside no isolamento da noção de segurança jurídica em uma questão de mera previsibilidade que tem como referência apenas o direito.
É importante, contudo, destacar, seguindo o argumento de Lima Lopes, que da perda da relação conceitual entre justiça e direito não decorreu um esquecimento daquela na modernidade, mas apenas uma alteração no seu papel nas discussões. Esta mudança de perspectiva para a segurança jurídica acabou por reduzir o âmbito de incidência da justiça apenas às relações de natureza contratual, à esfera privada.
3. O espaço maior dado à discussão sobre a justiça nos últimos anos. A abordagem da Law and Economics.
O contexto acima descrito sofreu uma mudança nos últimos quarenta anos quando se observa que a discussão sobre a justiça voltou a ter um espaço maior no cenário político ocidental através da necessidade de deliberação sobre como deve ser feita a distribuição dos bens comuns em uma sociedade e, principalmente, pela incorporação de direitos sociais nos textos constitucionais.[12] Na terminologia de Lima Lopes, a existência de conflitos de ordem distributiva como a proteção do meio-ambiente, interesses difusos, etc., fizeram ressurgir a importância política e jurídica da justiça nos dias de hoje.
No início deste artigo disse que há muitas formas de pensar a relação entre justiça e direito e de como aquela pode ajudar a solucionar os problemas jurídicos ocasionados pelas discussões políticas mencionadas no parágrafo anterior. Durante o período referido, a tentativa ocorreu em parte mediante a formulação de novas teorias sobre a justiça ou através da adaptação de teorias clássicas como a de Aristóteles. Entre essas novas teorias e reformulações podemos citar os trabalhos de John Rawls[13], Michael Walzer[14], Ronald Dworkin[15], Briam Barry[16], Robert Nozick[17], Bruce Ackermam[18], Martha Nussbaum[19], Onora O’Neill[20], John Finnis[21], entre outros.
Neste vasto cenário de teorias sobre a justiça, deve-se esclarecer como esta nova relevância da justiça foi também examinada pelo que é hoje considerada a mais influente[22] escola americana de teorização jurídica: a análise econômica do direito ou, na simplificação inglesa, law and economics. Esta investigação, de uma escola de origem norte-americana, justifica-se pela observação de uma crescente americanização do direito em vários países[23], inclusive no Brasil. Ao utilizar a economia para avaliar e prescrever como o direito deve ser, a análise econômica do direito faz uso da principal via de acesso desse fenômeno de americanização.[24]
É possível formular a hipótese de que há uma concepção de justiça inerente à law and economics, segundo a visão do seu maior expoente e de suas referências teóricas: o professor da universidade de Chicago Richard Posner.[25] Neste autor, cabe destacar quais são os elementos centrais que compõem sua noção de justiça. Propõe-se que a referida composição reside nos conceitos análogos de maximização de riqueza e eficiência econômica. Assim, é possível afirmar que a justiça, para Richard Posner, é pensada como um conceito idêntico ao de eficiência econômica.
Este caminho conduz o argumento a uma aparente discordância com autores como James Gordley, pois este refere que “aqueles que tentam explicar o direito em termos econômicos não se preocupam com a justiça, mas apenas com a eficiência”.[26] Posner reconhece que esta crítica é recorrente quando se propõe uma análise da eficiência econômica, mas refere que a eficiência constitui um dos sentidos mais comuns de justiça.[27]
Por isso, o argumento fundamental da justiça como eficiência deve procurar indicar que, principalmente em suas obras The Economics of Justice e Economic Analysis of Law, Posner visa a explicar a justiça em termos de eficiência econômica, considerando ambos conceitos como correlatos.
Entendo que a divergência com Gordley não é real na medida em que este, em sua argumentação, acaba por considerar realmente a eficiência como um critério de repartição ou participação em bens de uma sociedade, discordando apenas dos seus resultados que considera ofensivos “ao senso de justiça da maioria das pessoas”.[28]
“Para se experimentar uma gratidão pura (deixando-se de lado o caso da amizade), tenho necessidade de pensar que me tratam bem, não por piedade, simpatia ou capricho, a título de favor ou privilégio, tampouco por um efeito natural do temperamento, mas por desejo de fazer o que a justiça exige. Portanto, quem me trata assim deseja que todos que se encontram em minha situação sejam tratados assim por todos os que se encontram na situação dele”.
Simone Weil, A Gravidade e a Graça.
É relevante tratar acerca da justiça porque necessitarmos dela enquanto seres humanos que vivem em sociedade, junto com outras pessoas. Ou seja, apesar dessas relações ocorrerem em diversos graus e níveis de complexidade, não podemos negar que os outros terão alguma influência em nossas vidas.
Sendo a justiça um critério de repartição e participação de bens em uma sociedade e não uma simples manifestação subjetiva de cunho sentimental daquele que a invoca, pode-se dizer que a justiça, no pensamento de Richard Posner, constitui uma tentativa de teorização desses critérios. A afirmação que a justiça, na perspectiva da law and economics defendida por Posner, é concebida como eficiência, ou maximização de riqueza, encontra plena justificativa em suas obras.
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[1] POSNER, Richard. Economic Analysis of Law, p. 27.
[2] Nesse sentido, ver CAMPBELL, Tom. Justice. 2ª ed., EUA: St. Martin, 2001, p. 22.
[3] Uma defesa da justiça como espécie de sentimento pode ser encontrada em MCCANN, Charles R. Individualism and the Social Order: The Social Element in Liberal Thought. Reino Unido: Routledge, 2004, p. 109.
[4] MACINTYRE, Alasdair. After Virtue. EUA: University of Notre Dame, 2ª ed., 1984, pp. 21-35.
[5] VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 66.
[6] ALEXY, Robert. On Necessary Relations Between Law and Morality in Ratio Juris 22, 1989, pp. 167-182.
[7] FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. Reino Unido: Oxford University, 2000, p. 161.
[8] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito – Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Altas, 2002, p. 176.
[9] LOPES, José Reinaldo de Lima. As palavras e a lei, p.24.
[10] Idem, ibidem, p. 266.
[11] BARZOTTO, Luis Fernando. O Positivismo Jurídico Contemporâneo. São Leopoldo: Unisinos, 1999, p.137.
[12] LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. cit., p. 267.
[13] A Theory of Justice, Cambridge: Harvard University, 1971.
[14] Spheres of Justice, Oxford: Martin Robertson, 1984.
[15] Sovereign Virtue, Cambridge: Harvard University, 1999.
[16] Justice as Impartiality, Oxford: Clarendon, 1995.
[17] Anarchy, State and Utopia, Oxford: Blackwell, 1974.
[18] Social Justice in the Liberal State, New Haven: Yale University, 1980.
[19] Beyond the Social Contract: Toward Global Justice, in Tanner Lectures on Human Values, EUA: University of Utah, 2003.
[20] Bounds of Justice, Cambridge, UK: Cambridge University, 2000.
[21] Natural Law and Natural Rights, Oxford: Clarendon, 1980.
[22] O diretor da faculdade de direito de Yale, Estados Unidos, Anthony T. Kromman, sustentou que a análise econômica do direito “continua e permanece sendo a mais influente escola de teoria do direito” nos Estados Unidos. Second Driker Fórum for excellence in the Law in Wayne Law Review no 42, vol 115, 1995, p. 160.
[23] Nesse sentido, ver “L’americanisation du droit”, in Archives de philosophie du droit, tome 45, 2001.
[24] FREEDMAN, David. L’americanisation du droit français par la vie économique in Archives de philosophie du droit, tome 45, p. 207.
[25] Esta escola denominada análise econômica do direito foi criada em Chicago nos Estados Unidos e possui suas fontes teóricas mais reconhecidas em trabalhos de acadêmicos como Ronald Cose, Gary Becker, Guido Calabresi e Richard Posner, publicados na década de 1960 e 1970, ainda que a conexão entre os campos do direito e da economia já tenha sido objeto de estudos por quase duzentos anos. A título exemplificativo, pode-se mencionar que filósofos como Jeremy Bentham, Adam Smith e Karl Marx, em diversos graus, debruçaram-se sobre as relações entre direito e economia. A law and economics inicialmente ocupava-se apenas em estabelecer uma análise econômica do direito relacionado ao antitruste, dos contratos e do direito da empresa, mas acabou estendendo-se ao longo dos anos, para as mais diversas áreas do direito, como o direito tributário, constitucional e de família. Além do crescimento dentro do campo do direito, a disciplina evoluiu para além da esfera dos mercados e trata hoje de assuntos como teoria política e teoria do direito para tentar redefinir o papel do direito nas sociedades.
[26] GORDLEY, James. The Moral Foundations of Private Law in The American Journal of Jurisprudence nº 47, 2002, p. 5.
[27] POSNER, Richard. A. Economic Analysis of Law, p. 27.
[28] GORDLEY, James. The Moral Foundations of Private Law, p.11.
Mestre em Direito pela UFRGS. Procurador Federal.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIEFFEL, Luiz Reimer Rodrigues. O conceito de Justiça pode equivaler ao de eficiência? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2012, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32785/o-conceito-de-justica-pode-equivaler-ao-de-eficiencia. Acesso em: 23 dez 2024.
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