SUMÁRIO: I. Introdução; II. Seguridade social e ordem social; III. Os serviços de previdência complementar como direito social. IV. Direitos fundamentais e previdência complementar. V. Conclusões.
I. Introdução:
O presente artigo pretende afirmar a qualidade de direito fundamental dos benefícios oferecidos pelas entidades de previdência complementar, segmento previdenciário regulamentado pelas Leis Complementares nº 108/2001 e 109/2001.
A categorização dos serviços de previdência complementar como direito fundamental é essencial para firmar a importância desse segmento previdenciário na órbita constitucional, conforme a mudança do panorama legislativo promovido pela Emenda Constitucional nº 20/1998 que, alterando a redação do art. 202, transferiu a previdência complementar do capítulo da ordem econômica para a ordem social.
É incontroversa a natureza jurídica de direito fundamental dos benefícios e serviços oferecidos pelos regimes públicos previdenciários (Regime Geral de Previdência Social - RGPS e Regimes Próprios de Previdência Social – RPPS da União, Estados, Municípios e Distrito Federal em relação a seus servidores), não sendo comum na doutrina a catalogação como direito fundamental daqueles benefícios oferecidos pelo regime de previdência complementar, dada a sua natureza privada e contratual.
A atividade de previdência privada complementar é exercida por pessoas jurídicas de direito privado denominadas entidades fechadas de previdência complementar (fundos de pensão) e entidades abertas de previdência complementar.
Essas entidades recebem autorização do Estado para operar planos de benefícios previdenciários de natureza contratual[1], mas com forte dirigismo estatal no seu conteúdo, sendo os benefícios ofertados:
a) Nas entidades fechadas, exclusivamente aos empregados de uma empresa ou grupo de empresas e aos servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, entes denominados patrocinadores; e aos associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial, denominadas instituidores; e
b) Nas entidades abertas, a todas as pessoas físicas interessadas, independentemente de qualquer vínculo jurídico prévio com as entidades de previdência complementar.
Essa relação jurídica previdenciária é constituída: a) pela Entidade de Previdência Complementar, criada exclusivamente para administrar os planos de benefícios previdenciários; b) pelos participantes e assistidos[2], aqueles que aderem ao contrato previdenciário, assumindo obrigação de fazer aportes de contribuições ao plano de benefícios; c) os patrocinadores, aqueles que criam as entidades de previdência e, em alguns casos, realizam contribuições para custear o plano de benefícios.
Denomina-se de regulamento o instrumento contratual que disciplina os direitos e obrigações dos participantes e patrocinadores perante o plano de benefícios, e convênio de adesão o instrumento que formaliza os direitos e obrigações do patrocinador em relação ao plano de benefício administrado pela entidade de previdência complementar.
O regulamento do plano de benefícios nada mais é que o contrato previdenciário, com cláusulas que prevêem quais os benefícios ofertados, os requisitos para a concessão, as contribuições devidas pelas partes, etc.
Os recursos carreados pelos participantes e patrocinadores, conforme o caso, são aplicados em ativos financeiros (títulos públicos e privados, imóveis, etc.) de modo que, capitalizados em contas individuais de cada participante, possam garantir o pagamento futuro dos benefícios contratados.
Essa passagem introdutória acerca do modo como se realiza a relação jurídica de previdência complementar é necessária para contextualizar a matéria objeto do presente trabalho em relação a sua posição na Constituição em vigor.
O Estado brasileiro ao tempo em que possui como fundamento o valor social do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º da CF/88), o que uma leitura apressada abriria ensanchas a considerá-lo um Estado liberal preocupado unicamente com a propriedade privada e a defesa dos interesses econômicos individuais dos particulares, valora como objetivo constitucional (art. 3º da CF/88) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, e a redução das desigualdades nacionais e regionais, caracterizando-o como verdadeiro Estado Social Democrático de Direito.
Essas normas constitucionais principiológicas, somadas a uma série de outras passagens do direito positivo constitucional, demonstram a preocupação do constituinte com o bem-estar da coletividade, exigindo do Estado brasileiro uma participação mais ativa, a fim de garantir efetivamente os direitos dos cidadãos a uma vida digna.
A carta constitucional visando garantir esse estado de bem estar social (welfare state) estabeleceu um modelo de ordem social que impõe deveres ao Estado e à Sociedade em relação às pessoas que fazem parte do seu substrato humano.
Não é sem razão que o título VIII da ordem social constitucional tem no seu art. 193 um direcionador valorativo ao fixar que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”.
Sob o aspecto metodológico, como bem afirmou José Afonso da Silva[3], não andou bem o legislador constitucional ao separar topologicamente o regramento dos direitos sociais e da ordem social já que a aquele, principalmente nos artigos 6º e 7º, coube dispor sobre uma série de direitos subjetivos garantidores dos direitos sociais à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, e os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, e aos direitos da ordem social (artigos 193 a 232 da CF) dispor sobre a forma como será organizado o sistema de ações públicas e privadas para atingimento daqueles direitos sociais, mecanismos estes que compõem a essência da ordem social.
Esses direitos sociais, segue o renomado constitucionalista, consistem a “dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais”[4].
São direitos fundamentais de segunda geração que possuem a nota distintiva da dimensão positiva que exige do Estado uma atuação material para concretização da justiça social[5].
Ingo Wolfgang Sarlet, em monografia que aborda a eficácia dos direitos fundamentais, sustentando-se principalmente na doutrina alemã, discorre sobre a participação do Estado como promotor da justiça social, afirmando:
Vinculados à concepção de que ao Estado incumbe, além da não-intervenção na esfera de liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos direitos de defesa, a tarefa de colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições fáticas que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundamentais, os direitos fundamentais a prestações objetivam, em última análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado), mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção de sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos. Assim, enquanto os direitos de defesa (status libertatis e status negativos) se dirigem, em princípio, a uma posição de respeito e abstenção por parte dos poderes públicos, os direitos a prestações, que, de modo geral, e ressalvados os avanços registrados ao longo do tempo, podem ser reconduzidos ao status positivus de Jellinek, implicam uma postura ativa do Estado, no sentido de que este se encontra obrigado a colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material (fática).
Os direitos fundamentais a prestações enquadram-se, como já visto, no âmbito dos direitos da segunda dimensão, correspondendo à evolução do Estado de Direito, de matriz liberal-burguesa, para o Estado democrático e social de Direito, incorporando-se à maior parte das Constituições do segundo pós-guerra. No constitucionalismo pátrio, em que pese uma tímida previsão de direitos a prestações sociais na Constituição de 1824, foi a Carta de 1934, inspirada, principalmente, nas Constituições do México (1917) e de Weimar (1919), que inaugurou a fase do constitucionalismo social no Brasil, passando a integrar os direitos fundamentais da segunda dimensão ao nosso direito constitucional positivo[6].
Esse direito fundamental a prestações, do qual se inserem os direitos sociais e da ordem social, se apresentam, conforme seu objeto, em direito a prestações jurídicas ou normativas e direito a prestações fáticas ou materiais. Ou seja, os direitos sociais e da ordem social ora se apresentam como meio de proteção normativa para que se assegure aos indivíduos a concretização dos direitos individuais e de liberdade de primeira geração; ora como norma direcionada a obrigar o Estado à realização material de uma situação jurídica de natureza prestacional que beneficie o indivíduo e lhe confira uma melhoria da sua condição humana e social.
Frise-se que cabe à Constituição de cada Estado eleger a forma pela qual será efetivada a concretização dos direitos sociais, que no caso da Constituição brasileira elegeu como técnica de proteção social a seguridade social, abrangendo ações na área de saúde, assistência social e previdência.
II. Seguridade social e ordem social:
A Constituição Federal de 1988 incluiu no art. 194 a Seguridade Social dentre os direitos fundamentais que compõem a ordem social[7], compreendendo um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência social e à assistência social, tendo como objetivos a universalidade da cobertura e do atendimento; a uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; a seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; a irredutibilidade do valor dos benefícios; a eqüidade na forma de participação no custeio; a diversidade da base de financiamento; o caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados.
A proteção social realizada pelo Estado tem por fim precípuo afastar as situações de necessidade material, denominadas de contingências ou riscos sociais (doença, a invalidez, a morte, a idade avançada, a maternidade, o desemprego, etc.) a que estão submetidos os cidadãos, lhes conferindo a segurança necessária à vida em sociedade.
E o Estado brasileiro realiza essa proteção social em colaboração com a sociedade através de ações de saúde, previdência social e assistência social, cada uma guardando características e campo de atuação específicos.
Embora a literalidade do texto constitucional induza a concluir que os objetivos descritos no art. 194[8] sejam aplicáveis de igual modo a todas as técnicas de proteção social (saúde, previdência social e assistência social), na verdade isso não se realiza desse modo.
A proteção social na área de saúde destina-se à redução do risco de doença e de outros agravos a ela relacionados, através de medidas preventivas ou reparadoras, asseguradas a todos os cidadãos indistintamente (universalidade), independente de qualquer contraprestação financeira pela pessoa beneficiária. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, sendo franqueada sua execução também à iniciativa privada. O acesso é universal e igualitário, cujos serviços são financiados com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e por toda a sociedade, por meio do recolhimento da contribuição social prevista no art. 195 da Constituição.
Os serviços de assistência social serão prestados àquele que necessitar, independentemente de qualquer contraprestação financeira, criando uma rede de proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; medidas de promoção da integração ao mercado de trabalho; habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Permite-se que tais ações sejam executadas por entidades beneficentes e de assistência social de natureza privada, não somente pelo poder público diretamente. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, além de outras fontes previstas em lei.
Já a Previdência Social consiste técnica de proteção social direcionada ao trabalhador, mas não somente a este como veremos a seguir, protegendo os segurados daquelas contingências ou riscos sociais que afetam sua capacidade laborativa e os impedem do normal exercício de seu trabalho.
A legislação elege quais eventos sociais são caracterizadores de proteção social (doença, idade avançada, óbito, maternidade, desemprego, etc.) e cria, ou permite que se crie, benefícios de caráter prestacional ou serviços que protegem o segurado dos efeitos nocivos irradiados por esses eventos.
Nesse sentido, a doutrina:
O termo “contingências” para fins de proteção da previdência social deve ser entendido nos seus devidos moldes. A previdência social tem por objetivo resguardar o trabalhador das consequências dos eventos que possam atingir a sua atividade laboral. O que é relevante para qualificar tais eventos como merecedores do amparo da previdência social é a sua repercussão econômica na vida do trabalhador. As características de “futuro e incerto” perdem relevância para a previdência social na definição das contingências a serem por ela cobertas. Tudo aquilo que repercutir negativamente na economia do trabalhador deve ser objeto de proteção por parte da previdência social. Mesmo que o evento seja atual, querido e previsto, ainda assim, se abalar a economia do trabalhador, deverá ser alvo de cobertura pela previdência social[9].
A técnica de proteção social executada mediante as ações de Previdência Social destinam não exclusivamente à proteção do trabalhador, ou seja, aquele que mantém relação empregatícia com empregador pessoa física ou jurídica, mas também a proteção daqueles que, embora não mantenham na atualidade vínculo laboral, potencialmente podem vir a exercer atividade profissional, qualquer que seja ela.
Essa proteção social previdenciária se apresenta como instrumento concretizador do princípio da dignidade da pessoa humana, na medida que permite aos segurados manter ou ampliar o seu padrão social e salarial, não somente no nível da cobertura básica, nos momentos em que sua força de trabalho se apresenta reduzida ou nula[10].
III. Os serviços de previdência complementar como direito social:
Os diversos meios de concretização da previdência social carregam consigo a necessidade da retributividade ou contraprestação do segurado, diferenciando-se nesse ponto em relação aos serviços de saúde e assistência social. Mas se assemelha a estas técnicas de proteção social quanto à possibilidade de particulares (pessoas jurídicas de direito privado) virem a atuar complementarmente à atuação de entidades estatais na execução do serviço e na oferta de prestações previdenciárias.
Note-se, e merece sublinhar exaustivamente tal afirmação, que quando os particulares executam tais serviços não perdem a natureza "previdenciária" e “social”, como quer fazer entender parte da doutrina especializada.
Primeiro por que, tanto a previdência dita “pública e obrigatória” (Regime Geral e Regimes Próprios), quanto a previdência “privada ou complementar e facultativa” (Previdência Complementar Aberta e Fechada), encontram-se imersas num mesmo contexto constitucional, agrupadas topicamente na mesma seção II (Da Previdência Social), que por sua vez integram o capítulo II (Da Seguridade Social) do título VIII (Da Ordem Social) da Constituição Federal.
Segundo que o qualificativo “social”, como vimos anteriormente em relação à saúde e à assistência social, não está reservado às situações em que a técnica de proteção social seja executada e administrada apenas por pessoas jurídicas de direito público[11].
Alguns modelos previdenciários latino-americanos de Previdência Social, a exemplo do Chile[12], possuem como regra a execução da política previdenciária através de entidades privadas, de forma exclusiva e obrigatória; noutros, como o caso do Brasil e da Argentina, a Previdência Social é formada pela atuação conjunta de uma previdência pública e obrigatória, e da previdência privada, complementar e facultativa.
Cada Estado define o modo pelo qual realizará a proteção previdenciária de seus cidadãos, cuja escolha pelo modelo público ou privado não faz diminuir a importância social da Previdência.
O que importa para o texto constitucional pátrio é o objeto de proteção social e o interesse público existente no oferecimento e execução desses serviços, seja por entidades públicas, seja por entidades privadas, na prestação de benefícios e serviços previdenciários, embora a previdência pública e a previdência privada (complementar) possuam regramentos normativos diversos que lhes conferem características próprias e autonomia uma em relação à outra[13].
Em síntese: estão abrangidos pelo conceito de previdência social tanto os serviços prestados pelos entes públicos em caráter obrigatório (leia-se: o Regime Geral administrado pelo Instituto Nacional do Seguro Social e os Regimes Próprios dos entes federativos), quanto aqueles prestados pelos particulares no regime de “previdência complementar” ou “previdência privada” (Entidades Abertas de Previdência Complementar - EAPC e Entidades Fechadas de Previdência Complementar - EFPC).
Embora o citado equívoco hermenêutico tenha ganhado corpo na doutrina, não se visualizando idêntica interpretação quando os serviços de saúde, educação e assistência social são executados pelos particulares (todos de interesse social), tal equívoco pode ser explicado pela ausência de um tratamento adequado à matéria pelo poder constituinte originário, o que permitiu interpretar a previdência privada complementar como algo alheio ao sistema de previdência social, tratamento que evoluiu positivamente com a chegada da nova redação do art. 202 da CF/88 pela Emenda Constitucional nº 20/1998[14].
A nova redação do referido dispositivo constitucional traçou as características do regime de previdência complementar, quais sejam: complementaridade em relação aos regimes previdenciários públicos e obrigatórios; autonomia em relação ao Regime Geral de Previdência Social; facultatividade, considerando que os participantes e assistidos podem aderir ao contrato previdenciário ou rescindir a avença; capitalização dos recursos garantidores para o pagamento dos benefícios contratados com formação de poupança individual; pleno acesso dos participantes (segurados) às informações relativas à gestão dos planos de benefícios; independência em relação ao contrato de trabalho; paridade contributiva quando houver patrocínio de entidades públicas aos planos de benefícios; representatividade dos participantes e assistidos nos colegiados e instâncias de decisão.
No que interessa para o objeto do presente trabalho, devemos compreender que o estudo do direito previdenciário encontra-se imerso nesse universo constitucional de garantia estatal de bem-estar social em benefício dos cidadãos, e que a previdência complementar também se inclui como importante valor constitucional, destinado não exclusivamente à proteção social dos trabalhadores, mas dos cidadãos de uma maneira geral, de modo a incentivar a poupança coletiva interna.
IV. Direitos fundamentais e previdência complementar:
Após essas breves linhas, uma pergunta que se impõe é se podemos catalogar a previdência privada complementar como um direito constitucional fundamental?
Considerando a importância que a doutrina atribui àqueles direitos que se amolduram sob o rótulo de direitos fundamentais, seja pelo seu significado axiológico dentro do contexto constitucional, seja pela própria força normativa (eficácia) imposta pelo §1º, art. 5º da CF/88 (as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata), tem se questionado sobre a posição da previdência privada complementar dentre os direitos constitucionalmente tutelados (fazem parte do art. 202 da CF/88), especialmente se integra o conceito de direitos fundamentais, o que a colocaria num patamar de importância superior.
Importante rememorar a teoria que classifica os direitos como formal e materialmente constitucionais, sendo aqueles todos os que estão incluídos formalmente no texto da Constituição e estes os que, embora não estejam escritos no texto constitucional, também são assim considerados em razão de sua importância e carga axiológica.
Também para os direitos fundamentais existiria a classificação daqueles fundamentais sob o aspecto formal, que seriam aqueles direitos elencados no Título II (direitos e deveres individuais e coletivos, direitos sociais, da nacionalidade, direitos políticos e dos partidos políticos, etc.), e aqueloutros materialmente fundamentais que não estão incluídos no texto constitucional, mas por permissão do §2º, art. 5º da CF/88 (os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte) são assim considerados[15].
Mas o que de fato significa e faz caracterizar um direito como fundamental?
Ingo Wolfgang Sarlet, utilizando os ensinamentos de Robert Alexy, lembra da dificuldade de se definir o que sejam direitos fundamentais sem se realizar um cotejo com o direito positivo constitucional de cada país, já que cada Estado elege seus valores primordiais e os positivam em suas Constituições.
Discorre o constitucionalista pátrio, propondo arriscadamente uma conceituação aberta e universal de direitos fundamentais como sendo "todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura do catálogo)"[16].
Na nossa Constituição em vigor, que qualifica nossa República como Estado Social e Democrático de Direito[17], pode ser considerado como direito fundamental aqueles relacionados ao direito individual de igualdade e liberdade, como meio de proteção do indivíduo contra o Estado (art. 5º), bem como os direitos sociais que são aqueles destinados à prestação positiva do Estado em relação aos seus indivíduos (principalmente, artigos 6º e 7º, mas incluindo os direitos da ordem econômica e da ordem social - art. 170 e 193, respectivamente).
Outros direitos fundamentais podem ser extraídos das cláusulas de abertura referenciadas (§2º, art. 5º e parte final do art. 7º da CF/88).
Assim, a previdência privada complementar por fazer parte da seguridade social deve ser considerada como serviço concretizador dos direitos fundamentais com vistas à ampliação da cobertura básica ofertada pelo Estado no Regime Geral e nos Regimes Próprios (previdência pública).
Como dito antes, o fato do serviço de previdência complementar ser executado por entidades privadas não tem como consequência automática a exclusão da sua natureza jurídica como direito fundamental.
Não é demais lembrar que os serviços de saúde e educação também são executados por particulares, paralelamente aos serviços públicos, e nem por isso há a defesa da ausência da natureza jurídica de direito fundamental.
Mas qual a vantagem de se considerar a previdência social (nela incluída a previdência pública e a previdência privada) como direito fundamental?
Algumas características ou efeitos decorrentes da categorização das normas jurídicas constitucionais como direitos fundamentais são elencados pela doutrina[18], embora exista certa variação e discordância no conjunto dessas características apontadas.
São essas, em breve síntese, as principais características dos direitos fundamentais:
a) os direitos fundamentais são universais, usufruíveis por todas as pessoas (a qualidade de ser humano é suficiente para o gozo dos direitos fundamentais), e absolutos por se situarem no patamar máximo da hierarquia normativa, embora possam ser limitados por outros direitos fundamentais ou outros valores com sede constitucional;
b) os direitos fundamentais possuem um caráter evolutivo e sua consagração no texto constitucional depende do momento histórico de cada Estado, podendo alguns direitos considerados fundamentais posteriormente perderem tal qualificação diante de novos valores sociais, ou mesmo terem ampliado seu âmbito de aplicação;
c) são inalienáveis, não podendo o seu titular impedir que seja exercitado em seu benefício (ex: direito à integridade física e a proibição da auto-mutilação), e indisponíveis, pois inviável que se abra mão irrevogavelmente dos direitos fundamentais;
d) são direitos positivados nos textos das Constituições, vigentes numa ordem jurídica concreta, impondo-se a todos os poderes constituídos, inclusive ao poder de reforma da Constituição;
e) a vinculação do poder legislativo se estabelece na medida que deve observar os direitos fundamentais no momento do processo legislativo de criação de normas jurídicas, bem como o obriga a criar as normas complementares necessárias à concretização dos direitos fundamentais;
f) vincula o poder executivo tornando nulos os atos praticados em contrariedade aos direitos fundamentais;
g) vincula o poder judiciário, pois cabe a este a defesa dos direitos fundamentais quando do exercício da atividade jurisdicional pelos magistrados, conferindo a máxima eficácia aos direitos fundamentais;
h) os direitos fundamentais possuem aplicabilidade imediata e seus efeitos independem de uma complementação normativa posterior (característica não-programática), salvo se a própria norma constitucional exigir tal complementação ou for da própria essência do direito exigir uma integração do legislador ordinário (ex: a garantia de acesso ao Judiciário não prescinde da edição de uma norma processual para indicar a forma pela qual se realizará o direito).
V. Conclusões:
Considerando o que apresentamos neste trabalho, podemos afirmar que:
a) a Previdência Social está incluída dentre os direitos sociais de segunda geração, consistindo prestações positivas materiais proporcionadas pelo Estado aos cidadãos para concretização da justiça e do bem-estar sociais;
b) a previdência pública obrigatória (RGPS e RPPS) e a previdência privada complementar (previdência aberta e fechada) são mecanismos de proteção da Previdência Social, catalogadas como direito fundamental, essenciais à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, destinadas à manutenção do status social do segurado quando acometido das contingências sociais protegidas por lei ou pelo contrato previdenciário;
c) o fato dos serviços de previdência complementar serem executados por pessoas jurídicas de direito privado, denominadas entidades de previdência complementar, não retira a natureza de direito fundamental dessa técnica de proteção social, a semelhança do que ocorre com os serviços de saúde, assistência social e educação, os quais também são executados pelos particulares e não perdem a categorização de direito fundamental;
d) a técnica de proteção social executada mediante as ações de Previdência Social destinam-se não exclusivamente à proteção do trabalhador, ou seja, aquele que mantém relação empregatícia com empregador pessoa física ou jurídica, mas também à proteção daqueles que, embora não mantenham na atualidade vínculo laboral, como é o caso dos segurados facultativos do RGPS e dos participantes dos planos de benefícios ofertados por entidades abertas de previdência complementar, potencialmente podem vir a exercer atividade profissional remunerada e também estão sob a tutela estatal previdenciária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
DIAS, Eduardo Rocha e MACÊDO, José Leandro Monteiro de. Curso de Direito Previdenciário. São Paulo. Método. 2008.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª edição. São Paulo. Saraiva. 2008.
PULINO, DANIEL. Previdência Complementar. Natureza jurídico-constitucional e seu desenvolvimento pelas Entidades Fechadas. São Paulo. Conceito Editorial. 2011.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª edição. Porto Alegre. Livraria do Advogado. 2001.
SILVA, Devanir da. O modelo brasileiro de previdência complementar e suas perspectivas. In Conjuntura Social. Brasília. MPAS. ACS. 1997. Trimestral.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11ª edição. São Paulo. Malheiros. 1996.
[1] O regime fechado de previdência complementar tem como órgão regulador o Conselho Nacional de Previdência Complementar, órgão vinculado ao Ministério da Previdência Social, e como órgão fiscalizador a Superintendência Nacional de Previdência Complementar – Previc, autarquia federal criada pela Lei nº 12.154/2009. Já o regime aberto de previdência complementar tem como órgão regulador o Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP, órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, e como órgão fiscalizador a Superintendência de Seguros Privados – Susep, autarquia federal criada pelo Decreto-lei nº 73/66.
[2] Os assistidos são os participantes que já estão em gozo do benefício contratado.
[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11ª edição. São Paulo. Malheiros. 1996. Páginas 276 e 277.
[4] Idem.
[5] Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª edição. Porto Alegre. Livraria do Advogado. 2001. Página 51. O autor estuda com profundidade as três gerações ou dimensões dos direitos fundamentais, sendo a primeira geração a dos direitos individuais do cidadão em relação ao Estado, de cunho negativo ou de abstenção do poder público em relação aos indivíduos (ex: direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade); os de segunda geração os direitos sociais, econômicos e culturais, que, como acima afirmado, exigiu do Estado uma posição ativa a fim de materializar e garantir o efetivo usufruto dos direitos individuais pelo cidadão, como indutor de uma justiça social eqüitativa. E os de terceira geração são os direitos coletivos que saem do aspecto individual de cada cidadão e mantém a titularidade na coletividade, indeterminável subjetivamente (ex: direito à paz, ao meio ambiente sadio e à qualidade de vida).
[6] Idem. Páginas 188 e 189.
[7] Ao lado da Seguridade Social também se encontram arrolados como direitos fundamentais da ordem social: a educação, a cultura, o desporto, a ciência e tecnologia, a comunicação social, o meio ambiente, a proteção da família, da criança, do adolescente, do jovem, do idoso e dos índios.
[8] Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos:
I - universalidade da cobertura e do atendimento;
II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais;
III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;
IV - irredutibilidade do valor dos benefícios;
V - eqüidade na forma de participação no custeio;
VI - diversidade da base de financiamento;
VII - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
[9] DIAS, Eduardo Rocha e MACÊDO, José Leandro Monteiro de. Curso de Direito Previdenciário. São Paulo. Método. 2008. Páginas 27 e 28.
[10] No modelo brasileiro atual cabe aos regimes previdenciários públicos obrigatórios (RGPS e RPPS) a proteção básica, com a fixação de limites mínimos (salário-mínimo) e máximos das prestações pagas aos segurados (teto da renda mensal igual ao valor máximo do salário-de-contribuição), e aos regimes privados complementares e facultativos a ampliação da cobertura previdenciária (regimes fechado e aberto de previdência complementar).
[11] Aliás pouco se argumenta o caráter não-social ou a ausência de interesse social quando os serviços de saúde e assistência social, também o serviço de educação, é executado e gerido por pessoas de direito privado, mesmo quando estas exercem tais atividades com finalidade lucrativa.
[12] Silva, Devanir da. O modelo brasileiro de previdência complementar e suas perspectivas. In Conjuntura Social. Brasília. MPAS. ACS. 1997. Trimestral. Página 110.
[13] Por todos, sugere-se a leitura da obra do Procurador Federal Daniel Pulino (Previdência Complementar. Natureza jurídico-constitucional e seu desenvolvimento pelas Entidades Fechadas. São Paulo: Conceito Editorial, 2011) que aborda com profundidade a análise constitucional da previdência privada complementar.
[14] Os operadores jurídicos, tradicionalmente, dispensam maior atenção à tutela dos direitos quando inseridos expressamente no texto constitucional, principalmente em razão do sistema jurídico brasileiro derivar da tradição romano-germânica positivista. Embora a previdência complementar já constasse desde o texto originário da CF/88 e estivesse regulamentada desde o ano de 1977 (Lei nº 6.435/77), a evolução do seu conteúdo semântico, de fato, somente se espraiou de forma significativa a partir da edição da EC 20/1998. O despertar do interesse no estudo da matéria foi ampliado consideravelmente nos tempos hodiernos em razão da implantação da previdência complementar do servidor público (Lei nº 12.618/2012), que teve sua base normativa (§14, art. 40 da CF/88) assentada também no momento da edição da EC 20/1998.
[15] A parte final do art. 7º também permite a afirmação da existência de direitos sociais não expressos ao afirmar que "são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...)".
[16] Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª edição. Porto Alegre. Livraria do Advogado. 2001. Páginas 82 e 83.
[17] CF/88: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)
[18] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª edição. São Paulo. Saraiva. 2008. Páginas 239 a 253.
Procurador Federal da Advocacia-Geral da União. Pós-Graduado em Direito Constitucional e Direito Previdenciário. Procurador-Chefe da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS em Alagoas (2007/2009). Conselheiro da Câmara de Recursos da Previdência Complementar. Atualmente ocupa o cargo de Coordenador de Estudos e Normas da Procuradoria Federal junto a Previc.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Allan Luiz Oliveira. Previdência complementar como direito fundamental Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2012, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32813/previdencia-complementar-como-direito-fundamental. Acesso em: 23 dez 2024.
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