1. INTRODUÇÃO.
A primeira significativa reformulação das ideias desenvolvidas na sua obra “Uma Teoria da Justiça”, de 1971, ocorreu com a sistematização feita no livro “Liberalismo Político” em 1993. O livro é um resultado de várias conferências que vão de 1978 até 1989. Caso consideremos a nova introdução feita para a edição de 1995 do Liberalismo Político, deve ser incluído também o debate com o filósofo alemão Jürgen Habermas realizado no Journal of Philosophy em 1995. Rawls responde em "Reply to Habermas" o artigo "Reconciliação por meio do uso público da razão".
As conferências dão um panorama filosófico geral do liberalismo político no marco da razão prática, bem como tratam com mais detalhe as ideias principais do que vem a ser esse tipo de liberalismo. A unidade das conferências é dada pela fidelidade ao tema central do livro Teoria da Justiça, ou seja, a concepção de liberalismo político.
2. PRIMEIRAS DIFERENÇAS ENTRE “UMA TEORIA DA JUSTIÇA” E O “LIBERALISMO POLÍTICO”.
No livro “Uma Teoria da Justiça” os objetivos tinham em vista que a filosofia moral moderna está permeada pelo utilitarismo ou por um certo intuicionismo racional. Rawls pretende generalizar e levar a um nível mais alto de abstração a doutrina tradicional do contrato social, (conforme consta em Kant, Locke e Rosseau). Busca com a justiça como imparcialidade uma explicação sobre a justiça superior a do utilitarismo. Quer estabelecer a base moral mais apropriada para uma sociedade democrática.
Um dos objetivos centrais do Liberalismo Político é dizer como a sociedade bem ordenada da justiça como imparcialidade (conforme disposta no livro Uma Teoria da Justiça) deve ser entendida quando está ajustada à ideia de um pluralismo razoável e regulada por uma concepção política de justiça. Outro objetivo central do Liberalismo Político é como uma sociedade bem ordenada liberal que contem uma série de concepções políticas razoáveis deve ser entendida. Rawls pergunta: qual é a base de unidade social mais razoável dadas as duas condições acima?
Analisando-se a possibilidade de diferenças entre “Uma Teoria da Justiça” e Liberalismo Político, Rawls pontua que elas existem, mas "devemos considerar que [as diferenças] surgem da vontade de resolver um sério problema inerente à justiça como imparcialidade, a saber, aquele que surge do fato de que a explicação da estabilidade na terceira parte do “Uma Teoria da Justiça” não é congruente com o panorama global" desta última.
Qual é o sério problema? Nesse caso, a ideia bem pouco realista de uma sociedade bem ordenada que consta no “Uma Teoria da Justiça”. Explicando melhor, não se realiza no “Uma Teoria da Justiça” uma distinção entre uma doutrina filosófica compreensiva e uma concepção política de justiça. A importância da distinção está no fato dos cidadãos de uma sociedade bem ordenada respaldarem o conceito de justiça como imparcialidade com base em uma doutrina compreensiva filosófica. Rawls salienta que o texto do “Uma Teoria da Justiça” considera tanto a justiça como imparcialidade quanto o utilitarismo como doutrinas compreensivas (ou parcialmente compreensivas).
Esta ideia pouco realista de uma sociedade bem ordenada esbarra no fato das sociedades modernas caracterizarem-se não somente pela pluralidade de doutrinas compreensivas (religiosas, morais e filosóficas), mas também no fato que esse conjunto de doutrinas compreensivas razoáveis constitui um pluralismo de doutrinas incompatíveis entre si. Nenhuma destas doutrinas contam com o consenso dos cidadãos em geral. A justiça como imparcialidade, considerada como doutrina compreensiva, não pode ser fruto de um consenso entre todos.
A pluralidade de doutrinas compreensivas incompatíveis entre si é o resultado normal para o Liberalismo Político do exercício da razão humana dentro do marco institucional das sociedades democráticas. Assim, o Liberalismo Político pressupõe que uma doutrina compreensiva razoável não rechaça os princípios essenciais de um regime democrático. Caso existam doutrinas compreensivas absurdas, o problema central passa a ser a sua contenção.
Tendo em vista este problema Rawls propõe a seguinte solução: tornar a justiça como imparcialidade em uma concepção política de justiça. Esta mudança implica em outros ajustes, principalmente em uma atribuição de maior valor a ideia de estabilidade (fundamental para a filosofia política). Além disso, são necessárias outras ideias como a de uma concepção política de pessoa e a de um pluralismo razoável (em oposição a de um pluralismo simples).
Rawls conclui, então, que o problema do Liberalismo Político é responder a seguinte pergunta: como é possível que possa existir através do tempo uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente dividida por doutrinas religiosas, filosóficas, morais, razoáveis, mas incompatíveis entre si? Reformulando-a podem-se indagar quais são os tipos de estruturas e o conteúdo que permitem uma concepção política obter o apoio de um consenso tão sobreposto?
3. PLURALISMO RAZOÁVEL.
O Liberalismo Político dá por existente um pluralismo razoável e não qualquer pluralismo. Ele enfrenta o problema de dar uma concepção de justiça política para um regime constitucional democrático que seja aceita e endossada pela pluralidade de doutrinas compreensivas razoáveis existentes.
Aceitar o pluralismo razoável como realidade é uma fração da aparente complexidade do Liberalismo Político, pois uma vez que se aceita esta devemos supor que em um consenso sobreposto ideal cada cidadão apoia tanto uma doutrina comp. como a concepção política focal. Assim, é necessário distinguir entre uma base pública de justificação das questões políticas fundamentais e as outras bases de justificação privadas que envolvem as doutrinas compreensivas razoáveis.
Outras distinções pertinentes ao pluralismo razoável: as ideias sobre um "bem" na concepção política devem ser propriamente políticas e distintas daquelas que as visões mais amplas possuem. O mesmo se aplica para a concepção política de pessoas livres e iguais. Não se deve perder de vista que o Liberalismo Político objetiva tornar claras as condições de possibilidade de uma base pública de justificação razoável sobre as questões políticas fundamentais. Liberalismo Político vai expor o conteúdo da base pública e porque esta resulta aceitável. Assim, o Liberalismo Político distingue o ponto de vista público de outros pontos de vista não públicos. Dito de outra forma: faz a distinção entre razão pública e as muitas razões não públicas, sendo imparcial quanto às doutrinas compreensivas razoáveis e explica porque a razão pública adota determinada forma.
4. IMPARCIALIDADE E CONSTRUTIVISMO POLÍTICO.
Como se manifesta a imparcialidade? O Liberalismo Político não ataca nenhum ponto de vista considerado razoável. Não busca indagar quais juízos morais são verdadeiros, tendo em vista que aborda todas as questões sob o seu enfoque limitado. Cabe ainda destacar que Rawls expõe o Liberalismo Político não se auto-afirmando com uma concepção política verdadeira, mas com uma concepção razoável. Isto não seria apenas um jogo de palavras, mas uma decorrência da limitação do ponto de vista e da ideia desta concepção estar fundada em princípios da razão prática.
Neste aspecto, o construtivismo político seriam os princípios da justiça política frutos de um procedimento de construção em que pessoas racionais ou seus representantes, sujeitas a condições razoáveis, adotam princípios reguladores da estrutura básica da sociedade. A razoabilidade permeia toda a construção.
O dualismo no Liberalismo Político entre o ponto de vista da concepção política e os muitos pontos de vista de doutrinas compreensivas não é originário da filosofia. A origem reside no caráter especial que tem a cultura política democrática quando se enquadra em um pluralismo razoável. Tal caráter especial explica em boa medida os diferentes problemas da filosofia moral no mundo moderno, se comparado com o antigo. Uma melhor explicação é dada com a comparação da filosofia moral no mundo antigo e na modernidade utilizando-se a esfera da religião.
A religião na antiguidade grega era cívica de práticas públicas e sociais, sem fundamento em escrituras sagradas, como a Bíblia. A Ilíada e a Odisséia jamais foram considerados textos sagrados. Não era uma religião de salvação no sentido cristão do termo e não havia uma classe sacerdotal intermediária. Imortalidade e eterna salvação não eram ideias centrais da religião clássica. A filosofia grega elaborou, então, para a vida humana ideias do mais alto bem (este era o seu foco, uma busca sensata de nossa verdadeira felicidade), sendo a filosofia moral sempre o exercício da razão livre e disciplinada. Isto acabou por propor uma espécie de solução a uma questão que a religião cívica sempre havia deixado sem resposta.
No período moderno temos três acontecimentos históricos ocasionaram a mudança, a saber:
1) A Reforma do séc. XVI fragmentou a unidade religiosa da idade média;
2) desenvolvimento do Estado Moderno. Administração centralizada e o absolutismo monárquico; e
3) desenvolvimento da ciência moderna. Século XVII. Astronomia, análise matemática.
Rawls faz um contraste da religião cívica com a religião católica medieval:
1) religião autoritária - figura do Papa.
2) Salvacionista, dava um caminho para a vida eterna.
3) Religião de cunho dogmático.
4) Religião de sacerdotes.
5) Religião de conversão, expansionista, não reconhecia maiores limites territoriais que o próprio mundo.
A Reforma trouxe o problema para o catolicismo o surgimento de uma religião rival que guardava muitas características semelhantes: autoritária, salvacionista etc. Lutero e Calvino eram tão intolerantes quanto havia sido a Igreja Católica Romana.
O segundo contraste diz respeito à filosofia. Rawls imagina as guerras religiosas. Nestas, não havia dúvida quanto ao mais alto bem, mas o problema consistia em entender como existia uma sociedade em que estão presentes crenças religiosas distintas. Qual era a base da tolerância religiosa? Temos um contexto de divisão religiosa na sociedade. Assim, o Liberalismo Político surge não como um desastre, mas como um resultado natural das atividades da razão humana em um regime de instituições livres e duradouras. O Liberalismo Político é fruto do exercício da razão em condições de liberdade.
A descoberta da possibilidade de instauração de uma sociedade pluralista, razoavelmente harmoniosa e estável resulta do constitucionalismo liberal. A intolerância religiosa mostrou que a unidade social e a concórdia requerem um acordo sobre uma doutrina geral e compreensiva, religiosa, filosófica e moral. Rawls afirma que a tolerância ficou fortalecida com a constatação de ser improvável e difícil acreditar na condenação eterna daquela pessoa com a qual cooperamos ao longo de muito tempo para a construção e conservação de uma sociedade justa.
Rawls expõe que no conflito religioso surgido com a Reforma, a concepção de bem de um credo não admitia qualquer outra. Isto não teve paralelo na história.
5. RELAÇÃO ENTRE LIBERALISMO POLÍTICO E FILOSOFIA MORAL MODERNA.
Partindo-se da perspectiva do indivíduo razoável e consciente iniciou-se uma indagação sobre quais conceitos e princípios caracterizam os requisitos da vida moral. Perguntas que derivam desta relação: 1) O conhecimento é acessível a todos? 2) A ordem moral necessária a nossa vida deriva de onde? 3) O que nos obriga moralmente? São ameaças ou a nossa própria natureza humana?
As respostas de autores estudados no “Uma Teoria da Justiça” como Hume e Kant constituem um liberalismo compreensivo. O Liberalismo Político, no entanto, não é um liberalismo compreensivo. Ele não irá adotar uma posição geral sobre as três perguntas acima. Rawls sustenta que os problemas gerais da filosofia moral não são incumbência do Liberalismo Político. Este considera a sua forma de filosfia política como possuidora de matéria própria, ou seja, capaz de indagar: como é possível que exista uma sociedade justa e livre em condições de um profundo conflito doutrinário sem perspectivas de resolução? Ele reconhece que a imparcialidade entre as doutrinas compr. somente será mantida se ele não encarar especificamente os temas morais que dividem estas doutrinas.
A Teoria da Justiça de Rawls buscou tratar de uma família de problemas clássicos centrais aos debates sobre a estrutura moral e política do estado moderno (liberdade Religiosa, política, direitos fundamentais dos cidadãos, igualdade de oportunidades justa, direito à propriedade e suas garantias, desigualdades econômicas e sociais). No Liberalismo Político ele deixa de lado as exigências democráticas na empresa e no local de trabalho, justiça entre estados (entre os povos), justiça no seio familiar. Martha Nussbaum acrescenta outros pontos deixados de lado: justiça para os deficientes - na primeira parte da obraa Rawls reconhece esta lacuna - e para os animais.
No que diz respeito às críticas, a principal reside no fato de Uma Teoria da Justiça apoia-se em uma concepção abstrata de pessoa e trabalha como uma ideia individualista, não social, da natureza humana. Rawls responde dizendo que tais críticas não observaram o fato da posição original ser um método de representação. Por outro lado Rawls, reconhece que algumas "peças" ficaram faltando no “Uma Teoria da Justiça” para tornar convincente a proposta do Liberalismo Político. São elas:
1) Ideia de justiça como imparcialidade como ponto de vista independente e a ideia de um consenso sobreposto como parte da explicação de sua estabilidade;
2) Distinção entre pluralismo simples e pluralismo razoável; e
3) Explicação detalhada da ideia de razoável e do racional integrada à concepção do construtivismo político em oposição ao construtivismo moral a fim de estabelecer como foram postas as bases dos princípios do correto e do justo na razão prática.
6. LIBERALISMO POLÍTICO: IDEIAS FUNDAMENTAIS.
Rawls inicia com duas perguntas:
1) qual é a concepção mais adequada de justiça para especificar os termos justos da cooperação social entre cidadãos considerados livres e iguais, membros de uma sociedade com a qual cooperam durante toda uma vida, de geração à geração?
2) quais são os fundamentos da tolerância (genericamente considerada) tendo em vista a realidade do pluralismo razoável como conseqüência inevitável de instituições livres?
Combinação das duas perguntas: como é possível que exista por um tempo prolongado uma sociedade justa e estável de cidadãos livres e iguais os quais permanecem profundamente divididos por doutrinas razoáveis, religiosas, filosóficas e morais?
No entanto, em 1995, Rawls considerou que esta pergunta não havia ficado bem formulada. A razão consistia em considerar que o problema era apenas apontar como a sociedade deveria manter-se estável pelas razões corretas. Por que, então, haveria problemas fundamentais com as doutrinas liberais compreensivas como as de Mill ou Kant, as quais já fundamentaram um regime democrático justo, mesmo que por diferentes razões?
A indagação central ficaria melhor explicada da seguinte maneira: como é possível para aqueles que sustentam uma doutrina religiosa baseada na autoridade dessa religião, fundada, por exemplo, na Bíblia ou na Igreja, podem também ter uma concepção política que apóia um regime democrático justo?
A questão é que nem todas as doutrinas compreensivas razoáveis são doutrinas liberais. Rawls afirma que não é suficiente que essas doutrinas aceitem um regime democrático apenas como um modus vivendi. Pelo contrário, devem aceitar um regime democrático como membros de um consenso sobreposto razoável.
Esta constatação leva a outra pergunta: como é possível a pessoas vinculadas a uma religião apoiarem uma estrutura institucional que satisfaz uma concepção política de justiça de cunho liberal, quando estas simplesmente não estão concordando com ela, tendo em vista a perspectiva do balanço das forças políticas e sociais?
O problema para Rawls reside no fato que a “salvação” religiosa não é mais um bem comum, compartilhado por todos.
Colocando-se o foco de atenção na 1ª pergunta, faz-se uma comparação entre a Liberdade dos Antigos e a Liberdade dos Modernos. Trata-se do texto clássico de Benjamin Constant. Liberdade dos antigos seriam as liberdades políticas iguais e os valores da vida pública. (J. J. Rosseau é apontado por Rawls como o autor que valoriza estas liberdades). Já a liberdade dos modernos é de consciência e pensamento, direitos básicos da pessoa e da propriedade e o Estado de Direito (Locke). Este contraste auxilia a fixar as ideias fundamentais do Liberalismo Político, afirma Rawls.
O objetivo de Rawls é demonstrar que um determinado arranjo das instituições políticas e sociais básicas é mais adequado para realizar os valores da igualdade e da liberdade, tendo em vista tal contexto. Rawls expõe, então, os dois princípios da justiça como imparcialidade modificados[1]:
1º Princípio modificado - Cada pessoa tem igual direito a exigir um esquema de direitos e liberdades básicas e iguais. Este esquema deve ser compatível com o de todos. Neste esquema as liberdades políticas iguais e somente estas liberdades, tem que ser garantidas em seu valor justo.
2º Princípio modificado - As desigualdades sociais e econômicas somente se justificam por duas condições:
2.1 - devem estar relacionadas com postos e cargos abertos a todos, em condições de justa igualdade de oportunidades;
2.2 - estas posições e cargos devem ser exercidos no máximo benefício dos integrantes da camada social menos privilegiada.
Convém não esquecer que a prioridade do 1º princípio sobre o 2º foi mantida. Rawls afirma que estes dois princípios são exemplos de uma concepção política liberal da justiça. Quais são, então, as três características da concepção política liberal da justiça?
1ª - especificação de certos direitos e liberdades básicos
2ª - atribuição de prioridade especial a estes direitos, liberdades e oportunidades
3ª - medidas q assegurem a todos os cidadãos todos os meios apropriados para fazer o uso eficaz de suas liberdades e oportunidades.
Os dois princípios expressam também uma forma igualitária de liberalismo em virtude de três elementos:
1) garantia do valor justo das liberdades políticas de tal maneira que estas não sejam meramente formais;
2) uma justa igualdade de oportunidades; e
3) o princípio da diferença.
Rawls salienta que alguns aspectos dos dois princípios foram deixados de fora desta argumentação. Por exemplo poderia ser imaginado um princípio que antecederia ao 1º princípio que estabelecesse a satisfação prévia das necessidades básicas dos cidadãos.
A primeira pergunta leva a outra indagação: como pode a fil. política achar uma base comum p/ dirimir o fundamental problema de indicar a família de instituições mais apropriada para assegurar a liberdade democrática e a igualdade? Rawls cita exemplos de pontos de desacordo e como as convicções (fixadas provisoriamente) devem ser levadas em conta por uma concepção política de justiça. Surge a importância de outro conceito importante da Teoria da Justiça: Equilíbrio Reflexivo. Este considera nossas convicções em todos os níveis de generalidade, sendo nenhum nível considerado fundador. Não se deve perder de vista o que se está buscando aqui: uma base para o acordo público. A justiça como imparcialidade pretende realizar isto a partir de uma ideia organizadora fundamental dentro da qual seja possível conectar e relacionar entre si, de forma sistemática, todas as ideias e todos os princípios.
Qual é essa ideia organizadora central? A sociedade como um sistema de cooperação justo entre pessoas consideradas livres e iguais. Pessoas que cooperarão com a sociedade durante todas suas vidas. O objetivo da justiça como imparcialidade é de apresentar-se como uma concepção de justiça que possam compartilhar os cidadãos, na medida em que se constitui como fundamento de um acordo político razoável, informado e voluntário. A concepção de justiça deve ser independente das doutrinas filosóficas e religiosas opostas e incompatíveis que professem os cidadãos. Por isso o Liberalismo Político busca uma concepção política de justiça. O apoio a esta concepção virá de um consenso sobreposto das doutrinas compreensivas razoáveis. Logo, esta concepção é um ponto de vista livremente aceito. Qual o âmbito de deliberação? Temos aqui a importância de uma ideia nova: a Razão Pública. Ela é o raciocínio dos cidadãos em foros públicos em torno de princípios constitucionais essenciais e das questões básicas da justiça. A concepção de justiça deve ser política e não metafísica.
Rawls passa a formular uma ideia de uma concepção política de justiça estruturada em três elementos. O primeiro elemento refere-se ao sujeito de uma concepção política. É uma concepção moral para uma classe específica de sujeito: instituições políticas, sociais e econômicas. Rawls chamará está classe de sujeito de "estrutura básica" da sociedade. Estrutura básica são as principais instituições políticas, sociais e econômicas de uma sociedade e como estas se encaixam em um sistema de cooperação social de uma geração para a próxima. Esta estrutura é a de uma sociedade fechada (uma abstração necessária para Rawls), que não tem relação com outras.
A segunda característica está relacionada com o modo de apresentação, ou seja, uma concepção política de justiça se apresenta como um ponto de vista livremente aceito. Esta concepção busca elaborar uma ideia razoável exclusivamente para a estrutura básica. Não vai incluir concepções sobre o que é o valor da vida humana, ideais de amizade e de relações familiares.
A terceira característica tem o seu conteúdo é expresso em termos de certas ideias fundamentais que são consideradas implícitas na cultura política de uma sociedade democrática. Rawls lembra que a ideia central organizadora da justiça como imparcialidade é a de uma sociedade concebida como um sistema de cooperação justa através do tempo e com troca de gerações. Esta ideia central desenvolve-se em conjunto com a ideia de cidadãos considerados como pessoas livres e iguais. Outra ideia é a de uma sociedade bem ordenada, concebida como uma sociedade efetivamente regulada por uma concepção política de justiça.
A ideia da sociedade como um sistema justo de cooperação está implícita na cultura pública de uma sociedade democrática. Para tanto, devem-se considerar três elementos da cooperação social:
a) é distinta da simples atividade socialmente coordenada. Não é atividade coordenada por ordens emanadas de uma autoridade central.
b) cooperação se dá em condições justas. Deve haver uma reciprocidade. Os termos justos de cooperação é dado pela concepção política de justiça. Na reciprocidade todos são beneficiados.
c) a cooperação social necessita q intervenha a ideia de vantagem ou do bem racional de cada participante.
A reciprocidade é uma relação entre cidadãos em uma sociedade bem ordenada. Importante não confundir, alerta Rawls, reciprocidade com vantagem mútua. Deve-se lembrar da questão do free rider ou “o problema do carona” que está implícita no livro “Uma Teoria da Justiça”. Rawls passa a considerar o que seria uma ideia fundamental de pessoa. Há muitos aspectos importantes a serem considerados sobre a natureza humana. Rawls irá seguir o seguinte caminho: através do conceito de justiça como imparcialidade temos um sistema justo de cooperação através do tempo e entre gerações sucessivas que criarão uma pessoa que seja afim com esta ideia.
Rawls discorre sobre a concepção de pessoa no mundo antigo (desempenho de um papel) e sobre o conceito de pessoa herdado de uma tradição democrática (liberdade e igualdade). Resultado da união das duas concepções acima: pessoas com dois poderes morais relacionados com a ideia de cooperação: (1) capacidade de ter um senso de justiça. Entender, aplicar e agir segundo a concepção pública de justiça e (2) capacidade de adotar uma concepção do "bem", ou seja, conformar, examinar e buscar racionalmente uma concepção de vantagem ou bem racional próprio. A concepção do bem deve ser inclusiva de uma concepção daquilo que é valioso para a vida humana. Vínculos das noções sobre o "bem": a um esquema mais ou menos definido de fins últimos (que buscamos alcançar si mesmos); a uma visão que temos de nossa relação com o mundo. As concepções do bem das pessoas não são fixas, vão mudando com o tempo.
Supõe-se que as pessoas possuem todas as capacidades que lhes permitem ser integrantes da sociedade. Rawls explica que isso não corresponde a imaginar que as pessoas não tenham doenças e não sofram acidentes. Como estes infortúnios são prováveis nas vidas das pessoas em geral, espera-se que estas tomem precauções. Contudo, e quanto às pessoas com deficiências físicas e mentais? Com esta indagação, Rawls começa a falar dos problemas da justiça como imparcialidade. Esclarece que devem ser tratados como questões de extensão, a serem melhor examinadas.
Os problemas consistem:
1) deveres com as gerações futuras;
2) justiça entre os povos;
3) incapacidades físicas ou mentais; (como proporcionar uma atenção normal de saúde)
4) deveres para com os animais não humanos.
Infelizmente, a justiça política de Rawls não é uma concepção que abarque tudo, nem poderíamos esperar que assim o fizesse. Ela deve ser completada sempre com outras virtudes.
A ideia de posição original vai ser importante porque lembra a noção de cooperação social. Rawls destaca que a justiça como imparcialidade busca reformular a doutrina do contrato social. Este contrato deve ser realizado em condições apropriadas, não permitindo que algumas pessoas obtenham maiores vantagens na negociação. A ideia da posição original surge da necessidade de achar um ponto de vista a partir do qual seja possível chegar a um acordo justo entre pessoas livres e iguais. O véu da ignorância é uma característica da posição original que possibilita este acordo justo. A posição original deve ser considerada como um recurso de representação e o acordo a que chegam as partes como algo hipotético e não um fato histórico. Rawls julga ser importante a ideia da posição original para ser superada a noção parcial que a nossa posição social nos dá.
A posição original serve como ideia mediadora com a qual todas as nossas convicções podem ser comparadas umas com as outras. Rawls vai dizer e aprofundar mais adiante que a “posição original” é um “recurso analítico usado para formular uma conjectura”:
The original position is an analytical device used to formulate a conjecture. The conjecture is that when we ask — What are the most reasonable principles of political justice for a constitutional democracy whose citizens are seen as free and equal, reasonable and rational? — the answer is that these principles are given by a device of representation in which rational parties (as trustees of citizens, one for each) are situated in reasonable conditions that represent those citizens as both reasonable and rational. That the principles so agreed to are indeed the most reasonable ones is a conjecture, since it may of course be incorrect. We must check it against the fixed points of our considered judgments at different levels of generality. We must also examine how well these principles can be applied to democratic institutions and what their results would be, and hence ascertain how well they fit in practice with our considered judgments on due reflection."[2]
Rawls sustenta que parece não haver melhor recurso do que a posição original para elaborar uma concepção política de justiça para a estrutura básica da sociedade. Alerta que o fato da posição original ser um recurso de representação pode levar a interpretações equivocadas. Menciona como exemplo o professor de Harvard Michael Sandel: “a descrição das partes não pressupõe uma concepção metafísica particular de pessoa. Sandel, ao sustentar o contrário, comete um equívoco. Seria ilusório pensar desta forma.” Haveria apenas uma representação de uma situação em que nos encontramos com restrição de informações.
Após o exame da ideia de posição original, Rawls faz a distinção de três pontos de vista:
1) das partes na posição original;
2) dos cidadãos; e
3) de nós mesmos.
Sobre os dois primeiros pontos de vista: não confundir autonomia racional com autonomia plena. As motivações das deliberações na posição original não devem ser confundidas com explicações de cunho psicológico. O terceiro ponto de vista será aquele pelo qual a justiça como imparcialidade será valorada.
Rawls critica a ideia que a posição original pressupõe uma doutrina metafísica da pessoa. A representação da liberdade dos cidadãos na posição original parece ser uma das fontes deste equívoco. Apesar de não refutar o argumento criticado, Rawls esboça uma explicação da concepção política de pessoa (existente na posição original) para tornar mais claro a sua afirmação que a sua construção teórica é política, não metafísica.
Primeiro ponto: todos os cidadão são livres na medida em que se concebem a si mesmos e uns aos outros como possuidores da capacidade moral para ter uma concepção do Bem. Sobre esta concepção do Bem Rawls: (i) particular, (ii) muda no tempo (mudança essa apoiada em elementos razoáveis) conforme as pessoas desejarem. Estas mudanças de concepção do Bem não afetam a identidade do sujeito no sentido público ou institucional.
Rawls diz que as pessoas (livres e razoáveis) possuem um poder moral formar, modificar e buscar racionalmente uma concepção do Bem. Deve-se lembrar aqui do exemplo da religião. Em outro sentido, identidade é algo especificado a partir dos objetivos mais profundos dos cidadãos. É a identidade moral. Esses objetivos dos cidadãos são de ordem política e não-política. Rawls afirma que as nossas concepções do bem podem mudar (através do tempo, inclusive) geralmente de forma paulatina e, algumas vezes, subitamente. Estas mudanças não implicam em alterações na nossa identidade institucional (ou política) nem em nossa identidade pessoal como querem dar a entender alguns autores sobre filosofia da mente.
Segundo ponto: os cidadãos consideram-se a si mesmos fontes auto-identificáveis de reclamações válidas. Consideram-se com todo o direito de fazer reclamações e fazer exigências sobre suas instituições com o objetivo de fazer valer as suas concepções de bem (desde que sejam razoáveis). Rawls faz um contraste com a noção de pessoa em uma sociedade com escravidão e conclui que conceber os cidadãos como pessoas livres em virtude de seus poderes morais e ter uma concepção de bem é inerente a uma particular concepção política de justiça.
Terceiro ponto: considera-se que as pessoas são capazes de assumir a responsabilidade de seus fins e isto irá afetar a maneira de como são valoradas as diversas reclamações. Considera-se que os cidadãos são capazes de ajustar as suas metas e aspirações à luz do que podem razoavelmente esperar. Esta concepção de pessoa é articulada juntamente com a ideia da sociedade como um sistema justo de cooperação.
Resumindo os três pontos principais temos: primeiro que as pessoas são livres e iguais. Por quê? Porque possuem um grau necessário de poderes da personalidade moral (capacidade de ter um sentido de justiça e capac. para ter uma concepção do bem). Associados a estes poderes está a ideia cooperação que é dividida em duas ideias: termos justos e vantagem racional. Segundo: devem-se considerar as três maneiras pelas quais as pessoas são consideradas livres e iguais. Terceiro: a posição original deve ser entendida como um recurso de representação.
7. CONCLUSÃO.
A justiça como imparcialidade, portanto, desenvolve-se em conjunto com duas ideias afins: (1) cidadãos considerados livres e iguais, e (2) uma sociedade bem ordenada, efetivamente regulada por uma concepção pública de justiça. O que expressa a ideia de uma sociedade bem ordenada? São três pontos, diz Rawls: (1) cada qual aceita e sabe que tudo mundo aceita os mesmos princípios de justiça; (2) sua estrutura básica é conhecida publicamente; (3) os cidadãos têm normalmente um sentido efetivo de justiça.
A concepção de justiça publicamente reconhecida estabelece um ponto de vista compartilhado para as reclamações/demandas em relação à sociedade. Por que uma sociedade democrática caracteriza-se pelo fato de existir nela um pluralismo razoável?
São apontados três motivos, a saber:
1) a existência de doutrinas compreensivas razoáveis não constitui uma situação histórica em vias de acabar; (Rawls diz que sob o marco de instituições livres é parte do exercício da razão prática)
2) manter uma visão única somente é possível com o uso opressivo do poder;
3) a concepção de justiça deve ser aquela que possa ser subscrita por várias doutrinas compreensivas razoáveis.
Como não existe uma doutrina razoável compreensiva que professe por todos os cidadãos, a concepção de justiça que se afirme em uma sociedade democrática bem ordenada deve ser uma concepção limitada ao que Rawls chama de "domínio do político". O ponto de vista dos cidadãos é dividido em duas partes, ou seja, uma política e a outra um doutrina compreensiva relacionada com o ponto de vista político. Essas condições são realistas, segundo Rawls e conferirão estabilidade à sociedade.
No entanto, como pode ser defendido o regime da justiça como imparcialidade para que ganhe suficiente apoio e estabilidade? Especificando bens primários ou primordiais. Como é feita, então, a especificação? Rawls esclarece que é elaborando uma concepção política como um ponto de vista independente estabelecido a partir da ideia fundamental da soc. considerada como um sistema justo de cooperação e a partir de suas ideias afins. A ideia é que partindo do ponto de vista dos cidadãos, os bens primordiais serão justos.
A sociedade democrática para Rawls é um sistema social completo (auto-suficiente) e fechado (somente se entra com o nascimento e sai com a morte). Não há identidade anterior ao ingresso na sociedade. Ela não tem um fim ou objetivo último no sentido que têm, por exemplo, as associações. Algumas sociedades do passado viam a si mesmas como associações. Logo, nas sociedades democráticas não pode ocorrer de serem oferecidos a seus integrantes acordos diferentes com base em sua contribuição potencial a soc. como um todo.
Comunidade para Rawls é uma sociedade governada por uma doutrina religiosa, filosófica ou moral compreensiva. Pela razão pública todos os cidadãos podem entender o seu papel e compartilhar de igual maneira seus valores políticos.
Por fim, Rawls estabelece três condições para que uma sociedade seja um sistema justo de cooperação:
1) estrutura básica regulada por uma concepção política de justiça;
2) concepção política é foco de um consenso sobreposto;
3) discussão pública delimitada pelos termos da concepção política de justiça.
Assim, na percepção do filósofo americano, quanto mais profundos forem os conflitos, mais alto deverá ser o grau de abstração para que possamos ver as raízes do problema. “É algo necessário a ser feito”, considera Rawls.
8. BIBLIOGRAFIA.
RAWLS, John. A Theory of Justice. EUA: Harvard University, 1971.
____________. Political Liberalism. EUA: Columbia University, 1993.
[1] Agradece às críticas de H. L. Hart no artigo " Rawls on Liberty and Its Priority" nº 40 da University of Chicago Law Review, p. 534 (1972-1973)
[2] In Political Liberalism", p. 381
Mestre em Direito pela UFRGS. Procurador Federal.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIEFFEL, Luiz Reimer Rodrigues. A reformulação de John Rawls da sua Teoria da Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 dez 2012, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32884/a-reformulacao-de-john-rawls-da-sua-teoria-da-justica. Acesso em: 23 dez 2024.
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