1. Introdução.
John Rawls (1921-2002) é o filósofo político mais importante da segunda metade do século XX. Foi Professor de filosofia em Harvard e autor, entre outras obras, de "A Theory of Justice"[1] (1971). Em 1993 publicou "Political Liberalism", uma reunião de palestras proferidas com o objetivo de responder críticas e aperfeiçoar as ideias lançadas no livro "Uma Teoria da Justiça".
Faz-se a opção pela palavra “imparcialidade”, pois a outra opção em português, a palavra “equidade” tem um sentido próprio para os juristas. Assim, prefere-se a mesma tradução que já foi feita na língua espanhola em que a palavra inglesa fairness também é traduzida como imparcialidade.
O respeito pela sua obra, em especial de sua "Uma Teoria da Justiça", constitui verdadeiro consenso entre os pensadores da atualidade. Nesse sentido, assim esclarece Jürgen Habermas[2]:
"Uma Teoria da Justiça, de John Rawls, constitui um ponto de virada central na história mais recente da filosofia prática, pois ele restituiu a questões morais há muito suprimidas o status de objetos sérios de investigação filosófica".
Cumpre destacar, ainda nesse aspecto, a já célebre afirmação de Robert Nozick em seu “Anarquia, Estado e Utopia”[3]:
"Os filósofos políticos devem a partir de agora trabalhar no âmbito da teoria de Rawls ou explicar por que não o fazem."
Fundamentalmente, por sua importância e reconhecimento, a Teoria da Justiça de John Rawls e suas posteriores reelaborações constituem marco teórico inafastável para qualquer estudo no âmbito da teoria da justiça.
2. Objetivos centrais.
Rawls busca criar uma ideia de justiça que seja desvinculada do utilitarismo. A ideia geral do utilitarismo consiste em ser uma espécie de consequencialismo, ou seja, viabilizar o "máximo prazer para o maior número possível". No entanto, Rawls aponta que um dos problemas do utilitarismo é que "o maior bem para a maior número" pode ser distorcido para uma "tirania da maioria" (caso do nazismo).
A outra ideia a ser superada, segundo Rawls, é o "intuicionismo". Neste sentido, para o intuicionismo, reconheço apenas uma vinculação a um conjunto de princípios básicos, mas não verifico uma ordem de prioridade entre eles.
Com o intuito de superar os problemas do utilitarismo e do intuicionismo acima destacados, a teoria da justiça como imparcialidade pretende estabelecer dois princípios de justiça que devem guiar as decisões dos cidadãos sobre sua constituição, leis e políticas sociais básicas.
3. Objeto da justiça.
O objeto de sua teoria da justiça será o que Rawls denomina de estrutura básica da sociedade, ou seja, as decisões dos cidadãos sobre sua constituição, leis e políticas sociais básicas. Nas palavras de Rawls, é “o modo pelo qual as grandes instituições sociais distribuem os direitos e os deveres fundamentais e determinam a divisão das vantagens provenientes da cooperação social.”
Mas o que são, para Rawls, essas grandes instituições?
“Por grandes instituições entendo a constituição política e as principais disposições econômicas e sociais. Assim, a proteção jurídica da liberdade de pensamento e de consciência, a concorrência no mercado, a propriedade privada dos meios de produção e família monogâmica são exemplos de grandes instituições sociais.”
Nestas decisões, Rawls partirá do princípio que todos os bens primários sociais (liberdade e oportunidade, renda e riqueza e as bases para o respeito próprio) devem ser distribuídos igualmente entre as pessoas ao menos que uma distribuição desigual de qualquer desses bens seja para a vantagem dos menos favorecidos.
4. Ideias fundamentais prévias.
Em primeiro lugar temos a noção de contratualismo. Destaca-se na construção da justiça como imparcialidade a célebre citação do filósofo John Locke: "Pessoas livres necessitam concordar em algumas regras básicas para poderem viver juntas e em harmonia". A ideia de um arranjo justo para uma sociedade é aquele com o qual os seus membros concordariam por unanimidade para regular as suas próprias relações.
Outra concepção importante para o desenvolvimento e compreensão da justiça como imparcialidade é a da “prioridade do Justo sobre o Bem”. A ideia de Bem é vista como a satisfação de um desejo racional. O Bem de uma pessoa é aquilo necessário para executar com sucesso um plano de vida racional a longo prazo considerando circunstâncias favoráveis.
Neste aspecto, podem-se elencar exemplos de Bens Primários: liberdade, oportunidade, renda, riqueza e respeito próprio. Na justiça como imparcialidade, os princípios de justiça terão prioridade sobre qualquer noção ampla de Bem, por isso chega-se a formulação da "prioridade do justo sobre o bem".
É fundamental também em Rawls considerarmos que ele para de uma ética deontológica. Nesta perspectiva, o Justo independe do Bem. Baseia-se na ideia Kantiana que só é moral o Bem derivado do Dever. Assim, o bem-estar coletivo não pode sobrepujar o direito do indivíduo. A moral, portanto, parece ser derivada da economia, pois tenho que eleger previamente o meu interesse. A virtude em Rawls, pode-se dizer, é uma aptidão para seguir regras, afastando-se de concepções aristotélicas de virtude humana.
Deve-se considerar também na justiça como imparcialidade a noção do que vem a ser o Liberalismo. Nesta visão, o Estado liberal é aquele caracterizado pela neutralidade nas questões últimas, ou seja, sobre o que é o Bem. Indagações sobre qual o tipo de vida que vale a pena ser vivida não devem ter uma resposta do Estado Liberal, pois Rawls considera impossível o consenso sobre a resposta a esta pergunta.
Importante mencionar que Rawls faz uma distinção entre conceito e concepção de justiça. O conceito de justiça diz respeito ao “conjunto característico de princípios que atribuam direitos e deveres básicos e determinam o que consideram a distribuição correta dos encargos e benefícios da cooperação social.” Por sua vez, na concepção de justiça, estas divergem quanto “às semelhanças e diferenças entre as pessoas são pertinentes para determinar os deveres e os direitos, e qual é a divisão de vantagens correta.”
5. Os dois princípios da justiça como imparcialidade.
Feitas as ponderações acima, pode-se demonstrar que a justiça como imparcialidade possui dois princípios básicos, a saber:
1º Princípio: cada pessoa tem direito a um igual e mais extensivo possível sistema de liberdades básicas iguais compatível com um esquema de liberdades básicas para todos.
2º Princípio: as desigualdade sociais e econômicas são justas apenas quando atendem às seguintes condições: (i) igualdade de oportunidades imparcial: pessoas igualmente talentosas e motivadas têm chances iguais em obter posições sociais desejáveis; (ii) o princípio da diferença: as desigualdades sociais e econômicas devem atuar para o máximo benefício do grupo social menos favorecido.
6. Algumas ideias relativas aos dois princípios.
É possível extraírem-se algumas ideias interessantes sobre os dois princípios da justiça como imparcialidade acima explicitados. O primeiro diz respeito à reconciliação entre liberdade e igualdade. Isso porque os princípios dão uma certa medida aos valores da liberdade e da igualdade e juntos eles estabelecem que devemos maximizar um mínimo de liberdade na vida em sociedade.
Temos a prioridade das liberdades básicas, ou seja, as que são englobadas pelo 1º princípio. Essa prioridade significa que as restrições nas liberdades básicas protegidas pelo 1º princípio justificam-se apenas se tais restrições protegem melhor o sistema de liberdades básicas.
Há também uma ideia intuitiva do princípio da diferença. Uma estrutura econômica não é uma corrida ou um concurso de talentos, mas uma parte de um sistema imparcial de cooperação, desenhado para assegurar uma vida razoável para todos. Da mesma forma, não devem existir diferenças com exceção daquelas que possam ser justificadas em bases da eficiência. Qual o critério adotado por Rawls? A eficiência conforme a máxima de PARETO: "Nenhum sistema pode ser chamado de eficiente se há um arranjo alternativo que melhora a situação de algumas pessoas sem piorar a situação de qualquer outra pessoa".
Além das ideias acima, percebe-se que Rawls entende a racionalidade como o uso dos meios mais eficientes aos fins dados, filiando-se a ideia da escolha racional.
7. Metodologia.
No que diz respeito à metodologia, de como chegar aos princípios da justiça como imparcialidade, Rawls adota um procedimento imparcial. Para tanto, imagina uma Posição Original. Trata-se de um recurso/hipótese em que as partes sabem apenas que representam os interesses de pessoas auto-interessadas livres e iguais que necessitam de bens primários (do primeiro princípio da justiça como imparcialidade), independentemente de suas concepções de Bem. Assim, não se pode falar que há um estado de natureza em Rawls.
Na referida posição, as pessoas livres e iguais, estão sob um Véu da Ignorância que constitui uma forma de raciocinar sem os meus atributos sociais: não há inveja, não sei o que serei na sociedade que busco formar, etc. A ideia de véu da ignorância possui forte influência Kantiana.
Estas pessoas realizam um Contrato Social em que são consideradas racionais, livres e iguais, bem como irão exibir desinteresse mútuo em um contexto de escassez moderada quando considerarem o conceito de justo: genérico em sua forma, universal em sua aplicação, publicamente reconhecido, dotado de autoridade final e que prioriza a solução de interesses conflitantes.
Rawls denominará a sua metodologia de equilíbrio reflexivo:
“Consiste em ver se os princípios que podem ser escolhidos correspondem às convicções que temos da justiça ou as ampliam de um modo aceitável. Podemos dar-nos conta de se, ao aplicar estes princípios nos conduziria a fazer os mesmos juízos que agora fazemos de maneira intuitiva sobre a estrutura básica da sociedade e nos quais temos a maior confiança; ou se acontece que, nos casos em que nossos juízos atuais estão em dúvida ou se emitem com vacilação, estes princípios oferecem uma solução que podemos aceitar reflexivamente.”
Nesta metodologia, serão considerados os seguintes deveres e obrigações naturais:
a) dar apoio a instituições justas; b) respeito mútuo; c) auxílio mútuo; d) não causar dano; e) fazer a sua justa parte; e f) manter suas promessas. |
8. Crítica de Alasdair MacIntyre.
MacIntyre considera que a concepção de Rawls de sociedade é “como se tivéssemos naufragado em uma ilha deserta com um grupo de indivíduos desconhecidos entre si. O que terá de funcionar são as regras que salvaguardem o mais possível cada um nesta situação.”.[4] Neste sentido, a concepção das relações entre o bem e o justo estariam equivocadas. Há necessidade de uma concepção compartilhada acerca do bem, para o homem e para a comunidade, para que possamos justificar regras - incluindo as regras de justiça.
Assim, no ocidente, as regras morais se tornaram independentes de uma concepção de bem. É a essa situação que a teoria de Rawls tenta dar conta. No entanto, sua própria teoria supõe uma adesão a uma concepção de bem: o bem da tradição liberal: democracia, direitos humanos, etc. Além disso, tratar-se-ia de uma concepção de justiça como qualidade das instituições, e não como uma virtude humana. MacIntyre lamenta aqui um certo pessimismo antropológico de Rawls.
9. Conclusão.
Na obra que concebeu a justiça como imparcialidade, Rawls pretendeu construir uma teoria para responder às questões dos conflitos entre liberdade e igualdade na sociedade norte-americana contemporânea reeditando o contratualismo, na linha de Locke, Rousseau e Kant.
É um tipo de justiça de caráter distributivo. Na clássica esquematização feita por Aristóteles na “Ética a Nicomaco” a justiça distributiva era apenas uma divisão da justiça particular. No entanto, Rawls tem uma intuição no sentido de que a sociedade é primordialmente distributiva. Nesta ótica, a sua teoria da justiça possibilita uma distribuição de bens primários como o auto-respeito e a riqueza.
10. Bibliografia.
MACINTYRE, Alasdair. After Virtue. 3ª Ed. EUA: University of Notre Dame, 2007.
NOZICK, Robert. Anarchy, State, and Utopia, New York: Basic Books, 1974.
RAWLS, John. A theory of justice. 22ª Imp., Cambridge: Havard University Press, 1997.
____________. Reply to Habermas. The Journal of Philosophy, v. XCII, 3, March 1995, p. 132-180.
___________. Liberalismo Politico. México: EFE, 1996.
[1] “Uma Teoria da Justiça” em português.
[2] Reconciliation through the public use of reason: remarks on John Rawls’s political liberalism. The Journal of Philosophy, v. XCII, 3, Março 1995, p. 109.
[3] Anarchy, State, and Utopia, New York: Basic Books, 1974, p. 183.
[4] MACINTYRE, Alasdair. After Virtue. 3ª Ed. EUA: University of Notre Dame, 2007, p. 250.
Mestre em Direito pela UFRGS. Procurador Federal.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIEFFEL, Luiz Reimer Rodrigues. A Justiça como imparcialidade. Uma introdução Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2012, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32945/a-justica-como-imparcialidade-uma-introducao. Acesso em: 23 dez 2024.
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