Questões envolvendo a afirmação e a negação do Direito Internacional como verdadeiro ramo do Direito não são recentes, pelo contrário, remontam a épocas pretéritas da história da humanidade, ressurgindo invariavelmente quando as circunstâncias colocam em rota de colisão o princípio – absoluto – da soberania das nações e a necessidade de efetividade da lei internacional.
Em recente “parecer consultivo” (advisory opinion), a Corte Internacional de Justiça, principal órgão judicial das Nações Unidas, provocada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, manifestou-se sobre as “conseqüências jurídicas da edificação de um muro no território palestino ocupado”. Esta manifestação jurídica, proveniente da mais importante Corte internacional em operação atualmente, oferece algumas questões para reflexão acerca das peculiaridades do Direito Internacional, e de seu posicionamento como ramo do Direito.
No referido caso, diversas questões preliminares foram enfrentadas, desde a questão da competência da Corte para proferir a manifestação, até a “conveniência” da dita manifestação, e sua influência no cenário político internacional. Após a superação das preliminares, a Corte ingressou na análise do mérito para afirmar a ilegalidade da construção do muro, por violação das suas “obrigações internacionais” pelo Estado de Israel.
Não nos interessa tratar, aqui, do mérito da consulta formulada, nem da resposta oferecida pela Corte, mas de alguns pontos essenciais abordados como premissas da manifestação, que constituem questões afetas diretamente às características próprias do Direito Internacional, especialmente relacionados às fontes deste direito e à sua forma peculiar de aplicação coercitiva. Em duas partes se dividirá, portanto, a presente análise: a primeira relativa às fontes do Direito Internacional, e a segunda referente à sua efetivação prática, que serão colocadas comparativamente aos mesmos aspectos do Direito Interno, consideradas as semelhanças e diferenças decorrentes dos fatores históricos impostos a ambos os ramos.
A Decisão (leia-se, parecer consultivo) da Corte menciona, expressamente, em seus parágrafos 86-113, que utiliza como fundamentos jurídicos as regras e princípios encontrados na Carta das Nações Unidas e em certos outros tratados, o costume internacional, regras de direito internacional humanitário e convenções sobre direitos do homem. Fundamenta-se, assim, em parte,no próprio Estatuto da Corte, que prevê como fontes do direito internacional, em seu art. 38, as convenções internacionais, gerais ou particulares, o costume internacional, os princípios gerais de direito, a doutrina qualificada e a jurisprudência.
Nota-se a enorme abrangência das normas a serem aplicadas, bem como sua inconcretude congênita, permitindo ampla mobilidade do hermeneuta na sua aplicação prática. Esta característica diverge intensamente do sistema predominante atualmente para o direito interno, ao menos considerando a maioria dos países ocidentais, o positivismo jurídico, que considera como Direito apenas o direito posto pelo Estado, na forma da legislação, elaborada e declarada formalmente pelos órgãos legitimamente instituídos. Enquanto o Direito Internacional mostra-se extremamente elástico, voltado aos princípios gerais e aos costumes, o direito interno é literal, essencialmente, constituindo a Lei a fonte única do Direito interno.
Mas nem sempre foi assim.
Historicamente, o direito vem sendo dividido em duas esferas: o direito positivo e o direito natural. Esta dicotomia é antiqüíssima, e já é encontrada em Platão e Aristóteles. Para Aristóteles, o Direito Natural é aquele que tem em toda parte a mesma eficácia, e prescreve ações cuja bondade é objetiva, contrapondo-se ao Direito Positivo, que tem eficácia apenas nas comunidades em que é posto, e prescreve ações corretas e necessárias.
A mesma dicotomia é encontrada no Direito Romano, onde se utiliza as expressões jus gentium, para designar o nosso direito natural, e jus civile, para designar o direito positivo. Em Roma, a distinção se dava no sentido de que o direito natural é universal e imutável, enquanto o positivo é particular (no tempo e espaço), e de que o direito natural estabelece o que é bom, enquanto o positivo baseia-se num critério econômico ou utilitário.
A distinção entre direito natural e positivo se encontra ainda em todos os escritores medievais, cuja diferenciação consiste em que o positivo é posto pelo homem, enquanto o natural é posto por algo além do homem, como a natureza ou Deus.
A relação entre o direito natural e o positivo também varia ao longo da história. Na época clássica, o direito positivo prevalecia sobre o natural, em caso de conflito, pois este era considerado geral em relação àquele, especial portanto. Já na idade Média, a relação se inverte, prevalecendo o direito natural sobre o positivo, pois aquele é fundado na própria vontade divina. Portanto, durante muitos séculos houve a convivência permanente do Direito Natural com o Direito Positivo, sendo ambos passíveis de aplicação na resolução de conflitos concretos.
Com este breve apanhado histórico podemos verificar que a abrangência do termo direitosempre foi além do fato de estar ele consubstanciado em uma norma escrita ou não, bastando, para assim se considerar, que seja tido por um determinado povo como uma norma de conduta a ser seguida, cujo sentimento de obrigatoriedade é compartilhado pelo grupo. O direito pressupõe a relação entre sujeitos, criando uma situação de ordem nesta relação, sendo nota característica da sua existência o fator normativo (Bobbio:2006).
Até aqui, a caracterização do Direito Internacional como ramo do Direito, ou melhor, como esfera de aplicabilidade do Direito (enquanto sistema jurídico), é inquestionável. Assim como as pessoas na sociedade se relacionam e dirigem suas condutas em conformidade com as normas jurídicas, também os Estados soberanos se relacionam conforme as normas jurídicas estabelecidas, sejam elas escritas ou não.
Ocorre que em algum momento histórico, justificado pelas circunstâncias sociais e políticas da época, passou a se propagar uma doutrina que afirmava que o único e verdadeiro Direito era o positivo, enquanto o chamado direito natural não passava de um conjunto assistemático de regras morais. Esta doutrina defendeu que o Estado deveria ser absoluto, e para afirmar sua soberania era necessário que detivesse a exclusividade da produção de normas jurídicas, dando origem ao processo de monopolização da produção jurídica por parte do Estado (Bobbio:2008).
O homem não podia viver no estado de natureza (Hobbes:2006), pois neste estado cada homem estava em permanente guerra com os demais, sem normas jurídicas que pudessem ser impostas, pois o direito era natural, e não positivo. No estado de natureza, a obrigatoriedade do direito advinha do compromisso do homem com ele próprio, ou perante Deus, entretanto a obrigatoriedade perante o próximo somente existia na medida em que este próximo também direcionasse sua conduta em conformidade com a mesma norma.
Para sair do estado de natureza o homem faz o contrato social, aceitando ceder sua liberdade em troca da segurança da aplicação do Direito, decorrendo esta segurança do fato de ser o direito escrito e conhecido, e de que o Estado é soberano e absoluto, monopolizando a produção legislativa. Apenas o Estado absoluto e soberano cria as regras jurídicas e impõe o seu cumprimento a todos os súditos. São as raízes do positivismo jurídico. (Ressalte-se que o momento histórico referido é da saída da baixa Idade Média, de guerras constantes ausência de poder centralizado, e entradana Idade Moderna, com o surgimento do Estado Absolutista).
No âmbito do Direito Internacional, esta saída do estado de natureza nunca ocorreu. Diferentemente da justificação do Contrato Social, que pressupõe a renúncia à liberdade plena em favor da ordem e da segurança, fundada no consentimento e na confiança (Locke:1973), o princípio da soberania, no âmbito externo, aparece de forma absoluta nas relações entre as nações. Não se concebe a quebra da soberania estatal, mas simplesmente a adesão voluntária a normas jurídicas internacionais.
Assim, o Direito Internacional escapa do positivismo jurídico, na forma colocada ao Direito Interno, na medida em que inexiste, até o presente momento, um órgão supremo que monopolize a produção de normas de direito internacional e que as aplique coercitivamente. A construção do Direito Internacional é baseada na liberdade plena das nações, bem como da igualdade existente entre elas, tendo como fundamento primordial o consentimento e o princípio do pacta sunt servanda.
Não tendo ainda passado por um Contrato Social propriamente dito, o direito internacional permanece no estado de natureza, no qual a obrigatoriedade do cumprimento das normas internacionais por determinada nação somente existe na medida em que as demais nações observarem a mesma obrigatoriedade, nas suas relações externas. Isto porque inexiste uma comunidadeinternacional (Mazzuoli:2010), mas, quando muito, uma sociedade entre as nações, significando que a atual configuração das relações internacionais é, ainda, incompatível com o monopólio da produção jurídica por um órgão supranacional.
Estas circunstâncias justificam a menor rigidez na aplicação do Direito positivo, nas decisões proferidas pela Corte Internacional de Justiça, havendo muitas vezes a aplicação do direito natural, consubstanciado nos princípios gerais de direito e no costume internacional. O direito natural, apesar da tentativa juspositivista de colocá-lo como mero conjunto de princípios interpretativos do direito positivo, permanece sendo direito, e apto, portanto, a reger as relações tanto internas quanto externas, seja na esfera doméstica ou internacional.
Por outro lado, o fato de ser o Direito Internacional carente de um órgão superior que monopolize as normas jurídicas, não compromete sua qualificação como verdadeiro Direito, pois para isso basta a existência de normas jurídicas que regulem relações de fato entre indivíduos (ou Estados soberanos), regendo suas condutas. A circunstância de serem estas normas decorrentes de tratados e acordos internacionais, aos quais os entes soberanos aderem por simples manifestação de vontade, é meramente acidental, podendo sofrer alterações no transcorrer da história, nada impedindo, do ponto de vista teórico, que em algum momento se constitua um órgão supranacional com função legislativa.
Assim, verifica-se que o surgimento do positivismo jurídico decorreu da necessidade surgida, em dado momento histórico, de afirmação do Estado e centralização do poder, como forma de organização social em um mundo marcado por constantes conflitos. Após o período dos Estados Absolutos, o positivismo jurídico continuou desenvolvendo-se com o surgimento do Estado Liberal, agora não mais motivado pela necessidade de segurança, mas como forma de garantir a liberdade e igualdade do povo, retirando-se, assim, a sua submissão a eventuais arbitrariedades dos juízes aplicadores da Lei. Como afirmava Montesquieu, a sentença judicial não deve ser nada além do próprio texto da lei, aplicada no caso concreto, não deixando qualquer liberdade para que exerça sua fantasia legislativa.
Felizmente, o Direito Internacional permanece com seu campo de desenvolvimento muito mais livre, e mesmo incorporando ao direito positivo preceitos originários do direito natural, como a autodeterminação dos povos, a legítima defesa, a dignidade da pessoa humana, mantém estes preceitos de forma aberta, receptíveis a novas interpretações e ao próprio desenvolvimento histórico de seus conceitos.
Outra questão que suscita muitas controvérsias é da existência ou não de coercibilidade do Direito Internacional. Neste sentido, o Parecer Consultivo elaborado pela Corte Internacional de Justiça no caso do muro conclui, ao seu final, que é ilícita a construção do muro. Determina, portanto, que Israel deve cumprir suas obrigações internacionais, cessando a construção do muro e demolindo o já existente, deve respeitar o direito à autodeterminação dos palestinos, bem como garantir o seu acesso aos locais sagrados. A Corte asseverou que as obrigações violadas por Israel incluem certas obrigações erga omnes, sendo obrigação dos demais Estados o não reconhecimento da situação ilegal da construção do muro, e a não prestação de qualquer ajuda na manutenção da situação criada pela referida construção.
Diferentemente do Direito Interno, o Direito Internacional não possui um órgão central que possa assegurar sua efetividade, ou seja, não háum órgão executivo. Sua concretização é feita por meio de sanções aplicadas, em regra, pelo próprio Estado prejudicado pelo descumprimento de uma norma internacional. Sendo parte em uma organização internacional, o Estado descumpridor sofrerá sanções aplicadas pelos demais Estados participantes, após o julgamento do caso pelo órgão jurídico internacional correspondente.
O princípio da soberania estatal limita enormemente as formas de efetivação de uma norma de direito internacional, porém, não anula completamente o caráter coercitivo deste Direito, nem o transforma em simples conjunto de regras morais. O Direito Internacional é efetivo, e caso de eventual descumprimento, existem instrumentos de coerção, ou mesmo de sanção, a serem aplicadas ao descumpridor, à semelhança do Direito Interno.
Da mesma forma que as violações do Direito Interno pelo cidadão, ocorridas cotidianamente na sociedade, não mitigam seu caráter jurídico, a violação do Direito Internacional pelos Estados, seus sujeitos diretos, é acidental e, em certa medida, previsível, não prejudicando sua natureza de verdadeiro Direito.
Na decisão ora comentada, a Corte afirmou a ilicitude da construção do muro, determinando a interrupção da construção e a demolição do já construído. A efetivação de tal orientação caberáao Conselho de Segurança da ONU, que poderá realizá-la das formas previstas nos arts. 41 e 42 da Carta das Nações Unidas, recorrendo inclusive à força quando necessário para a garantia da paz e segurança internacionais.
Referências
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo:Ícone, 2006.
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Bauru,SP:EDIPRO, 4ªed. 2008.
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2006.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo, Abril cultural, Coleção Os Pensadores, 1973.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010
REZEK, Francisco. Direito Internacional: Curso Elementar. São Paulo:Saraiva, 2010, 12ªEd.
Mestre em Direito das Relações Internacionais pelo Uniceub. Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Milton Carvalho. Considerações sobre o Parecer Consultivo da Corte Internacional de Justiça sobre a construção do muro sobre território palestino ocupado e a natureza do Direito Internacional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2012, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32947/consideracoes-sobre-o-parecer-consultivo-da-corte-internacional-de-justica-sobre-a-construcao-do-muro-sobre-territorio-palestino-ocupado-e-a-natureza-do-direito-internacional. Acesso em: 23 dez 2024.
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