Os direitos humanos tem ocupado papel de grande destaque no Direito Internacional contemporâneo, o que tem sido considerado por alguns estudiosos como uma verdadeira ‘reconstrução’deste ramo jurídico(TRINDADE, 2006),que deixa de lado suas tradicionais características essencialmente voluntaristas e focada nas relações interestatais. As discussões sobre a dignidade da pessoa humana e a necessidade de sua proteção ultrapassaram os limites das fronteiras nacionais, inserindo-se em um contexto global, possibilitando a criação de um sistema jurídico específico, voltado à garantia de sua eficácia. Após séculos de discussões sobre o que seriam os direitos humanos, e quais os seus fundamentos, vivemos um tempo em que este debate deslocou-se amplamente, voltando-se, agora, para as formas de implementação dos direitos já declarados.
Sob este aspecto, Bobbio(2004), em famosa passagem de sua obra, chega a afirmar que o problema fundamental dos direitos humanos não é mais de como justificá-los, mas sim de como protegê-los, considerando que a maioria dos governos existentes concordou com uma declaração comum de direitos (referindo-se à Declaração Universal dos Direitos do Homem). Na mesma linha, Comparato(2010) afirma que as instituições jurídicas de defesa da dignidade humana contra “a violência, o aviltamento, a exploração e a miséria” foram se criando e estendendo a todos os povos da Terra, tudo para fundamentar a existência de direitos iguais para todas as pessoas, no atual estágio dos direitos humanos.
Especialmente após a Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776, primeira a afirmar de forma inequívoca que todos os Homens são iguais, portadores de direitos inalienáveis (embora o sentido que se atribuísse a esta igualdade fosse em muito diferente do que é hoje), e com muita intensidade após a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, os direitos humanos ingressaram na agenda mundial como assunto prioritário, revelando-se um valor primordial e em grande medida compartilhado por diversas nações ao redor do mundo, preocupadas com a proteção dos indivíduos contra a violação de sua dignidade humana. Em atenção a este crescimento dos direitos humanos, Trindade (2006, p.112) afirma que “o reconhecimento da centralidade dos direitos humanos corresponde a um novo ethos dos nossos tempos”.
Observando o percurso histórico de afirmação dos direitos humanos, podemos ver que, em linhas gerais, os debates tiveram início em um âmbito interno, de proteção da dignidade humana dentro de cada Estado soberano. Com a eclosão das duas grandes guerras e a criação das Nações Unidas, a matéria ingressou definitivamente na ordem internacional, com a edição de mais de 70 tratados de proteção do indivíduo nas esferas regional e global (TRINDADE, 2006). Tanto foi o avanço dos direitos humanos, no Direito Internacional, que podemos afirmar que o indivíduo ocupa hoje posição central no sistema jurídico, como destinatário final das normas e como sujeito de direitos e obrigações não somente na ordem interna, mas também na ordem internacional[1], impondo uma revisão conceitual de noções sedimentadas como, destacadamente, da soberania estatal.
Para ilustrar esta nova noção de soberania que se tenta implementar no campo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, basta verificarmos os questionamentos feitos por Kofi Annan em relação ao conceito de soberania, em um artigo intitulado “Os dois conceitos de soberania”. Segundo Marques (2007), Annan defende uma nova interpretação do princípio da soberania, que agrega uma série de responsabilidade que os Estados tem em relação aos indivíduos, exigindo respostas mais rápidas dos demais países nos casos de crises humanitárias. É um conceito mais flexível de soberania, permitindo a intervenção em casos graves de violação de direitos humanos. Ainda neste sentido, ao tratar do que chamou de “imposição da paz”, Fishlow (2010) relembra que em 2005, a Assembléia-Geral da ONU aprovou resolução que conclama os países a intervir caso outros Estados deixem de proteger seus cidadãos contra atrocidades em massa.
Esta elevação do indivíduo à posição central de sujeito do Direito Internacional ocorreu de forma progressiva, em uma lenta e ainda contínua transformação dos preceitos principiológicos que regeram os Tratados de Westfália, de 1648, que caracterizaram este ramo do Direito como essencialmente voluntarista (como decorrência da soberania estatal) e tendo os Estados como únicos sujeitos de direito na ordem internacional. Trindade (2006, p.111) entende que o modelo de ordenamento internacional que exclui o indivíduo da posição central de sujeito não mais se sustenta no panorama atual de proteção da pessoa humana:
Já não se sustentam o monopólio estatal da titularidade de direitos nem os excessos de um positivismo jurídico degenerado, que excluíram do ordenamento jurídico internacional o destinatário final das normas jurídicas: o ser humano. Reconhece-se hoje a necessidade de restituir a este último a posição central – como sujeito do direito tanto interno quanto internacional – de onde foi indevidamente alijado, com as consequências desastrosas já assinaladas. Em nossos dias, o modelo westfaliano do ordenamento internacional afigura-se esgotado e superado.
Essa mudança gradativa da posição e importância do ser humano no Direito Internacional foi marcadamente influenciada pela ideologia que se desenvolveu ao longo desse período, de cunho predominantemente individualista. Para tratar dessa ideologia, tomamos o conceito de indivíduo no sentido formulado por Dumont (1985, p. 36-37):
quando falamos de ‘indivíduo’, designamos duas coisas ao mesmo tempo: um objeto fora de nós e um valor. A comparação obriga-nos a distinguir analiticamente esses dois aspectos: de um lado, o sujeito empírico que fala, pensa e quer, ou seja, a amostra individual da espécie humana, tal como a encontramos em todas as sociedades; do outro, o ser moral independente, autônomo e, por conseguinte, essencialmente não social, portador dos nossos valores supremos, e que se encontra em primeiro lugar em nossa ideologia moderna do homem e da sociedade.
Esta noção de ‘indivíduo’ como ser moral autônomo está na base do surgimento dos direitos humanos, fundamentando suas ideia cardinais de igualdade e liberdade, típicas da nossa sociedade moderna. A crescente valorização do ser humano como pessoa dotada de autonomia em relação aos demais, e portadora de uma dignidade própria e essencial, elevou a questão dos direitos humanos ao ponto de dispensar toda tentativa de fundamentação, pois tais direitos seriam, na configuração de valores modernos, autoevidentes[2]. Neste sentido, a Declaração de Independência dos Estados Unidos afirma, literalmente, que:
“Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”.
A afirmação da autoevidência, que dispensa os direitos humanos da difícil tarefa de buscar um fundamento teórico (busca esta tentada sem sucesso pelos teóricos dos direitos naturais, que jamais entraram em consenso sobre quais seriam estes direitos), encontra fundamento em um apelo emocional, requerendo certo sentimento interior amplamente partilhado. Hunt (2009, p.25) defende que:
“Os direitos humanos não são apenas uma doutrina formulada em documentos: baseiam-se numa disposição em relação às outras pessoas, um conjunto de convicções sobre como são as pessoas e como elas distinguem o certo e o errado no mundo secular. As ideias filosóficas, as tradições legais e a política revolucionária precisaram ter esse tipo de ponto de referencia emocional interior para que os direitos humanos fossem verdadeiramente ‘autoevidentes’.
Ao falar de ‘conjunto de convicções’, a autora refere-se aos valores compartilhados em determinada sociedade, em uma específica visão de mundo decorrente das experiências vivenciadas em comum, que se transformam em um ponto de referência emocional para o julgamento do certo e do errado em um dado tempo e local. No caso dos direitos humanos, partiu-se de uma visão do ser humano como indivíduo, fora da coletividade em que vive mas sem sair dela, de uma concepção de sociedade como o conjunto de individualidades, com ênfase na noção de autonomia.
A afirmação da autoevidência dos direitos humanos está fundada, portanto, em uma configuração específica de valores (DUMONT, 2008) que tem o indivíduoautônomo como elemento principal. O indivíduo como sujeito de direitos humanos é resultado desta configuração de valores, que compõe uma ideologia, no sentido utilizado por Dumont (1985, p. 20):
“Dou o nome de ideologia a um sistema de ideias e valores que tem curso num dado meio social. Chamo ideologia moderna ao sistema de ideias e valores característicos das sociedades modernas.”
Segundo Dumont (1985, p. 22), a ideologia moderna é essencialmente individualista, porém esta configuração de valores não existiu sempre nem apareceu de um dia para o outro “fez-se remontar à origem do ‘individualismo’ a uma época mais ou menos remota, segundo, sem dúvida, a ideia que dele se fazia e a definição que se lhe dava”.Em grande medida a ideologia moderna influenciou o surgimento dos direitos humanos, a partir de uma noção de indivíduo mais ou menos nova, e que transformou este indivíduo em personagem central do Direito Internacional atual.A passagem do indivíduo, no campo do Direito Internacional, de mero objeto de regulação ao papel de sujeito e principal destinatário de direitos e obrigações ocorreu, historicamente, intimamente associada à afirmação dos direitos humanos.
Dessa forma a ideologia moderna, individualista, está na base dos direitos humanos, cuja expansão e sedimentação foi responsável pelo deslocamento do indivíduo no âmbito do Direito Internacional, de objeto de regulação a sujeito de direitos e obrigações na ordem internacional, com a revisão de princípios tradicionais deste ramo jurídico. O papel atual do indivíduo como sujeito do Direito Internacionalé um resultado do desenvolvimento da noção de direitos humanos, os quais, por sua vez,sustentam-se em uma ideologia específica, característica da modernidade, que é a ideologia individualista.
Neste sentido, sob o ponto de vista crítico da sociologia e antropologia,a noção de indivíduo surge e se fortalece, enquanto valor, inserido em uma determinada configuração de valores próprios da ideologia moderna. Segundo este entendimento, o indivíduo é uma noção própria de um certo tipo de sociedade, surgida em um momento mais ou menos determinado entre os séculos XVII e XVIII, e que se desenvolveu fortemente até os dias atuais, dando fundamentação filosófica à afirmação dos direitos humanos.
Referências
Bobbio, N., A Era dos Direitos. 2004, Rio de Janeiro: Elsevier.
Comparato, F.K., A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7 ed. 2010, São Paulo: Saraiva.
Declaração Unânime dos Treze Estados Unidos da América. Disponível emhttp://www.embaixada-americana.org.br/index.php?action=materia&id=645&submenu=106&itemmenu=110. Acesso em 10/fev/2011.
Dumont, L., O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. 1985, Rio de Janeiro: Rocco.
Dumont, L., Homo Hierarchicus: O Sistema de Castas e Suas Implicações. 2 ed. 2008, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
Fishlow, A., O Novo Brasil: As Conquistas Políticas, Econômicas, Sociais e nas Relações Internacionais. 2010, São Paulo: Saint Paul Editora.
Hunt, L., A Invenção dos Direitos Humanos: Uma História. 2009, São Paulo: Companhia das Letras.
Marques, I.C., Intervenções Humanitárias: aspectos políticos, morais e jurídicos de um conceito em (trans)formação. Disponível em http://www.santiagodantassp.locaweb.com.br/br/arquivos/defesas/ivanmarques.pdf . Acesso em 08/fev/2011
Rezek, F., Direito Internacional. 2010, São Paulo: Saraiva.
Trindade, A.A.C., A Humanização do Direito Internacional, ed. D. Rey. 2006, Belo Horizonte: Del Rey.
[1] Embora esta afirmação não retrate a posição da unanimidade dos estudiosos da matéria, certamente é compartilhada pela sua ampla maioria. Importante divergência é a manifestada por Rezek (2010), para quem a personalidade jurídica do indivíduo, no Direito Internacional, dependeria da sua participação direta na produção de normas internacionais, e de possuir prerrogativas amplas para reclamar, em foros internacionais, a garantia de seus direitos.
[2]Hunt (2009) critica essa afirmada autoevidênciados direitos humanos, apontando uma contradição no fato de que estes direitos surgem apenas em determinados locais e épocas específicas da história, além da incessante tentativa de justificar os direitos humanos, demonstrando que não são tão autoevidentes assim.
Mestre em Direito das Relações Internacionais pelo Uniceub. Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Milton Carvalho. O Indivíduo e o Direito Internacional dos Direitos Humanos: Os reflexos da ideologia moderna na posição do indivíduo como sujeito de direitos e obrigações na ordem internacional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2012, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32981/o-individuo-e-o-direito-internacional-dos-direitos-humanos-os-reflexos-da-ideologia-moderna-na-posicao-do-individuo-como-sujeito-de-direitos-e-obrigacoes-na-ordem-internacional. Acesso em: 23 dez 2024.
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