A Lei de Licitações apresenta a qualificação econômico-financeira como requisito expresso de habilitação a ser preenchido pelos licitantes, o que deve ser feito mediante apresentação de documentação válida para tal objetivo. Nesse sentido é o teor do artigo 27 da Lei nº 8.666/1993:
Lei nº 8.666/1993
Art. 27. Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a:
(...)
III - qualificação econômico-financeira;
De acordo com Marçal Justen Filho[1], a qualificação econômico-financeira direciona-se à demonstração de existência de disponibilidade de recursos para a satisfatória execução do objeto da contratação. Isso porque incumbe ao contratado arcar com os custos da execução contratual, pois, salvo nas hipóteses de pagamento antecipado, o contratado somente será remunerado pela execução contratual após a entrega do objeto ou do serviço prestado.
Logo, considerando que o pagamento será efetuado somente após o recebimento, pela Administração, do objeto licitado, a regra é a de que o contratado suporte os custos necessários ao atendimento da demanda administrativa. É o que ocorre, por exemplo, quando a Administração pretende contratar o serviço de pintura de fachada do edifício que serve como sede de repartição pública. Nesse caso, o requisito habilitatório de qualificação econômico-financeira deve ser suficiente para aferir se a empresa ou empresário tem condições de arcar com os custos daquela prestação de serviço, ou seja, se há recursos para aquisição das tintas e pincéis, bem como se há disponibilidade financeira para arcar com a despesa inerente à mão de obra e respectivos encargos.
Por outro lado, a lei elencou algumas situações em que se presume a ausência de qualificação econômico-financeira. É o que ocorre, por exemplo, com a exigência de certidão negativa de falência ou concordata, prevista no artigo 31 da Lei de Licitações. Caso referido documento não seja apresentado pelo licitante, presume-se como não atendido o requisito de qualificação exigido pela lei, em especial porque sua exigência decorre da literalidade da norma, de modo que não cabe ao intérprete distinguir quando a redação legal é expressa em determinado sentido.
Ocorre que a Lei Complementar nº 128/2008 criou e incluiu a figura do Microempreendedor Individual (MEI) no regime diferenciado disciplinado pela Lei Complementar nº 123/2006, inclusive no que se refere à preferência de contratação em procedimentos licitatórios. Além disso, foram criadas regras mais flexíveis de recolhimento tributário e procedimento de inscrição e baixa da empresa, a fim de estimular a inclusão legal e tributária dos profissionais que trabalhavam na informalidade.
A legislação contém dispositivos destinados a incentivar a participação de microempresas e empresas de pequeno porte em procedimentos licitatórios, como forma de prestigiar o pequeno empreendedor, que é responsável por grande parcela da movimentação econômica brasileira e pela geração de inúmeros empregos.
De acordo com o artigo 18-A da Lei Complementar nº 123/2006, o microempreendedor individual é identificado como empresário, nos termos da definição apresentada pelo artigo 966 do Código Civil, que contém a seguinte redação:
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.
Em razão da singeleza das atividades desenvolvidas por microempreendedores individuais (pintores, cozinheiras, costureiras e etc.), não raro se observa que os licitantes dessa categoria mostram dúvidas sobre a efetiva necessidade de apresentação de certidões negativas de falência e recuperação judicial e extrajudicial, pois intuitivamente acreditam que não se submetem à disciplina da Lei nº 11.101/2005.
Todavia, para que seja possível saber se é possível exigir do microempreendedor individual (MEI) uma certidão negativa de recuperação judicial, falência ou concordata, é preciso verificar se esse empresário pode ser enquadrado como devedor, nos termos da Lei nº 11.101/2005, que trata da recuperação judicial, extrajudicial e da falência.
Sobre o tema, observa-se que o artigo 1º da Lei nº 11.101/2005 dispõe que sua disciplina é aplicável tanto ao empresário como à sociedade empresária, de modo a incluir a espécie de que trata o artigo 966 do Código Civil no rol de destinatários da norma. Segue transcrição do referido dispositivo legal:
Lei nº 11.101/2005:
Art. 1o Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.(g.n.)
Código Civil (Lei nº 10.406/2002):
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.
Considerando o disposto no artigo 1º da Lei de Falências, entende-se que não há qualquer óbice para que o empresário ou microempreendedor individual sejam sujeitos de pedido de falência ou recuperação judicial/extrajudicial. Não há, desse modo, qualquer impropriedade em exigir certidão negativa de falência e recuperação judicial relativamente ao microempreendedor individual como requisito de habilitação em procedimentos licitatórios. Pelo contrário, trata-se de imposição legal, cuja observância pela Administração Pública é obrigatória, salvo em casos excepcionais, cujo regramento deve ser definido no edital e justificado no respectivo processo administrativo de contratação.
Ainda quanto à Lei nº 11.101/2005, nota-se foram indicadas expressamente as instituições que não se submetem à sua disciplina, dentre as quais não de identifica, ainda que por analogia, a espécie do microempreendedor individual ou empresário. É o que se extrai do artigo 2º e incisos da Lei de Falências, abaixo reproduzido:
Art. 2o Esta Lei não se aplica a:
I – empresa pública e sociedade de economia mista;
II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.
Em reforço a essa constatação, observa-se que a Lei de Licitações apresenta as hipóteses em que as exigências relativas à qualificação econômico-financeira podem ser dispensadas pelo Poder Público. Referida dispensa pode ocorrer em licitações na modalidade convite, concurso e leilão, bem como para fornecimento de bens para pronta entrega. Nesse sentido é o artigo 32, §1º, da Lei nº 8.666/1993, abaixo transcrito:
Art. 32. Os documentos necessários à habilitação poderão ser apresentados em original, por qualquer processo de cópia autenticada por cartório competente ou por servidor da administração ou publicação em órgão da imprensa oficial. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)
§ 1o A documentação de que tratam os arts. 28 a 31 desta Lei poderá ser dispensada, no todo ou em parte, nos casos de convite, concurso, fornecimento de bens para pronta entrega e leilão.
De todo modo, ainda que se entenda que os microempreendedores individuais não se submetem à Lei de Falências, convém ressaltar a possibilidade ocorrência da insolvência civil por parte de tais empresários, que é caracterizada pela constatação de que o valor das dívidas superam a importância dos bens do devedor, nos termos da definição constante do artigo 955 do Código Civil.
É claro que a Administração não deve contratar com empresário ou pessoa física civilmente insolvente, em razão do não preenchimento do requisito de habilitação econômico-financeira expressamente exigido pela Lei de Licitações. Assim, ainda que se sustente a desnecessidade de apresentação de certidão negativa de recuperação judicial, extrajudicial e falência, nada impede que a Administração exija a apresentação de documentação comprobatória de que contra o licitante não há qualquer decisão declaratória de insolvência civil.
Dessa forma, em conclusão a tudo o que foi exposto, entende-se que a apresentação de certidão negativa de falência ou concordata é exigência que se aplica também ao microempreendedor individual, não havendo que se falar em aplicação de tratamento menos rigoroso no tocante a tal requisito, pois a Lei Complementar nº 128/2008 não trouxe qualquer peculiaridade que permita concluir que sua exigência não se aplica à tal espécie de empresário.
Ademais, ficou demonstrado que a Lei de Licitações apresenta, de forma expressa, as hipóteses em que referida exigência pode ser dispensada, não se incluindo entre elas qualquer desobrigação para o microempreendedor individual instituído pela Lei Complementar nº 128/2008.
Por fim, ainda que se sustente a desnecessidade de apresentação de certidão negativa de recuperação judicial, extrajudicial e falência pelo microempreendedor individual, entende-se que a comprovação de qualificação econômico-financeira deve ser demonstrada de alguma forma, motivo pelo qual a a Administração Pública pode exigir a comprovação de que contra o licitante não há declaração judicial de insolvência civil, para fins de atendimento à exigência do artigo 27, inciso III, da Lei nº 8.666/1993.
[1] Justen Filho, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo. Editora Dialética. 12ª edição p. 440.
Procuradora Federal em exercício junto ao CADE e especialista em direito público pela UnB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROQUE, Marcela Ali Tarif. Apontamentos sobre a exigência de certidão negativa de recuperação judicial, extrajudicial e de falência do microempreendedor individual (MEI) como qualificação econômico-financeira em procedimentos licitatórios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2012, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32988/apontamentos-sobre-a-exigencia-de-certidao-negativa-de-recuperacao-judicial-extrajudicial-e-de-falencia-do-microempreendedor-individual-mei-como-qualificacao-economico-financeira-em-procedimentos-licitatorios. Acesso em: 08 dez 2024.
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