Busca-se no presente texto avaliar a existência ou não nos dias atuais de resquícios da teoria de estado defendida por Maquiavel na época do Renascimento.
Para o filósofo italiano para a formação de um Estado pouco importava os meios utilizados, de modo que a finalidade atingida era suficiente para justificar a formação legítima de um príncipe. A clássica frase: "os fins justificam os meios" retrata fielmente a formação do Estado na época de Luís XIV que também ficou conhecido com a máxima: "O estado sou eu".
Na presente manifestação identificaremos que o Regime Diferenciado de Contratação criado pelo Governo Federal no ano passado pode ser considerado um projeto maquiavélico, na medida em que, a pretexto de agilizar as contratações das obras dos jogos olímpicos e da copa do Mundo de 2014, por outro lado concebeu um regime "à margem"da Lei 8.666/93, podendo-se afirmar, ainda, que viola princípios constitucionais.
De acordo com o artigo 37 da Constituição Federal:
Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(…)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Observa-se que o legislador constitucional estabeleceu que as obras, compras e serviços contratados pelo Poder Público devem ser realizadas através de procedimento licitatório estabelecido pela Lei. Assim, para cumprir o comando constitucional foi editada a Lei 8.666/93.
De acordo com o artigo 1º da Lei nº 8.666/93:
Art. 1º Esta Lei estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (grifou-se).
Assim, depreende-se que a Lei nº 8.666/93 veio ao ordenamento jurídico como norma geral no âmbito das licitações e contratações públicas, devendo ser utilizada como parâmetro tanto pela União, como pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.
O referido normativo traz em seu âmago a disciplina que deve ser observada pelo Poder Público para a aquisição de bens e a contratação de obras e serviços, objetivando, sempre, a escolha da proposta mais vantajosa e o princípio da igualdade entre os licitastes.
É preciso assinalar, contudo, que a referida Lei necessita de uma revisão na medida em que, não tem atendido às reclamações da sociedade e do Poder Público, não só em razão do desenvolvimento da tecnologia (A lei não prevê procedimentos digitais, por exemplo), como também em razão da burocratizarão que permeia o citado normativo, estabelecendo longos prazos para publicação de edital, por exemplo, e silenciando quanto às compras de entrega imediata a serem formalizadas com empresas estrangeiras e que não detém representante no Brasil. Essa última situação é comum na aquisição de periódicos e licenças internacionais.
Contudo, em razão do atraso ou até mesmo da ausência de interesse do Congresso Nacional na revisão desse ato normativo, a Presidente da República, no início do ano passado(2011) editou a Medida Provisória nº 527/11 instituindo o denominado Regime Diferenciado de Contratação-RDC.
Sem adentrar nas minúcias acerca da possibilidade de constatação de um viés maquiavélico até mesmo na existência da medida provisória-MP como ato normativo capaz de dar à luz à legislação, de previsão constitucional, o fato é que o RDC foi instituído por meio de MP para atender aos interesses do Governo Federal na condução dos processos de aquisição e compra destinadas, inicialmente, à Copa das Confederações de 2013, Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas em 2016.
Não se discute aqui a forma legislativa adotada pelo Governo Federal para editar e criar o RDC. Questiona-se se é possível identificar condutas maquiavélicas por parte do Governo na criação desse regime.
E, particularmente, entendo que a concepção defendida por Maquiavel pode ser sim identificada na criação do RDC, não só em razão da provável violação dos princípios administrativos constitucionais, como também em razão da violação do procedimento legislativo que foi adotado para sua edição e que, conforme veremos, ambas as situações encontram-se submetidas ao crivo do Judiciário por meio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade-ADI.
Contudo, apesar dessas irregularidade, o fato é que o RDC tem por objetivo acelerar as compras e obras governamentais diminuindo sensivelmente os prazos de procedimentalizacão e de contratação, o que, de certa forma, vem a beneficiar o Poder Público. E aí é que reside a outra vertente da teoria maquiavélica, ou seja, o Governo Federal, quando permitiu a criação do RDC, deixando à margem a Lei nº 8.666/93 visou estritamente seus interesses, qual seja, agilizar as contratações destinadas aos eventos internacionais de 2013 a 2016.
Uma primeira situação que chama a atenção e está sendo objeto de ADI é a maneira como o RDC foi aprovado. É que a MP nº 527/11 foi editada para modificar a estrutura organizacional e a estrutura dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios e, no momento da conversão, surgiu o texto que deu luz ao RDC, caracterizando, assim, um vício formal na edição da MP.
Ora, se o texto do RDC não constava da redação inicial da MP, parece ter havido uma violação ao devido processo legal legislativo e violação a separação dos poderes.
Uma outra crítica que se faz ao RDC é a possibilidade de a mesma empresa elaborar o projeto básico e executivo da obra a ser licitada, que a doutrina tem denominado de "turn key".
Com efeito, nos termos da lei nº 8.666/93, o projeto básico não pode ser elaborado pela mesma empresa que realiza o projeto executivo, uma vez que, configura violação ao princípio da igualdade, posto que, seria possível ao detentor do projeto básico antever quais valores seriam empreendidos para a execução do projeto executivo, possibilitando, assim, acesso a informação privilegiada em relação a outros concorrentes.
Como assevera Marçal Justen Filho:
"o projeto delineia os contornos da obra ou do serviço, que serão licitados posteriormente. Logo, o autor do projeto teria condições de visualizar de antemão, os possíveis concorrentes."
Outro ponto que chama a atenção seria a ausência de identificação clara do objeto a ser licitado em frontal violação ao artigo 14 da Lei nº 8.666/93:
Art. 14. Nenhuma compra será feita sem a adequada caracterização de seu objeto e indicação dos recursos orçamentários para seu pagamento, sob pena de nulidade do ato e responsabilidade de quem lhe tiver dado causa.
Não se pode olvidar ainda que recentemente foi incluído também no rol de projetos que devem observar o RDC o denominado PAC - Projeto de Aceleração do Crescimento (Lei nº 12.688/12). Diversos entes públicos tem projetos incluídos no PAC, dentre eles, INFRAERO, DNIT, ANAC, dentre outros.
Assim, pode-se afirmar que houve um esvaziamento da Lei nº 8.666/93, não só em razão da criação do RDC como também em razão da edição de diversos atos normativos complementares(Lei do Pregão, Desenvolvimento Sustentável, Decretos concedendo margem de preferência a determinados objetos, etc) que tem sido utilizados pelo Governo Federal como forma de regular a atividade de contratação do Poder Público, a denominada, Função Regulatória da Contratação.
Como visto o RDC deu vida a um regime aparentemente transgride não só princípios constitucionais, deixando à margem, a lei nº 8.666/93, como também vai de encontro a normas ali previstas, tudo em prol da agilidade nas licitações e contratações do Poder Público.
A partir dessas elucidações pode-se afirmar, portanto, que a teoria defendida pelo filósofo italiano Maquiavel encontra-se sendo utilizada plenamente pelo Estado, de modo que a pretexto de agilizar as contratações, o Governo Federal deixa de lado a Constituição Federal de 1988 que expressamente elegeu a Lei nº 8.666/93 como norma geral de observância obrigatória para todos os entes federados, bem como a metodologia eleita pelo legislador infraconstitucional para a aquisição de bens e serviços pelo Poder Público.
Referências
ARAUJO, Fabiano de Figueiredo. A verdade acerca do (constitucional) sigilo de orçamento do RDC para a Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas de 2016.
O REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATACÕES PÚBLICAS: comentários à lei nº 12.462/11. Núcleo de Pesquisas e Estudos do Senado. Agosto 2011. Página 12. Disponível em: www.senado.gov.br.
Procuradora Federal. Gerência de Procedimentos Administrativos da Procuradoria Federal Especializada junto à Anatel/DF.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DANTAS, Ana Carolina de Sá. A roupagem maquiavélica no Regime Diferenciado de Contratação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 dez 2012, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33016/a-roupagem-maquiavelica-no-regime-diferenciado-de-contratacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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