Considerações Iniciais
Segundo a norma disposta no Art. 170 da Lei nº 8.112/90, mesmo que extinta a punibilidade pela prescrição da ação disciplinar, a autoridade julgadora deverá determinar o registro do fato nos assentamentos individuais do servidor responsabilizado pela prática da infração administrativa.
A leitura apressada da norma pode conduzir à ideia de que a autoridade administrativa deve proceder, em qualquer hipótese, à instauração de ações disciplinares, mesmo ciente de antemão de que o direito de punir da Administração Pública está prescrito, afinal de contas, o registro do fato nos assentamentos funcionais do servidor independe da configuração da prescrição.
No entanto, o referido dispositivo legal deve ser lido e interpretado no contexto dos demais artigos da Lei nº 8.112/90, e ainda, sob a filtragem de princípios constitucionais explícitos e implícitos na Carta Magna, valendo citar o princípio da segurança jurídica, eficiência, economicidade, razoabilidade, proporcionalidade, dentre outros.
Prescrição da ação disciplinar e princípios constitucionais correlatos
O princípio constitucional da segurança jurídica, expressamente consignado no Art. 5º, inciso XXXVI, da CF, funciona como verdadeiro limite para a Administração Pública a impedir o exercício extemporâneo do poder disciplinar.
Ora, se um dos escopos do Direito é garantir a estabilização das situações jurídicas consolidadas pelo transcurso do tempo, não se revela legítima a atuação temporalmente ilimitada da Administração Pública para a aplicação de punições aos servidores públicos.
Não é por outro motivo que o Ministro Marco Aurélio, relator do RMS nº 23.436/DF[1] no Supremo Tribunal Federal, assentou em seu voto vencedor que: “Não é crível que se admita encerrar a ordem jurídica verdadeira espada de Dâmocles a desabar sobre a cabeça do servidor a qualquer momento.”
Por outro lado, o mero processamento de ações disciplinares envolve o dispêndio considerável de gastos públicos, pois a abertura da fase de instrução, com os depoimentos pessoais dos envolvidos e as oitivas testemunhais, enseja despesas com deslocamento dos servidores, aí incluindo o pagamento de transportes e diárias (Art. 173, da Lei nº 8.112/90).
Assim, considerada a reduzida utilidade do resultado final de ações disciplinares prescritas ab initio, revela-se afrontoso ao princípio da economicidade, insculpido no Artigo 70, caput da CF, o processamento dessas ações.
Demais disso, a realidade da Administração Pública revela a dificuldade de arregimentar servidores para a composição de comissões investigativas, o que demonstra a necessidade de priorizar a apuração de fatos recentes em detrimento daquelas já prescritas. Eventual inversão de prioridades destoaria da lógica do princípio da eficiência que exige a obtenção de resultados positivos das ações realizadas pelo Poder Público (Art. 37, caput, da CF).
Quanto ao princípio da razoabilidade, trata-se, no dizer de Antonio José Calhau Resende[2], de “agir com bom senso, prudência, moderação, tomar atitudes adequadas e coerentes, levando-se em conta a relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade a ser alcançada, bem como as circunstâncias que envolvem a pratica do ato”.
A incidência do princípio constitucional da razoabilidade, frente à questão da prescrição das ações disciplinares, implica a ponderação, dentre outros elementos, do custo do processamento de ações disciplinares prescritas, da dificuldade da reconstrução processual dos fatos ocorridos há anos e da reduzida utilidade do resultado final do processo, tudo a demonstrar se o custo-benefício da adoção da medida coaduna-se efetivamente com o interesse público almejado.
O entendimento da Controladoria-Geral da União e do Superior Tribunal de Justiça
A Controladoria-Geral da União, recentemente, editou o Enunciado nº 04/2011, o qual permite que a Administração Pública deixe, motivadamente, de deflagrar procedimento disciplinar nas hipóteses em que verifique a ocorrência da prescrição antes da sua instauração. Confira-se, a propósito, o inteiro teor do Enunciado:
Enunciado CGU n.º 04 (DOU de 05/05/2011, Seção 01, pag. 22)
Prescrição. Instauração.
A Administração Pública pode, motivadamente, deixar de deflagrar procedimento disciplinar, caso verifique a ocorrência de prescrição antes da sua instauração, devendo ponderar a utilidade e a importância de se decidir pela instauração em cada caso.
A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça entende que, reconhecida a prescrição antes da abertura do procedimento investigatório, não se revela possível sequer o assentamento do fato nos registros funcionais do servidor. Confira-se, a propósito, o seguinte excerto do Voto proferido pelo Relator Ministro Benedito Gonçalves, por ocasião do julgamento do Mandado de Segurança nº 16088 DF:
“Com efeito, em relação à primeira irregularidade apontada no presente mandamus, há que se distinguir a prescrição do direito de punir e a prescrição da pretensão punitiva, sob a ótica do registro do óbice prescricional nos assentamentos funcionais.
A prescrição do direito de punir é aquela consumada antes mesmo da instauração do processo administrativo disciplinar, desde que decorrido lapso temporal superior àquele deferido legalmente para o exercício do poder disciplinar estatal.
A seu turno, a prescrição da pretensão punitiva é aquela que sucede após a tempestiva instauração de processo administrativo disciplinar, em virtude da retomada do prazo prescricional, outrora interrompido com a abertura do feito.
Com base neste entendimento, apesar do art. 170, da Lei n. 8.112/1990 não fazer distinções quanto ao registro nos assentamentos funcionais, entendo que nos casos em que for reconhecida a prescrição antes mesmo da abertura do procedimento investigatório (prescrição do direito de punir), não seria possível registrar os fatos nos assentamentos funcionais.
Isso porque se a pena não pode ser aplicada ante o reconhecimento da prescrição, a exclusão do registro das punições nos assentamentos funcionais é conseqüência lógica, uma vez que se trata de medida acessória.
Assim, no caso em análise, ausente a justa causa para instauração de Sindicância, uma vez que reconhecida a prescrição do direito de punir antes mesmo da abertura do procedimento investigatório.” (MS 16088 / DF, Relator Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, Julgado em 23.05.2012)
Como se vê, o STJ entende que a prescrição nos procedimentos disciplinares deve ser estudada sob duas vertentes distintas, a primeira refere-se à prescrição da pretensão punitiva que se consuma durante o processamento da ação disciplinar; a segunda diz respeito à prescrição do direito de punir que se consuma antes mesmo da instauração da ação disciplinar.
Segundo essa orientação, a prescrição da pretensão punitiva afasta a possibilidade de aplicação das sanções disciplinares previstas na Lei nº 8.112/90, no entanto mantém hígida a possibilidade de registro do fato nos assentamentos funcionais do servidor. Já a prescrição do direito de punir afasta a justa causa para a deflagração da ação disciplinar, pelo que não se revela válido sequer o registro dos fatos nos assentamentos do servidor.
O entendimento do STJ contextualiza com primazia a norma do Art. 170 com os demais dispositivos da Lei nº 8.112/90. Como se sabe, o regramento atinente ao Processo Administrativo Disciplinar está disposto no Título V da referida Lei (Do Processo Administrativo Disciplinar). O Título V é dividido em três capítulos: I - Disposições Gerais; II – Afastamento Preventivo; e III – Processo Disciplinar. Por sua vez, o Capítulo III – Processo Disciplinar, é subdividido em três seções: I – Do Inquérito; II – Do Julgamento; e III – Da Revisão do Processo. O Art. 170, que determina o registro dos fatos no assentamento individual do servidor mesmo havendo extinção da punibilidade pela prescrição, integra a Seção II (Do Julgamento), ou seja, trata-se de norma afeta à fase de julgamento do processo administrativo disciplinar.
Dessa forma, a interpretação contextualizada da norma deve conduzir ao entendimento de que, verificada a ocorrência da prescrição na fase do julgamento da ação disciplinar, revela-se obrigatório o registro dos fatos no assentamento do servidor, mas, de acordo com a exegese sistemática da lei, esse mandamento normativo não pode ser transferido para a fase de instauração do Processo Administrativo Disciplinar a ponto de legitimar a deflagração de ações disciplinares prescritas ab initio.
A incidência da norma disposta no Art. 170 deve cingir-se à fase de julgamento da ação disciplinar, pois esse é o espectro de aplicabilidade que a Lei nº 8.112/90 lhe confere. A se entender de modo contrário, as ações disciplinares poderiam ser promovidas a qualquer tempo, o que não se demonstra consentâneo com a interpretação sistemática da Lei nº 8.112/90, tampouco com a ordem jurídica vigente.
Importa ressaltar, por oportuno, que o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça foi seguido no Manual de Processos Administrativos Disciplinares[3], da Controladoria-Geral da União, conforme se verifica abaixo (p. 418):
“Contudo, se a prescrição ocorrer antes da instauração de procedimento correicional, o caso deve ser analisado em concreto, de modo que se delibere acerca da conveniência e interesse da Administração em mover a máquina pública para apurar os fatos - é certo, porém, que, caso se entenda que não há mais motivos suficientes para a deflagração de procedimento disciplinar, tal decisão deve ser motivada de modo preciso.
Este posicionamento foi objeto do Enunciado CGU nº 04, publicado no
DOU de 05/05/2011, Seção 01, página 22:
“A Administração Pública pode, motivadamente, deixar de deflagrar procedimento disciplinar, caso verifique a ocorrência de prescrição antes da sua instauração, devendo ponderar a utilidade e a importância de se decidir pela instauração em cada caso.”
Por outro lado, se a prescrição ocorrer no curso do apuratório disciplinar -
antes do julgamento e após a publicação da portaria de instauração -, entende-se que o colegiado que estiver conduzindo os trabalhos deve concluir o processo.
Assim, restando devidamente comprovado que houve o cometimento de alguma irregularidade por parte do servidor, tal fato deverá ser registrado em seus assentamentos funcionais, conforme disposto no artigo 170 da Lei nº 8.112/90:
“Art. 170 – Extinta a punibilidade pela prescrição, a autoridade julgadora
determinará o registro do fato nos assentamentos individuais do servidor.”
Com efeito, de acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a consumação da prescrição antes da instauração da ação disciplinar extingue o direito de punir da Administração Pública, afastando, assim, a justa causa para a deflagração do processo sancionatório. Já para a Controladoria-Geral da União, a ocorrência da prescrição constitui pressuposto fático idôneo a legitimar a ausência de deflagração da ação disciplinar, devendo haver ponderação casuística da utilidade e da importância da instauração do procedimento.
Conclusão
Como visto, a instauração de processos administrativos disciplinares deve obedecer a limitações temporais, porquanto se encontra sujeita aos princípios constitucionais e aos mandamentos legais correspondentes.
Dessa forma, a possibilidade de se registrar os fatos nos assentamentos funcionais do servidor mesmo que extinto o jus puniendi da Administração pela prescrição (Art. 170, da Lei nº 8.112/90), deve ser interpretada no contexto em que o dispositivo está inserido na lei, sem se olvidar do influxo dos princípios constitucionais aplicáveis ao tema.
A Controladoria–Geral da União externou seu posicionamento sobre a matéria, através do Enunciado CGU nº 04 (DOU de 05/05/2011), segundo o qual “A Administração Pública pode, motivadamente, deixar de deflagrar procedimento disciplinar, caso verifique a ocorrência de prescrição antes da sua instauração, devendo ponderar a utilidade e a importância de se decidir pela instauração em cada caso.”
Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça entende que a prescrição do direito de punir afasta a justa causa para a deflagração da ação disciplinar, não remanescendo qualquer interesse legítimo para o processamento da ação, inclusive quanto à possibilidade de registro dos fatos nos assentamentos do servidor envolvido.
Referências Bibliográficas
MANUAL DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO, 2012. Disponível em: <http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/GuiaPAD/Arquivos/Manual_de_PAD.pdf> Acesso em: 4 dezembro 2012.
RESENDE, Antonio José Calhau. O princípio da Razoabilidade dos Atos do Poder Público. Revista do Legislativo. Abril, 2009.
[1] RMS 23436, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 24/08/1999, DJ 15-10-1999 PP-00028 EMENT VOL-01967-01 PP-00035.
[2] RESENDE, Antonio José Calhau. O princípio da Razoabilidade dos Atos do Poder Público. Revista do Legislativo. Abril, 2009.
[3] Disponível em: <http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/GuiaPAD/Arquivos/Manual_de_PAD.pdf> Acesso em: 4 dezembro 2012.
Advogado da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOROMENHO, Adriano Silva. A Prescrição do Direito de Punir da Administração Pública e a ausência de justa causa para a instauração de ações disciplinares Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 dez 2012, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33023/a-prescricao-do-direito-de-punir-da-administracao-publica-e-a-ausencia-de-justa-causa-para-a-instauracao-de-acoes-disciplinares. Acesso em: 23 dez 2024.
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