1. INTRODUÇÃO
A procuração em causa própria é um instrumento valioso para mandante e mandatário contratarem entre si, com forma especial, envolvendo interesses mútuos e de terceiros, o que gera seu caráter de irrevogabilidade. Este instrumento, cumpridas as formalidades legais, autoriza o mandatário, no caso de transação imobiliária, a transferir o imóvel para si. O mandatário contrata consigo mesmo ou substabelece os poderes a um terceiro que lhe outorgará a escritura do imóvel em questão.[1]
A declaração de vontade destinada à formação da relação jurídica é normalmente emitida pela própria pessoa interessada em sua formação. No entanto, pode ocorrer que, em certo negócio jurídico, possa intervir terceira pessoa que não o interessado direto e imediato. Neste caso, ocorre a representação. Esta, segundo Francisco Amaral, caracteriza-se pela “atuação jurídica em nome de outrem.” Seria o poder atribuído a alguém de praticar determinado negócio jurídico em nome de outrem, por via da representação. O contrato consigo mesmo refere-se a negócio jurídico que se torna possível em função do mecanismo da representação. A representação funciona como instrumento de cooperação para conclusão dos negócios jurídicos, possibilitando a realização de negócios sem a presença física dos respectivos agentes. Conforme assinala Francisco Amaral, a representação consiste na “prática de um ato por pessoa diversa do titular, que é parte substancial da relação jurídica. O representante, embora praticando o ato, não assume a titularidade da relação, nem é, de regra, o destinatário de seus efeitos, nem responsável por sua execução.” O fundamento da representação é a liberdade jurídica das pessoas, a autonomia privada, que permite ao representante a atuação em nome do representado. Por isso, tem como pressupostos a substituição de uma pessoa (representado) por outra (representante), a atuação deste em nome daquele (contemplacio domini), dentro dos limites dos poderes outorgados.[2]
A representação não se confunde com o mandato. Este é contrato bilateral, ao passo que aquela é ato jurídico unilateral, uma outorga de poderes. Segundo Pontes de Miranda, coube a Laband mostrar a autonomia e independência entre a representação e o mandato. Informa o tratadista que os juristas por muito tempo confundiram o poder e o mandato, até que P. Laband precisou os dois conceitos. “O mandato é contrato; a outorga de poder, negócio jurídico unilateral.”[3]
2. DESENVOLVIMENTO
O Código Civil, Lei 10.406/02, em seu art. 685 estabelece que “Conferido o mandato com a cláusula “em causa própria” a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais.” É um negócio jurídico frequentemente usado no âmbito do direito imobiliário. Por meio desta procuração, o vendedor do imóvel constitui o próprio comprador como seu procurador para representá-lo em cartório por ocasião da lavratura da escritura definitiva de compra e venda. O comprador, no ato da compra e venda, representa a si e ao vendedor, dispensando este da conclusão do negócio e transferência imobiliária.[4]
A procuração em causa própria assume as características de um verdadeiro contrato, com forma especial, e deve ser clara e precisa em seu conteúdo, isto é, especificar a qualificação completa do outorgante e do outorgado, objeto do mandato, condições do seu exercício e, a declaração de que o valor fixado foi recebido pelo outorgante e que dá quitação, equiparando-se a uma promessa de compra e venda quitada, ou seja, que o preço ajustado foi integralmente pago ao vendedor no ato em que ela é lavrada por instrumento público. A razão de ser do documento decorre por motivo de urgência, de ser finalizada uma transação de compra e venda de imóvel com pagamento à vista, em que o vendedor não pode esperar a complementação dos procedimentos preliminares à lavratura da escritura definitiva de compra e venda, em se falando de transação imobiliária, uma vez que a lavratura da escritura definitiva requer uma série de providências tais como: documentos pessoais, certidões, imposto de transmissão, entre outros, ou ainda, quando o comprador já está descapitalizado para fazer frente as despesas da transmissão. Pretendendo os envolvidos antecipar a conclusão do negócio, a solução é a procuração em causa própria outorgada pelo vendedor em favor do comprador (credor), permitindo ao comprador celebrar consigo mesmo a escritura definitiva no momento mais oportuno.[5]
A procuração em causa própria é outorgada pelo vendedor em favor do comprador em caráter irrevogável e irretratável, pois o vendedor já recebeu o preço integral relativo à compra e venda. Através desse instrumento o vendedor transfere ao comprador todos os poderes para representá-lo, podendo vender, ceder, doar, alienar ou gravar o imóvel, em seu nome ou de quem este indicar. Essa procuração não se extinguirá com a morte do mandante ou do mandatário, pois os sucessores do alienante deverão respeitá-la e os do adquirente poderão levar o título a registro. Uma vez que contenha a procuração em causa própria todos os requisitos que caracterizam a transação, deverá ser levada ao registro de imóveis correspondente à localização do imóvel, pagando-se o imposto de transmissão sobre o valor da transação, que deverá constar do mandato. Não é obrigatório levar a procuração em causa própria ao registro no cartório de imóveis. Mas, enquanto não for registrada ou lavrada a escritura definitiva, o imóvel permanecerá em nome do mandante (vendedor), que ainda considera-se proprietário para esse efeito. É recomendável que o mandato seja levado a registro de imóveis cumprindo as formalidades legais, que inclui o pagamento do imposto de transmissão, evitando-se que eventuais pendências judiciais contra o mandante venha gravar o imóvel. Há aqui uma exceção, pois que, em regra geral, o mandatário (representante), não pode atuar em seu próprio interesse, não lhe sendo lícito celebrar contrato consigo mesmo, mesmo que não exista conflito de interesse. Assim, apenas excepcionalmente o mandante ou a lei podem autorizar que o mandatário atue em nome do representado e que também se apresente como a outra parte do negócio jurídico a ser celebrado, como por exemplo: "A" outorga procuração para "B", para que esse realize a venda de sua casa. Ocorre que "B" se interessa pelo imóvel e decide adquiri-lo. A celebração do contrato de compra e venda e da respectiva escritura envolverá apenas uma pessoa: "B", que, de um lado, estará representando "A" e, de outro, os seus próprios interesses.[6]
Nesse o caso, é perceptível que, embora fisicamente haja uma única pessoa, há duas manifestação de vontade, uma como representante, e a outra como parte do negócio jurídico celebrado.[7] A procuração em causa própria é uma alienação aparentando mandato (compra e venda, cessão de crédito, etc.), feita em interesse do mandatário, que pode alienar a terceiro, ou transferir o bem ou direito para si, sem necessidade de prestar contas, sendo irrevogável, e possui valor mesmo em caso de morte do mandante ou do mandatário. Assim, corresponde a negócio feito e acabado onde há pagamento do preço e quitação. É um negócio jurídico com aparência de procuração, porque de fato o mandatário passa agir em seu nome, e não em representação ao mandante. Na procuração em causa própria o vínculo entre mandante e mandatário não constitui necessariamente uma relação típica de mandato, pela qual alguém recebe de outrem poderes para em seu nome praticar atos ou administrar interesses (art. 653, CC).[8]
Afirma a Consolidação Normativa Notarial e Registral do Estado do Rio Grande do Sul no art. 620 que: “As procurações em causa própria relativas a imóveis deverão conter os requisitos da compra e venda (a coisa, o preço e o consentimento), e por suas normas serão regidas”. Exige, para a sua lavratura, recolhimento prévio do imposto de transmissão, e os emolumentos são os mesmos da escritura com valor determinado. Assim, não há dúvida quanto à natureza da procuração em causa própria, vez que se trata de ato de alienação, a exemplo da compra e venda ou da cessão. Verifica-se semelhança com a cláusula em causa própria, pois o mandante permite ao mandatário negociar consigo mesmo, com a diferença que com a procuração em causa própria existe alienação, deixando de ser simples autorização representativa, enquanto que pela autorização contida no art. 117 a alienação para o próprio mandatário poderá ocorrer ou não.[9]
O que se pode exigir, para a hipótese, é que a procuração traga em seu bojo a fixação do preço, para que não fique a critério exclusivo do procurador (comprador). O artigo 489 do Código Civil declara a nulidade do negócio em que a fixação do preço é de livre arbítrio de uma só das partes, e embora não exista previsão de prazo, recomenda-se que seja este determinado, para que eventual desvalorização monetária não venha a causar prejuízo ao mandante. A despeito da semelhança, não se confundem os institutos. Na procuração em causa própria o mandato é irrevogável, há pagamento e quitação, e esta prevalece mesmo com a morte do mandante ou do mandatário, enquanto que na procuração referida no art. 117 os poderes podem ser revogados, inclusive com o óbito, a qualquer tempo, e não há pagamento ou quitação.[10]
Informa o art.119 do Código Civil que é anulável o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou. O seu parágrafo único estabelece o prazo de 180 (cento e oitenta dias) como prazo de decadência para pleitear-se a anulação, contados da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade.[11]
Em verdade, não se trata de contrato consigo mesmo, posto que o contrato, por definição legal, requer o acordo de vontades. Ademais, os representantes apenas celebraram o negócio jurídico. Seus efeitos são produzidos na esfera dos representados. Portanto, não há que se falar em contrato consigo mesmo. Nesse sentido salienta Orlando Gomes que “sob o nome de autocontrato ou contrato consigo mesmo conhece o Direito moderno figura curiosa de negócio jurídico bilateral. Tomada ao pé da letra seria absurda. Ninguém pode constituir relação jurídica na qual figure, ao mesmo tempo, como sujeito ativo e passivo. Contratar consigo próprio é, logicamente, impossível. O contrato é, por definição, o acordo de duas ou mais vontades, não se podendo formar intuitivamente, pela declaração de uma só vontade. Tais reparos provêm, entretanto, de manifesta confusão. A primeira, devida à denominação. Em verdade, não há contrato consigo mesmo, porque a figura assim chamada só se torna possível em função do mecanismo da representação. Podendo o contrato ser concluído por meio de representante, este, em vez de o estipular com terceiro, celebra consigo próprio. Por força da sua condição, reúne, assim, em sua pessoa, dois centros de interesses diversos, ocupando as posições opostas de proponente e aceitante. No fundo, não realiza contrato consigo mesmo, senão com a pessoa a quem representa. A outra confusão decorre da suposição de que a regra da dualidade pessoal de partes não comporta exceção. É certo que, para quem não admite a natureza unilateral do autocontrato, há duas partes. A figura do autocontrato é equívoca, porque violenta o princípio da duplicidade de declarações de vontade, o que levou alguns tratadistas a considerá-lo negócio unilateral. Se o contrato é o encontro e a integração de duas vontades, pressupõe duas declarações, não sendo possível admitir-se que resulte de uma só. A essa objeção responde-se dizendo-se que o essencial para a formação do contrato é a integração de declarações animadas por interesses contrapostos. Na formação do autocontrato, o representante emite duas declarações distintas que consubstanciam os interesses dos quais se tornou o ponto de convergência.” Não obstante à crítica que se faz a esta terminologia, foi ela adotada pelos códigos alemão, italiano, português. O Código nacional, na esteira dos Diplomas italiano e português, também adotou a mesma terminologia.[12]
3. CONCLUSÃO
A procuração em causa própria difere do contrato consigo mesmo. Este refere-se a negócio jurídico que se torna possível em função do mecanismo da representação. Podendo o representante celebrar negócio jurídico com terceiro, atuando em nome do dominus negotii, se o faz consigo mesmo, configura-se o chamado autocontrato ou contrato consigo mesmo. E a procuração em causa própria, de procuração possui apenas o nome, pois trata-se de alienação gratuita ou onerosa.[13]
No dizer de Orlando Gomes, “a cláusula in rem suam desvirtua a procuração, porque o ato deixa de ser autorização representativa. Transmitido o direito ao procurador em causa própria, passa este a agir em seu próprio nome, no seu próprio interesse e por sua própria conta. Sendo o negócio traslativo há que preencher os requisitos necessários à validade dos atos de liberalidade ou de venda. Transfere crédito, mas não a propriedade. Será, em relação a esta, um título de transmissão, a ser transcrito para que se opere a translação. Quando tem por objeto o bem imóvel, a procuração em causa própria exige a forma de escritura pública. A procuração em causa própria é irrevogável não porque constitua exceção à revogabilidade do mandato, mas porque implica transferência de direitos.”[14]
A procuração em causa própria não se confunde com a procuração específica para celebração de contrato consigo mesmo. Esta é revogável, se extingue com a morte e é outorgada em benefício do mandante, ao passo que aquela é irrevogável, não se extingue com a morte e é outorgada em benefício do mandatário.[15] A procuração em causa própria possui ,enfim, um teor mais abrangente do que o contrato consigo mesmo.
O contrato consigo mesmo não encontra vedação no direito positivo brasileiro. Ao contrário, com o advento do Código Civil de 2002, o instituto passou a ter previsão expressa (art. 117), não existindo óbice a sua realização. Porém, para sua validade, é necessário que o representado autorize a realização do negócio jurídico, definindo o seu conteúdo, de maneira que não haja conflito de interesses entre representante e representado. Além disso, não deve haver vedação legal.[16]
Com a nova sistemática do art. 117 do novo Código Civil, os atos notariais que expressem negócios jurídicos celebrados consigo mesmo poderão ser normalmente formalizados pelos tabeliães e escreventes no desempenho de suas funções. Dessa forma, são possíveis, dentre outras, as seguintes hipóteses: A, representado por B, celebra negócio com C, também representado por B; A, representado por B, celebra negócio com B; A celebra negócio com B, sendo este representado por A.[17]
4. REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Patrícia Donati. O QUE É AUTOCONTRATO? Disponível em: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20080521175451776&query=donati. Acessado em 15/11/2012.
ALVARENGA, Luiz Carlos. A representação nos atos notariais celebrados consigo mesmo: análise do art. 117 do novo Código Civil. Disponível em: http://www.ambito- juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3849. Acessado em 15/11/2012.
AMARAL, Francisco. Direito civil. v.1. 32.ed. rev., atual. e aum. de acordo com o novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
FRANCISCO, Alison Cleber. MANDATO. Aula telepresencial proferida pelo professor Alison Cleber Francisco no curso de pós-graduação lato sensu em direito notarial e registral na instituição LFG-Anhanguera-Uniderp, em 16/08/2012.
GAGLIANO, Pablo Stolze e Filho, Rodrigo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil. 5.ed. rev. , amp. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004.
LEAL, José Hildor. PROCURAÇÃO EM CAUSA PRÓPRIA E NEGÓCIO CONSIGO. Disponível em: http://www.notariado.org.br/blog/?link=visualizaArtigo&cod=251. Acessado em 15/11/2012.
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 12.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
PINTO , Wilkins Guimarães. PROCURAÇÃO EM CAUSA PRÓPRIA E O REGISTRO DE IMÓVEIS. Disponível em: http://www.recivil.com.br/preciviladm/modulos/artigos/documentos/PROCURACAO%20EM%20CAUSA%20PROPRIA%20NO%20RGI.pdf. Acessado em 15/11/2012.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. v.1. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2004.
WALD, Arnoldo. Direito civil: introdução e parte geral. 10.ed. rev. amp. e atual. de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003.
[1] http://www.recivil.com.br/preciviladm/modulos/artigos/documentos/PROCURACAO%20EM%20CAUSA%20PROPRIA%20NO%20RGI.pdf
[2] http://www.ambito- juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3849
[3] http://www.ambito- juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3849
[4] http://www.recivil.com.br/preciviladm/modulos/artigos/documentos/PROCURACAO%20EM%20CAUSA%20PROPRIA%20NO%20RGI.pdf
[5] Idem
[6] http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20080521175451776&query=donati
[7] Idem
[8] http://www.notariado.org.br/blog/?link=visualizaArtigo&cod=251
[9] Idem
[10] Ibidem
[11] http://www.ambito- juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3849
[12] Idem.
[13] http://www.ambito- juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3849
[14] Idem
[15] Ibidem
[16] Ibidem
[17] Idem
Perito Criminal Federal, ex-Agente de Polícia Federal, ex-analista do TRE/SP, Engenheiro Agrônomo pela UFSM e bacharel em Direito pela UFAC, pós-graduado em Direito do Estado e em Gestão Pública pela UNINORTE/AC, atual aluno de pós-graduação em Direito Notarial e Registral na Universidade Anhanguera-Uniderp por meio da LFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Ramatis Vozniak de. Das características, elementos essenciais e diferenças entre procuração em causa própria e procuração para fazer negócio consigo mesmo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 dez 2012, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33028/das-caracteristicas-elementos-essenciais-e-diferencas-entre-procuracao-em-causa-propria-e-procuracao-para-fazer-negocio-consigo-mesmo. Acesso em: 23 dez 2024.
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