SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breve explanação acerca dos contratos administrativos. 3. Teoria da imprevisão. 3.1. Histórico da teoria da imprevisão. 3.2. Conceito e elementos de aplicabilidade da Teoria da Imprevisão. 4. Inexecução do contrato administrativo. 4.1. Aplicação da teoria da imprevisão aos contratos administrativos. 5.Conclusão. Referência
RESUMO: A Administração, em muitos casos, necessita celebrar pactos bilaterais com terceiros oucomo outros entes da Administração objetivando a consecução de interesses públicos. Apesar de suas características próprias, os contratos administrativos são regidos pelas normas do Direito Civil que disciplinam a teoria geral dos contratos, seja de forma predominante ou subsidiaria. Dentre os princípios que disciplinam a teoria geral dos contratos e, por conseguinte,os contratos administrativos, está o pacta sunt servanda ou princípio da obrigatoriedade dos contratos, porém, este princípio não deve ser levado às últimas consequências, porque se assim feito, o Direito estaria por consagrar injustiças, posto que podem ocorrer alterações nas bases de fato da relação contratual quando de sua execução, sendo necessário revê-la. A teoria da imprevisão tem se mostrado como o meio mais adequado para mitigar esta obrigatoriedade contratual.
PALAVRAS-CHAVES: Administração. Contratos.Princípios Contratuais.Teoria da Imprevisão.
1.INTRODUÇÃO
Modernamente, com o advento da concepção de personificação do Estado, este passou a ser idealizado como um todo dinâmico capaz de firmar pactos bilaterais, ou seja, capaz de ser parte em relações obrigacionais. Todavia um problema evidenciou-se, posto que os pactos bilaterais, também denominados de acordo de vontades ou simplesmente contratos, celebrados pelo Estado-Administração não podem ser desnaturados ao ponto de perderem as suas características próprias e nem serem firmados com ampla margem de liberdade, incompatível com a figura do Estado. O ordenamento jurídico brasileiro, buscando uma conciliação, findou por estabelecer dois regimes diversos de contratação para a Administração, mas determinando, para ambos, a aplicaçãodos princípios gerais do contrato e das disposições de Direito Privado, de forma predominante para um e subsidiariamente para o outro, como será posteriormente deslindado.
O vocábulo Administração não está limitado à Administração Direta, tendo o legislador fixado um sentido demasiadamente amplo, abarcando a Administração Indiretae demais entidades controladas direta ou indiretamente pelos Entes Federados, ou seja, a sua acepção comporta além das pessoas federativas, as entidades a elas vinculadas, caso dosfundos especiais, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas, das sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 6ª, Parágrafo Único, Lei nº 8.666/93).
Ressaltando-se, por obvio, que a atividade a ser contratada pela Administrção deve estar revestida de interesse público, em razão de este ser o motivo inspirador de qualquer conduta administrativa, o que faz com que alguns doutrinadores ponham o benefício da coletividade como o objeto do contrato administrativo (CARVALHO FILHO, 2012, p. 179). Face o exposto, como poderia o contratado fazer uso da teoria da imprevisão, posto que, ao menos a primeira vista, a sua aplicação faz com que o interesse privado se sobreponhaao interesse público?
O artigo em epígrafe objetiva responder a esse questionamento, bem como elucidar e explicitar pontos relevantes acercados contratos administrativos e da teoria da imprevisão.
2. BREVE EXPLANAÇÃO ACERCA DOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS
Apesar de o contrato ser um instituto típico do Direito Privado a Administração Pública dele se utiliza, seja sob a primazia de normas de Direito Privado ou com supremacia do Poder Público. No primeiro caso estar-se-á diante do que se convencionou chamar de contrato administrativo atípicoou contrato semipúblico da administração (v.g. aluguel de um imóvel para instalar uma creche),já no segundo caso encontra-se o denominado contrato administrativo típicoou contrato administrativo propriamente dito (v.g. contrato de obra pública).Em razão da proximidade existente entre o Direito Público e o Privado quanto ao instituto ora analisado, como, também, por inteligência do caput do art. 54 da Lei nº 8.666/93, aplica-se a teoria geral dos contratos tanto para os contratos administrativos atípicos quanto para os típicos, porém nestes as disposições do Direito Privado atuarão supletivamente.
O contrato é entendido, tradicionalmente, como um negócio jurídico pelo qual as partes, por um acordo de vontades, obrigam-se mutuamente a prestações contrapostas, disciplinando os efeitos patrimoniais que pretendem atingir. Hely Lopes Meirelles define-o como “[...] um acordo de vontades, firmado livremente pelas partes, para criar obrigações e direitos recíprocos” (2012, p. 220). José dos Santos Carvalho Filho traz conceito assemelhado ao do saudoso doutrinador paulista, dispondo que o contrato “é o acordo de vontades com objetivo determinado, pelo qual as pessoas se comprometem a honrar as obrigações ajustadas” (2012, p. 171). Como se depreende do agora exposto, a consensualidade é um traço nuclear caracterizador dos contratos, sendo assim, o contrato administrativo necessita ser firmado através de um acordo de vontades entre a Administração Pública e o particular ou outra entidade administrativa objetivando e, igualmente, sujeitando-seàs imposições do interesse público. A consequência decorrente desta sujeição é a outorga à Administração de prerrogativas de supremacia que visam acautelar este interesse.
No Direito Privado a liberdade de contratar é ampla e informal, salvo as restrições da lei e as exigências especiais de forma para certos ajustes, ao passo que no Direito Público a Administração está sujeita a limitações de conteúdo e a requisitos formais rígidos, mas, em contrapartida, dispõe sempre dos privilégios administrativos para a fixação e alteração das cláusulas de interesse público e até para pôr fim ao contrato em meio de sua execução (MEIRELLES, 2012, p. 221).
Após essa breve explicitação a respeito dos contratos de uma forma genérica, passar-se-á a exaltar alguns pontos relevantes acerca do contrato administrativo, iniciando pelo conceito. A Lei Geral de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/93) no parágrafo único do art. 2º define-o como todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada. Sendo assim, o contrato administrativo pode ser conceituado como um ajuste realizado entre a Administração Pública e o particular ou outra entidade administrativa visando a consecução de objetivos de interesse público, devendo a Administração estabelecer as condições.Estas condições a que o conceito se refere serão estabelecidas no decorrer do processo licitatório, que é uma característica própria do contrato administrativo, sendo dispensada apenas nos casos expressos em lei (art. 37, XXI, CR/88). Para Celso de Mello o contrato administrativo pode ser definido como:
[...] um tipo de avença travada entre a Administração e terceiros na qual, por força de lei, de cláusulas pactuadas ou do tipo de objeto, a permanência do vínculo e as condições preestabelecidas assujeitam-se a cambiáveis imposições de interesse público, ressalvados os interesses patrimoniais do contratante privado (2009, p. 614-615).
A ressalva trazida por Celso de Mello ao final do seu conceito, quanto aos interesses patrimoniais do contratante privado, diz respeito àimpossibilidade de o Poder Público esquivar-se do ressarcimento integral dos agravos econômicos causados ao contraente, quando oriundos de fato seu, ainda que decorrentes do exercício de suas prerrogativas de alteração e extinção do contrato de forma unilateral.
Preceito Constitucional estabelece a competência privativa da União para estabelecer normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no Art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do Art. 173, § 1º, III (art. 22, XVIII, CF), o que possibilita aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal, legislarem para si, mas desde que respeitem as normas gerais, que estão dispostas na Lei nº 8.666/93.
3. TEORIA DA IMPREVISÃO
É cediço a essencialidade do princípio da força obrigatória dos contratos, denominado classicamente de pacta sunt servanda, não havendo, inclusive, ordenamento jurídico que não o consagre, até pela inexistência de alguma outra forma que possibilite aos contratos o exercício de sua utilidade econômica e social, pois um negócio jurídico sem força obrigatória se consubstanciaria, nas palavras de Pablo StolzeGagliano e Rodolfo Pamplona Filho, em um “mero protocolo de intenções, sem validade jurídica” (2011, p. 74).
Entretanto, esse princípio não pode ficar isento a restrições, sob pena de se consagrar injustiças, devendo-se estabelecer mecanismos jurídicos de regulação do equilíbrio econômico-financeiro, a exemplo da teoria da imprevisão, que poderá ser utilizada pelo contraente lesado visando a revisão do contrato.
3.1. Histórico da Teoria da Imprevisão
Intimamente relacionada ao princípio da obrigatoriedade dos contratos, sendo uma mitigação a este, a teoria da imprevisão é um dos principais avanços trazidospela visão mais humanista do Direito.Os cultos civilistas, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona citando Othon Sidou, afirmam que o Código de Hammurabi, em sua Lei 48, já exprimia a importante teoria nos seguintes termos: se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor, deverá modificar a sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano (2011, p.310).
Os romanos também previam, desde a antiguidade, a possibilidade de revisão das cláusulas contratuais em decorrência de alteração na situação de fato posterior a celebração destas, ou seja, já aceitavam a mitigação ao princípio da obrigatoriedade dos contratos (pacta sunt servanda). Estar-se-ia, já neste momento, diante da vetusta cláusula rebus sic stantibus do Direito Canônico, que determina somente ser exigível o contrato se houver semelhança entre as condições econômicas estabelecidas na celebração e na execução, por isso só poderia ser invocada para obrigações diferidas ou de trato sucessivo. Para Maria Sylvia Zanella de Pietro esta cláusula antes de ser uma regra jurídica era um dever moral imposto pelo cristianismo (2011, p. 286).
Mesmo diante do caráter solidarista da referida cláusula, esta ficou esquecida durante o auge do liberalismo, mais precisamente nos séculos XVIII e XIX, pois a idealização de homens livres e iguaispossibilitava que estes exprimissem a sua vontade em paridade, assim “criando lei entre as partes”. Em respeito as suas raízes liberais, o Código Napoleônico praticamente sepultou a cláusula canônica, retomando a concepção fria e literal do pacta sunt servanda.
Com o advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e, também, com o florescer da Revolução Russa (1919), ocorrera o ressurgimento da cláusula rebus sic stantibus, porém com a roupagem de Teoria da Imprevisão. Para Fábio Ulhoa Coelhoa instabilidade vivenciada neste momento histórico, primeira metade do século XX, tornou necessário o surgimento da referida teoria, pois as profundas mudanças econômicas e sociais vivenciadasrecolocaram para a tecnologia jurídica o problema da relativização do princípio pacta sunt servanda (2009, p. 105).
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e os movimentos sociais que fervilhavam na Europa Ocidental, aliado a um redimensionamento das forças geopolíticas mundiais, alteraram sobremaneira a face da economia global, causando forte impacto nos contratos de longo prazo, celebrados antes do grande conflito (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2011, p.311).
A instabilidade, a mutação profunda das condições econômicas, em antítese com o momento histórico precedente, não mais se compatibilizaram com o rigor formalístico prestigiado na concepção napoleônica. Com efeito, a ideia de imutabilidade do pactuado só é convivente com períodos de grande estabilidade. Fora daí, longe de servir à disciplina das relações sociais – como pretende o Direito –, só pode gerar empeço ao eficiente desenvolvimento delas (MELLO, 2009, p. 645).
Foi na França que a Teoria da Imprevisão desenvolveu-se e, ainda sob o calor das batalhas, pode ser aplicada pelo Conselho de Estado, ao proclamar que o Poder Público somente poderia exigir do concessionário o cumprimento do contrato que onerou-se excessivamente em decorrência de circunstâncias novas, se o revisse, adaptando-o às circunstâncias do momento. Porém, a Corte de Cassação mostrara-se relutante em sua aplicação, o que foi solucionado por meio da Lei Falliot de 21 de maio de 1918.
Após isso, a Teoria da Imprevisão rapidamente obteve aceitação jurisprudencial e doutrinária, tanto alhures quanto no Brasil.
3.2. Conceito e elementos de aplicabilidadeda Teoria da Imprevisão
A Teoria da Imprevisão consiste na possibilidade de revisão judicial dos contratos pactuados sob a forma de prestações sucessivas ou execução diferida, desde que acontecimentos ulteriores e independentes da vontade das partes, ou seja, supervenientes, extraordinários e imprevisíveis, tornem extremamente onerosa a relação contratual, visando ajustá-los a estes novos acontecimentos. Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 645), de forma sucinta e clara, traz que “[...] a ocorrência de fatos imprevisíveis, anormais, alheios à ação dos contraentes, e que tornem o contrato ruinoso para uma das partes, acarreta situação que não pode ser suportada unicamente pelo prejudicado”. Outro profundo estudioso do Direito Administrativo, José dosSantos Carvalho Filho, diz que o fundamentoda Teoria da Imprevisão “é o princípio da cláusula rebus sic stantibus, segundo o qual o contrato deve ser cumprido desde que presentes as mesmas condições existentes no cenário dentro do qual o pacto foi ajustado” (2012, p. 210). Por tratar-se de tema afeto ao Direito Civil, faz-se prudente buscar em seus doutrinadores conceituações, nas sucintas palavras Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, a melhor conceituação seria a que vê a teoria da imprevisão como um “[...] substrato teórico que permite rediscutir preceitos contidos em uma relação contratual, em face da ocorrência de acontecimentos novos, imprevisíveis pelas partes e a elas não imputáveis” (2011, p. 312).
Por ela [teoria da imprevisão], nos contratos de execução instantânea diferida ou continuada, se a prestação devida por uma das partes tornar-se excessivamente onerosa em razão de fato superveniente e imprevisível,poderá o juiz, a pedido dela, alterar o conteúdo do acordo para reestabelecer as condições equitativas entre os contratantes (COELHO, 2009, p.105).
A teoria que se desenvolveu com o nome de rebus sic stantibus consiste basicamente em presumir, nos contratos comutativos, de trato sucessivo e de execução diferida, a existência implícita (não expressa) de uma cláusula, pela qual a obrigatoriedade de seu cumprimento pressupõe a inalterabilidade da situação de fato (GONÇALVES, 2007, p. 169) – grifo do autor.
Fábio Ulhoa Coelho faz uma ressalva quanto a ideia propagada pela doutrina de que a teoria da imprevisão aplicar-se-ia unicamente aos contratos comutativos, posto que os contratos aleatórios ou unilaterais também podem experimentar mudanças extraordinárias e imprevisíveis em suas bases econômicas, tornando a obrigação excessivamente onerosa para uma ou ambas as partes (2009, p. 107).
Dos conceitos trazidos pode-se inferir os elementos, ou requisitos, de aplicabilidade da teoria sob estudo, quais sejam: a) a superveniência de circunstância imprevisível – observe que o fato tem que ser posterior a estipulação contratual, bem como imprevisível ao seu tempo e não meramente imprevisto; b) alteração de base econômica objetiva do contrato – esta alteração não pode decorrer de fatos imputados às partes, devendo decorre de evento alheio; c) onerosidade excessiva – é necessário que uma ou ambas as partes experimentem um aumento no gravame econômico da prestação a que se obrigou; e d) não poderá requerer a revisão contratual aquele que, no momento da alteração da circunstância encontrava-se em mora.
4. INEXECUÇÃO DO CONTRATO ADMINISTRATIVO
A inexecução ou inadimplência do contratopode decorrer de culpa ou não de uma das partes e caracteriza-se pelo total ou parcial descumprimento de suas cláusulas. Quando a inexecução for culposa, ou seja, decorrer de ação ou omissão da parte que agir de forma negligente, imprudente ou imperita no cumprimento das cláusulas contratuais, ensejará a aplicação de penalidades legais ou contratuais proporcionalmente a falta cometida pelo inadimplente, não havendo distinção entre o conceito de culpa do Direito Administrativo e o do Direito Civil. Já a inexecução sem culpa, onde está situada a teoria da imprevisão, decorre de atos ou fatos estranhos à conduta das partes, retardando ou impedindo a execução do contrato. Neste caso, não se poderá responsabilizar os contratantes, posto que trata-se de situações excepcionais às quais não deram causa, ocorrendo o que a doutrina convencionou chamar de causa justificadora da inexecução contratual.
Hely Lopes Meirelles põe todas as causas justificadoras da inexecução do contrato como desdobramentos da teoria da imprevisão, pensamento não coadunado no artigo em epígrafe, posto que fatos imprevistos não se enquadram na referida teoria, que abarca, tão somente, os fatos imprevisíveis, como bem observou Fábio Ulhoa Coelho ao afirmar que “a alteração profunda nas condições econômicas deve ser imprevisível, visto que não tem direito à revisão o contratante afetado pela álea normalmente associada ao contrato em questão” (2009, p. 106). Celso de Mello, ao estabelecer os requisitos para a aplicação da teoria, exprime que o evento determinante do prejuízo não pode ser apenas imprevisto, mas sim imprevisível (2009, p. 647).
Quando sobrevêm eventos extraordinários, imprevistos e imprevisíveis, onerosos, retardadores ou impeditivos da execução do contrato, a parte atingida fica liberada dos encargos originários e o ajustado terá que ser revisto ou rescindido, pela aplicação dateoria da imprevisão, provinda da cláusula rebus sic stantibus, nos seus desdobramentos de força maior, caso fortuito, fato do príncipe, fato da Administração, estado de perigo, lesão e interferências imprevistas [...] (MEIRELLES, 2012, p. 248) – grifo acrescido.
Os “desdobramentos” citados pelo douto doutrinador, apesar de constituírem causas justificadoras, não estariam contidos na teoria da imprevisão, sendo causas independentes desta.
4.1. Aplicação da teoria da imprevisão aos contratos administrativos
Mesmo antes da positivação dacláusula rebus sic stantibusno ordenamento jurídico brasileiropara os contratos administrativos, esta já era aplicada pela jurisprudência pátria, sendo amplamente aceita pela doutrina. Porém, já em 1986 surgiu normatização disciplinando a aplicação da teoria da imprevisão para os contratos administrativos, o Decreto-lei nº 2.300/86, que dispunha, em seu art. 55, II, “d”, que os contratos por ele regidos poderiam ser alteradospara restabelecer a relação, que as partes pactuaram inicialmente, entre os encargos do contratado e a retribuição da Administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do inicial equilíbrio econômico e financeiro do contrato.
Com o advento da Constituição da República de 1988 a aplicação dateoria da imprevisão aos contratos administrativos ganhou status constitucional, posto que previsto no art. 37, XXI. No entanto, ainda que disposto na CR/88, ficou excluída da Lei nº 8.666/93, em decorrência de veto do Presidente da República, sendo, entretanto, reestabelecida com o advento da Lei nº 8.883/94, que alterou o art. 65, I, “d” da Lei nº 8.666/93, determinando que os contratos administrativos podem ser alterados para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.
Depreende do dispositivo acima transcrito que nem todo ele diz respeito à teoria da imprevisão, pois que os fatos previsíveis, a força maior, o caso fortuito e o fato do príncipe afastam-se dos requisitos caracterizadores do instituto, como a seguir se passa a expor.
Se o fato que possibilita a alteração do estipulado for previsível, ainda que de consequências incalculáveis,estar-se-ia diante de outra forma de inexecução sem culpa, mas distante da teoria sob estudo. Como já exposto, a imprevisibilidade quanto a ocorrência do fato constitui requisito de aplicabilidade da teoria, não podendo ser prescindido. Pensamento diverso possui Maria Sylvia Zanella Di Pietro ao afirmar que o fato pode ser “imprevisível quanto à sua ocorrência ou quanto às suas consequências” (2011, p. 288), sendo que o fato previsível, mas de consequência incalculável, estaria, ainda assim, incluída nos requisitos para a caracterização do instituto. O Superior Tribunal de Justiça também diverge quanto a aplicação da teoria da imprevisão a fatos previsíveis, porém de consequências incalculáveis.
DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL - LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ - ART. 18 DO CPC - LICITAÇÃO - CONTRATO - CONSTRUÇÃO DE HIDRELÉTRICA - PREJUÍZOS SOFRIDOS PELO LICITANTE DURANTE A EXECUÇÃO DO CONTRATO - INFLAÇÃO - PROPOSTA DO LICITANTE MAL CALCULADA - ÁLEA ORDINÁRIA, QUE NÃO PODE SER ATRIBUÍDA À ADMINISTRAÇÃO - TEORIA DA IMPREVISÃO - NÃO-APLICAÇÃO - DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA.[...]; 6. Não há como imputar as aludidas perdas a fatores imprevisíveis, já que decorrentes de má previsão das autoras, o que constitui álea ordinária não suportável pela Administração e não autorizadora da Teoria da Imprevisão. Caso se permitisse a revisão pretendida, estar-se-ia beneficiando as apeladas em detrimento dos demais licitantes que, agindo com cautela, apresentaram proposta coerente com os ditames do mercado e, talvez por terem incluído essa margem de segurança em suas propostas, não apresentaram valor mais atraente.Recurso especial conhecido em parte e improvido.(REsp 744.446/DF, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/04/2008, DJe 05/05/2008) – grifo acrescido.
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. PLANO REAL. CONVERSÃO EM URV. TEORIA DA IMPREVISÃO. INAPLICABILIDADE AO CASO. [...]; 3. É requisito para a aplicação da teoria da imprevisão, com o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, que o fato seja imprevisível quanto à sua ocorrência ou quanto às suas consequências; estranho à vontade das partes; inevitável e causa de desequilíbrio muito grande no contrato. E conforme entendimento desta Corte, a conversão de Cruzeiros Reais em URVs, determinada em todo o território nacional, já pressupunha a atualização monetária (art. 4º da Lei n. 8.880/94), ausente, portanto, a gravidade do desequilíbrio causado no contrato.4. Recurso especial não provido.(REsp 1129738/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/10/2010, DJe 21/10/2010) – grifo acrescido.
Quantoao caso fortuito ou força maior – cujas buscas a respeito da distinção entre ambos têm causado inúmeras discrepâncias, sendo melhor a conclusão de Sílvio Venosa apud Pablo Stolzee Rodolfo Pamplona, no sentido de não existir interesse prático na distinção (2009, p. 271) –, da sua ocorrência decorre a inexecução absoluta da obrigação, o que impossibilita a revisão contratual e viabiliza, tão somente, a rescisão deste (art. 78, XVII, Lei nº 8.666/93). Já a teoria da imprevisão diz respeito tão somente ao desequilíbrio contratual, que não impede a execução do contrato.
Nesta [força maior] estão presentes os mesmos elementos: fato estranho à vontade das partes, inevitável, imprevisível; a diferença está em que, na teoria da imprevisão, ocorre apenas um desequilíbrio econômico, que não impede a execução do contrato; e na força maior, verifica-se a impossibilidade absoluta de dar prosseguimento ao contrato (DI PIETRO, 2011, p. 288).
Essa distinção foge ao magistério de José dos Santos Carvalho Filho, pois para este, da aplicação da teoria da imprevisão podem decorrer dois efeitos,se a impossibilidade do adimplemento da obrigação contratual for absoluta, dar-se-á a rescisão sem atribuição de culpa. Todavia, sendo ainda de possível execução, porém com excesso de onerosidade para uma ou ambas as partes, surgira o direito à revisão do preço, restabelecendo-se o equilíbrio rompido (2012, p. 210).
O fato do príncipe é toda determinação estatal de natureza geral que, apesar de não estar diretamente relacionada ao contrato, nele repercute, provocando desequilíbrio econômico-financeiro em detrimento do contratado. Percebe-se que o fato decorre da própria Administração, que é parte na avença, o que veda a aplicação da teoria, pois que a alteração nas bases contratuais não pode decorrer de fato imputado às partes.
Pelo agora exposto, fica evidenciado que é possível a aplicação da teoria da imprevisão aos contratos administrativos, ainda que existam divergências quanto a sua abrangência.
CONCLUSÃO
A aplicação da teoria da imprevisão independe da natureza do contrato, pública ou privada, sendo uma exigência da visão silidarista que fundamenta o ordenamento jurídico brasileiro, posto que os negócios jurídicos não podem ser vistos, unicamente, como ferramentas de realização de interesses pessoais. Se assim não fosse, perderia o sentido de existir do art. 421, CC, que dispõe sobre a função social do contrato. A circulação de riquezas que deles decorrem, por obvio, beneficia os contratantes, mas não só estes, posto que toda a coletividade, ainda que indiretamente, sofre os seus efeitos positivos e negativos.
Se para o particular é exigido o respeito a função social do contrato, imagine-se para a Administração, que atua visando o interesse coletivo,sendo evidente que foge ao interesse coletivo que a Administração fique impossibilitada de rever um negócio jurídico que, para ela, se onerou excessivamente, bem como que sociedades empresárias, que são a regra quando trata-se de particular contratando com a Administração, venham a sofrer demasiada redução de capitais e, até mesmo, a falir, causando efeitos desastrosos tanto para a economia nacional quanto para as taxas de desemprego.
Ressalte-se, ainda, que a garantia de certa estabilidade econômico-financeira serve como atrativo a capitais e dá segurança a investimentos, o que acaba por aumentar a competitividade, pois haverá maior interesse em participar de licitações e posteriores contratações, auxiliando a busca por melhores propostas.
O princípio da obrigatoriedade dos contratos tem sua valia, porém não se deve permitir que esta obrigatoriedade possa levar indivíduos à miserabilidade, empresas a falências e nem a Administração a gastos excessivos.
REFERÊNCIA
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 25. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: contratos.v. 3. 3. ed.São Paulo: Saraiva, 2009.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2011.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: obrigações. v. 2. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
____________. Novo curso de direito civil: contratos : teoria geral. v. 4. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Décio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 38. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
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TORRES NETO, José Lourenço. Imprevisão - uma teoria prática na socialização dos contratos.Jurisway. Disponível em: <http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=237>. Acesso em: 03 Nov. 2012.
Advogado e pós-graduando em Direito Tributário pela Universidade Tiradentes (UNIT).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Alysson José de Andrade. Aplicação da Teoria da Imprevisão aos Contratos Administrativos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jan 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33548/aplicacao-da-teoria-da-imprevisao-aos-contratos-administrativos. Acesso em: 23 dez 2024.
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