Resumo: As Agências Reguladoras foram implantadas na Administração Pública para o fim de garantir e regular as atividades tituladas pela Administração Pública, porém trespassadas à iniciativa privada, mediante a concessão, permissão e autorização. Tais órgãos caracterizam-se pelo regime autárquico especial, porquanto dotadas de autonomia administrativa, financeira e funcional, além do mandato fixo de seus dirigentes. O presente trabalho dedica-se em especial sobre a autonomia funcional, identificada a partir do reconhecimento de competências privativas das agências, que impedem a interferência política da Administração Central. Conclui pelo reconhecimento da inexistência de recurso hierárquico impróprio, em face de decisões adotadas no âmbito de suas competências regulatórias, que impede a revisão das decisões das agências reguladoras, na seara administrativa.
PALAVRAS-CHAVE: agência reguladora – autonomia - recurso administrativo.
Title: The non suitability of the administrative appeal for the regulatory agency decisions.
ABSTRACT: The Regulatory Agencies were established in the Public Administration to ensure and regulate activities held by the Estate, but transferred to the private sector, by means of concession, permission or authorization. Such organs are characterized by special autarchic regime, in view of their administrative, financial and functional independence, in addition to the fixed term command of their leaders. This work is dedicated in particular to the functional autonomy, identified from the recognition of private competences of the agencies that prevent political interference from Central Administration. Thus, we conclude by recognizing the absence of improper administrative appeal against decisions that were made within their regulatory powers, which prevents the review of decisions of regulatory agencies, in the administrative harvest.
KEY WORDS: Regulatory Agency – independence – administrative appeal.
INTRODUÇÃO
Com a afirmação do Estado Social, em substituição ao Estado Liberal, ampliou-se de forma significativa o dirigismo estatal em determinados setores da economia, considerados essenciais para o desenvolvimento e manutenção da dignidade da pessoa humana e/ou para a realização dos próprios fins do Estado. Assim, as atividades em que se fundam passaram ao status de serviços públicos.
Dada a sua importância para a coletividade, no ordenamento pátrio a sua criação (eleição, mais propriamente) se dá por lei, ou norma de hierarquia superior, pois corresponde a uma opção do Estado, que assume a titularidade da atividade, para regular e garantir a sua prestação de forma adequada. Bem por isso, insuscetível de ficar a cargo exclusivo da iniciativa privada. Esta só a executa mediante outorga do poder concedente.
No entanto, em face de suas limitações (de recursos materiais e humanos), o Estado Brasileiro se viu obrigado a atrair o setor privado para colaborar na prestação dos serviços públicos. E o fez a partir da descentralização, conferindo aos particulares o exercício dessas atividades por meio da concessão, permissão e autorização, mantendo-se como titular do serviço, ex-vi art. 21, da Constituição Federal de 1988.
Na reorganização do Estado, e no bojo da descentralização dos serviços qualificados como “públicos”, surgiram as Agências Reguladoras, cujo modelo foi inspirado no Direito Americano, conforme destaca Maria Sylvia Zanella di Pietro[1].
Embora as universidades brasileiras sempre foram caracterizadas pela autonomia que gozam dentro da esfera federal, a qualificação de agência reguladora veio à voga com a criação das agências ANP (Agência Nacional do Petróleo), Lei nº 9.478/97, e da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) , por meio da Lei nº 9.427/96. Nesses dois estatutos, assim como nos que os seguiram, ficou expressa a natureza de autarquia especial, caracterizada pela independência orçamentária, administrativa e financeira, distanciando-se das demais entes autárquicos que integram a máquina administrativa.
Desse modo, cabe destacar que a inserção das agências reguladoras, na estrutura do Estado, veio com o encargo de fiscalizar a prestação dos serviços públicos delegados à iniciativa privada, com o fim de assegurar a sua prestação, de modo adequado. Significa dizer, observando os princípios da universalidade, segurança, continuidade, regularidade, eficiência e modicidade tarifária.
Destarte, tem o presente trabalho a finalidade de analisar a inserção desse ente administrativo na estrutura do Estado, e sua autonomia no âmbito federal, notadamente pela intervenção dos entes políticos e do cabimento de recurso na seara administrativa, em face das decisões de matéria integrantes do objeto regulado. Nesse particular, o exame se dá a partir de “leading case”, consubstanciado na disputa entre a Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ e o Ministério dos Transportes, em disputa pela definição da legalidade de cobranças de tarifas nos portos organizados.
Para além disso, serão analisadas as orientações doutrinárias sobre o assunto, acerca da efetividade da atuação de tais órgãos, bem como a jurisprudência que vem predominando na seara. Tal confronto de informações é de suma importância para demonstrar se a prática das agências se coaduna ou não com os fins para os quais foram criadas.
2. Agências reguladoras: conceito e características essenciais
Em regra, as leis de criação das agências reguladoras federais, particularizadas nesse trabalho, expressam tais entidades como sendo autarquias sob regime especial, assim, integrantes da chamada “administração indireta”.
Em função desse regime autárquico especial, gozam de independência administrativa, autonomia financeira e funcional, com mandato fixo de seus dirigentes. Não se subordinam a nenhum outro órgão da administração pública; encontram-se apenas vinculadas ao ministério da respectiva área finalística de atuação.
No caso da Agência Nacional de Transportes Aquaviários –ANTAQ, por exemplo, a Lei nº 10.233/2001, art. 21, estabelece que a agência é integrante da administração federal indireta, submetida ao regime autárquico especial e vinculada ao Ministério dos Transportes, que detém ascendência política sobre o transporte aquaviário, e à Secretaria Especial de Portos, com ascendência sobre a exploração dos portos brasileiros[2]. No § 2º, do referido artigo, o legislador esclarece que o regime autárquico especial é caracterizado pela independência administrativa, autonomia financeira e funcional e mandato fixo de seus dirigentes.
A propósito do assunto, cabe verificar que o Decreto-lei nº 200/67 define autarquia como “serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da administração pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada” (art. 5º, I).
Sabido e consabido, autarquias como pessoas jurídicas de direito público, ex-vi art. 41, IV, do Código Civil. Significa, portanto, submetidas às mesmas prerrogativas e sujeições próprias do regime jurídico ocorrente na administração pública. Diferentemente das pessoas jurídicas de direito privado, cuja existência se dá a partir da inscrição e registo em estabelecimentos próprios (juntas comerciais), para as autarquias a criação decorre sempre da lei (descentralização legal).
Nesse sentido, Marçal Justen Filho assevera que agência reguladora pode ser conceituada como:
autarquia especial, criada por lei para intervenção estatal no domínio econômico, dotada de competência para regulação de setor específico, inclusive com poderes de natureza regulamentar e para arbitramento de conflitos entre particulares, e sujeita a regime jurídico que assegure sua autonomia em face da Administração Direta[3].
Segundo a doutrina de Maria Sylvia Zanella di Pietro, o regime especial que caracteriza as agências reguladoras, de modo mais ou menos uniforme, incide sobre “à maior autonomia em relação à Administração Direta; à estabilidade de sus dirigentes, garantida pelo exercício de mandato fixo, que eles somente podem perder nas hipóteses expressamente previstas, afastadas a possibilidade de exoneração ad nutum; ao caráter final das suas decisões, que não são passíveis de apreciação por outros órgãos ou entidades da Administração Pública”[4].
Observando as leis instituidoras das agências reguladoras federais, conclui-se que tais entes apresentam como características básicas: exercício do poder normativo, atividade fiscalizadora, poder de polícia, atividade sancionatória, caráter técnico e finalístico de suas decisões, não sujeitas ao poder revisional na seara administrativa.
A propósito, Alexandre Santos de Aragão sustenta que tais entidades têm sido criadas como autarquias em regime especial, pois necessitam de considerável autonomia frente à Administração centralizada, por estarem incumbidas do exercício de função regulatória e dirigidas por colegiado cujos membros são nomeados por prazo determinado pelo Presidente da República, após prévia aprovação pelo Senado Federal.[5]
Nesse sentido, em referência ao regime especial que confere maior autonomia as agências reguladoras, podem-se destacar: a) a nomeação de agentes administrativos para o exercício de mandatos fixos, sem possibilidade de demissão ad nutum; b) caráter técnico das decisões, garantido pelo distanciamento dos órgãos meramente políticos do Estado; c) o poder normativo que exercem; d) a autonomia gerencial, financeira e orçamentária.
Cabe, portanto, conceituar agência reguladora como autarquia de regime especial, dotada de reforçada autonomia frente à Administração Direta, incumbida de funções regulatórias e dirigidas por colegiado cujos membros são nomeados por prazo determinado pelo Presidente da República, após prévia aprovação pelo Senado Federal, vedada a exoneração ad nutum[6].
A autonomia financeira é representada pela capacidade de elaborar proposta para o seu orçamento, de conformidade com as necessidades de viabilização de sua missão legal, submetendo-o ao respectivo ministério, para inclusão no orçamento da União, de conformidade com o previsto no art. 165, I, da Constituição Federal. Também, pela arrecadação das taxas regulatórias, provenientes da fiscalização da prestação de serviços e de exploração de outorgas concedidas por cada agência; ainda, do produto das arrecadações de cada Agência, decorrentes da cobrança de emolumentos e multas aplicadas no exercício do poder de polícia.
Sérgio Guerra afirma que a autonomia financeira e orçamentária das agências está assegurada em suas leis instituidoras. Ademais:
têm como principal receita as denominadas taxas de fiscalização ou regulação pagas por aqueles que exercem as respectivas atividades econômicas reguladas, fazendo com que inexista dependência de recursos do orçamento do Tesouro.[7]
Tal autonomia financeira, porém, encontra-se comprometida, notadamente pelos sucessivos “contingenciamentos orçamentários” implementados pelo Executivo Federal, com vistas a garantir superávits primários, o que tem gerado impactos negativos no cumprimento dos encargos legais conferidos às agências. Evidencia-se, portanto, como técnica de controle político das agências, meio transverso de violar a garantia legal de independência orçamentária.
O que se verifica, na prática, é que a aventada independência financeira não é efetiva, mas mera intenção do legislador. As agências são dependentes, sim, de recursos orçamentários, e têm sofrido as mesmas restrições de outros órgãos públicos no que concerne a sua execução, sobretudo em relação ao malfadado contingenciamento.
Para Floriano de Azevedo Marques, tal autonomia interditaria “contingenciamentos ou cortes orçamentários que sejam feitos para atender a objetivos de política monetária ou fiscal”.[8] Nas palavras de Marçal Justen Filho “a dependência de recursos orçamentários acarreta redução da margem de liberdade nas escolhas e decisões”.[9]
A autonomia administrativa diz respeito a um dos aspectos mais citados para caracterizar a autonomia das agências reguladoras: o exercício de mandatos pelos seus dirigentes. A indicação será feita pelo Chefe do Poder Executivo e o candidato deverá ser aprovado pelo Senado Federal
Alexandre Santos de Aragão[10] aduz que a constitucionalidade da previsão de mandatos para dirigentes de autarquias, restou sufragada pelo Supremo Tribunal Federal com o julgamento da Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1949-0[11].
Sem dúvida, a necessidade de aprovação pelo Senado dos diretores indicados pelo Poder Executivo e a impossibilidade de exoneração ad nutum são garantias importantes para assegurar uma razoável autonomia ao ente regulador
Decerto a existência de mandato fixo torna as agências menos suscetíveis de ingerência do poder central, dado que os seus dirigentes não poderão ser demitidos ad nutum, mas somente pelas situações previstas em lei. Portanto, gozam de maior estabilidade e independência no exercício de sua função.
Autonomia funcional à impossibilidade de revisão hierárquica das deliberações tomadas pela Diretoria das agências reguladoras (vale ressaltar que, nestes órgãos, as decisões são sempre colegiadas[12]). Suas decisões são, portanto, definitivas na seara administrativa.
Todavia, por tratar-se do tema central da presente análise, o assunto será desenvolvido no tópico seguinte.
3. Do (in)cabimento de recurso hierárquico das decisões das agências reguladoras
Conforme já destacado, a autonomia funcional das agências reguladoras diz respeito à delegação legal imprimida pelo legislador ordinário, com a sanção do Poder Executivo Federal, colocando a atuação do órgão delegado numa posição de instância administrativa final, no âmbito do objeto de regulação, implicando na inexistência de vínculo hierárquico na matéria finalística da agência em face da Administração Direta. Quer dizer, as decisões tomadas pelas agências reguladoras, dentro de sua esfera de atuação, não estão sujeitas a ato revisional por outro órgão da administração pública. De modo mais explícito, não cabe recurso hierárquico das decisões adotadas pelas agências no âmbito do seu objeto de atuação finalística definida em lei.
No caso da Agência Nacional de Transportes Aquaviários – Antaq, sua esfera de atuação encontra-se definida no art.23, da Lei nº 10.233/2001, que estabelece como objeto regulado: (i) a navegação fluvial, lacustre, de travessia, de apoio marítimo, de apoio portuário, de cabotagem e de longo curso; (ii) portos organizados e terminais portuários de uso privado do art. 8º, da MP 595/2012; (iii) o transporte aquaviário de cargas especiais e perigosas e a exploração de infraestrutura aquaviária federal.
Em face do regime autárquico especial de que goza, o Decreto nº 4.122/2002, que aprova o regulamento da Agência, estabelece que “à Diretoria da ANTAQ compete, em regime de colegiado, analisar, discutir e decidir, em instância administrativa final, as matérias de competência da Autarquia” (art. 11). A Presidência da República, no exercício de seu poder regulamentar reconhece na Agência a instância administrativa final.
Assim, em face da delegação legal, pode-se afirmar que as decisões da Agência, compreendidas na sua esfera de atuação, não se encontram sujeitas à recurso hierárquico, próprio ou impróprio, dada a inexistência de órgão de revisão na seara administrativa. Repita-se, a instância final encerra-se na própria Agência, em que pese a inserção da entidade na estrutura organizacional do próprio Estado.
Tal aspecto restou suficiente para o surgimento de corrente doutrinária sustentando a impropriedade acerca da inexistência de recurso em face das decisões das Agências Reguladoras, senão por admitir a existência de órgão paralelo ao próprio Estado, insuscetível da tutela revisional, o que seria absurdo, dada a conformação politico-constitucional conferida pela Carta Magna.
Em face das funções das agências, argumentam ainda sobre a competência do Presidente da República de direção superior da administração federal (art. 84, VI), o que restaria afastado por transverso, com o status conferido a tais entidades.
Acerca do tema, sustenta Diogo de Figueiredo Moreira Neto que sequer se pode invocar o princípio da separação dos poderes na forma estabelecida pela Constituição Federal como argumento para a invalidade da formação das agências reguladoras, e acrescenta in verbis:
Primo, porque nenhum dos três conjuntos tradicionais de poderes orgânicos ( os Poderes de Estado Tradicionais) desempenha apenas uma dessas funções, mas uma combinação delas, tudo conforme a fórmula de independência politicamente adotada.
Secundo, porque proliferam nos Estados contemporâneos inúmeros órgãos que não se incluem em qualquer dos três conjuntos de poderes clássicos, desempenhando, com independência política, uma vasta gama de atribuições setoriais importantes, como o caso dos bancos centrais e dos tribunais constitucionais em vários países, e no Brasil dos órgãos encarregados do exercício de funções essenciais à justiça (Ministério Público, Advocacia Pública e Defensoria Pública), e, ainda, dos Tribunais de Contas.
Tertio, porque novas funções são continuadamente definidas e cometidas ao Estado, independentemente das divisões e subdivisões orgânicas tradicionais, mas com a predominante preocupação da eficiência do seu desempenho, hoje, um princípio constitucional a ser observado. Tal é o caso de inúmeras e modernas funções derivadas dos atualíssimos princípios da consensualidade, da participação e da subsidiariedade, dentre as quais se encontra a função reguladora de atividades sensíveis críticas setoriais, aqui em estudo”[13]
No regime de formação das agências reguladoras, pode-se afirmar que a inexistência de recurso hierárquico é decorrência direta da autonomia reforçada de que gozam tais órgãos, cuja violação compromete a sua utilidade e razão de existência. Não pode ser relegado ao status de mais um órgão na estrutura tradicional, sujeita às interferências políticas próprias do sistema tradicional.
Nesse sentido, Alexandre Santos de Aragão sustenta “a atribuição de autonomia à agência pressupõe a existência de competências privativas. Se determinados assuntos forem de competência comum à agência e outro ente, ao qual incumbe escolher se e quando exercitará seus poderes, não existirá uma agência reguladora independente. Nessa hipótese, a outra entidade imporá à agência um vínculo prejudicial ao exercício de suas competências. Portanto, um pressuposto essencial para a configuração de uma entidade autônoma consiste na existência de competências exclusivas, determinadas legislativamente, de modo a excluir o poder jurídico ou político de outro órgão para determinar as hipóteses em que caberá sua atuação”[14]
Portanto, a independência funcional que qualifica o regime autárquico especial das agências reguladoras pressupõe a inexistência de ingerência hierárquica da Administração Central (dos ministros de Estado ou do próprio presidente da República) sobre os seus atos decisórios, não se podendo aventar na hipótese de qualquer tutela na atividade finalística, do qual é espécie o chamado “recurso hierárquico impróprio” utilizado sempre que se propõe o exercício revisional de atos para os quais não se estabeleceu previamente sua existência.
Ainda segundo Alexandre Santos de Aragão “é de relevância a questão das decisões das agências reguladoras sujeitarem-se ou não a recursos hierárquicos impróprios, isto é, de serem passíveis de revisão pela Administração Central, seja pelo Conselho de políticas públicas do setor, pelo Ministro competente ou pelo Presidente da República. Examinando o Direito positivo de pronto podemos afirmar que nenhuma lei prevê a existência de recurso administrativo hierárquico impróprio contra as decisões das agências reguladoras, o que por si só bastaria para eliminar tal possibilidade em razão da vetusta doutrina do pas de tutelle sans texte, pas de tutelle au-delà du texte, decorrente da personificação jurídica das entidades da Administração Indireta, que não são meros órgãos despersonalizados – partes integrantes do corpo do Este estatal”[15]
Observe-se, pois, que somente haverá independência funcional da agência reguladora se, e somente se, os atos por ela praticados não estiverem subordinados à ratificação ou revisão de outra autoridade administrativa. É na inexistência de interferência de outros entes administrativos em que se funda o regime autárquico especial, que não teria qualquer significado caso inobservado na atuação desses entes especiais.
A propósito do assunto, Marçal Justen Filho assevera, in verbis:
É evidente que não existirá uma agência independente quando os atos por ela praticados estiverem subordinados à ratificação ou revisão de outra autoridade administrativa. Ainda que a expressão ‘autarquia especial’ comporte inúmeros significados, um núcleo fundamental consiste na ausência de submissão da entidade, no exercício de suas competências à interferência de outros entes administrativos. A produção dos atos de competência da autarquia não depende de aprovação prévia ou posterior da Administração Direta, tal como não se verifica uma competência de revisão desses atos. Como ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro, as agências reguladoras ‘como autarquia que são, estão sujeitas à tutela ou controle administrativo exercido pelo Ministério a que se acham vinculadas. Todavia, como autarquias de regime especial, seus atos não podem ser revistos ou alterados pelo Poder Executivo’”[16].
Acerca da pretensão da Administração Central de tutelar as agências reguladoras, mediante o exercício de poder revisional sobre decisões por estas adotadas, cabe notar que o conflito surgiu logo na origem da instituição das autarquias qualificadas pelo regime especial.
Na primeira metade da década passada, pode-se apontar o conflito entre a ANATEL, que tomou a decisão de reajustar os contratos de concessão sem a (desnecessária) aprovação do Ministro das Comunicações e com o desconhecimento do Presidente da República. O mesmo ocorreu em relação ao reajuste das tarifas de energia elétrica.
Tal embate foi significativo para despertar a sociedade sobre a utilidade de criação dos órgãos. Esse momento foi um “divisor de águas” nas relações entre as agências e as pastas a que se vinculam, tanto assim que motivou o Executivo Federal na elaboração do Projeto de Lei nº 3337/2004.
Todavia, o leading case consubstancia-se na disputa ocorrida entre a Agência Nacional de Transportes Aquaviários e o Ministério dos Transportes, envolvendo a cobrança de preço no Porto Organizado de Salvador/BA, relacionada à movimentação de contêineres, valor este denominado THC2 – tradução do termo Terminal handing Charge.
Nos autos do processo administrativo de nº 50300.000022/2002, que tramitou na ANTAQ, a Diretoria colegiada da Agência decidiu pela ilegalidade do valor cobrado no porto de Salvador, determinando providências à Companhia Docas da Bahia, CODEBA, no sentido de sustar a cobrança do valor, considerado ilegal. Na decisão, restou consignado o poder de supervisão e fiscalização da ANTAQ, no âmbito das atividades desenvolvidas pelas autoridades portuárias, ex-vi art. 51-A, da Lei nº 10.233/2001.
Inobstante, o Ministério dos Transportes decidiu conhecer do recurso administrativo impróprio, interposto pelo interessado, em violação à independência estabelecida na criação da Agência. Por ato praticado pelo Ministro dos Transportes, com a aprovação do Parecer da Consultoria Jurídica daquele Ministério, Parecer de nº 244/2005, cassou-se a decisão do colegiado da ANTAQ.
Notificada acerca da decisão, a Diretoria Colegiada da ANTAQ reconheceu a incompetência do Ministério dos Transportes para rever o ato por ela anteriormente adotado, em face das competências legais conferidas pela Lei nº 10.233/2001. Na espécie, destacou que as decisões da diretoria da ANTAQ não estão sujeitas a recurso administrativo hierárquico impróprio para qualquer outro órgão ou autoridade da Administração Central. Assim, assinalou o Ente Regulador que a decisão ministerial invadia a sua competência privativa e atentava contra o princípio da legalidade, uma vez que a lei de regência não prevê a admissão de recurso hierárquico impróprio de suas decisões.
Diante da controvérsia instalada, a matéria foi submetida à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal – CCAF, resultando na edição do parecer normativo da Advocacia Geral da União, PARECER AGU nº AC – 51, de 12 de junho de 2006, aprovado pelo Presidente da República em despacho de 13/6/2006, para os efeitos do art. 40, § 1º, da Lei Complementar nº 73/93.
No indigitado Parecer, firmou-se o entendimento no sentido de que seria cabível o recurso hierárquico impróprio somente quando a decisão da diretoria da agência desbordasse os limites de suas competências legais, ou invadisse o âmbito da definição de políticas públicas, uma atribuição dos Ministérios.[17]
Dada a relevância do caso para a presente análise, transcrevem-se os trechos principais do Parecer AGU AC-51. Veja:
68. No caso concreto posto à apreciação da AGU, a ANTAQ deliberou que a cobrança da taxa denominada THC2 pelos operadores portuários do Porto de Salvador constitui indício de exploração abusiva de posição dominante no mercado, motivo pelo qual encaminhou a questão ao conhecimento do CADE.
69. Ocorre que essa decisão não invade nenhuma prerrogativa de formulação de política para o setor portuário, cuja competência estaria realmente afeta à Administração direta, nos termos do artigo 20, inciso I da Lei nº 10.233/2001, mas, isto sim, está incluída nas competências conferidas expressamente à ANTAQ no artigo 27, incisos II, IV e XIV da mesma Lei, dentro de sua área de atuação regulatória. Diante disso, mostra-se ausente, excepcionalmente, a possibilidade de revisão ministerial da decisão da agência, e o recurso hierárquico impróprio interposto pela empresa ... não poderia ser provido para os fins pretendidos pela recorrente, devendo ser mantida a decisão adotada pela ANTAQ, porque afeta à área de competência finalística da agência reguladora, autarquia constituída sob regime especial, conforme visto no tópico anterior
70. Diante dessa constatação, infere-se ainda que todos os argumentos de forma ou de mérito apresentados pela empresa (...) em seu recurso hierárquico impróprio não podem ser apreciados pela Administração direta, porque já analisados pela ANTAQ, que, como visto, possuía competência para decidir a questão em última instância administrativa, não se podendo, de qualquer forma, aceitar os argumentos apresentados referentes a eventual violação às garantias constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa da interessada, porque dois -recursos- apresentados pela empresa foram sucessivamente apreciados pela ANTAQ e desprovidos, não havendo nenhum dispositivo na Constituição ou em lei que lhe assegure o direito de revisão, no caso, da decisão da ANTAQ pelo Ministério dos Transportes, conforme amplamente fundamentado precedentemente.
Assim, consignou-se na ementa do referido Parecer (i) que estão sujeitas à revisão ministerial, de ofício ou por provocação dos interessados, inclusive pela apresentação de recurso hierárquico impróprio, as decisões das agências reguladoras referentes às suas atividades administrativas ou que ultrapassem os limites de suas competências materiais definidas em lei ou regulamento, ou ainda violem as políticas públicas definidas para o setor regulado pela Administração Direta; (ii) Excepcionalmente, por ausente o instrumento da revisão administrativa ministerial, não pode ser provido recurso hierárquico impróprio dirigido aos Ministérios supervisores contra as decisões das agências reguladoras adotadas finalisticamente no estrito âmbito de suas competências regulatórias previstas em lei e que estejam adequadas às políticas públicas definidas para o setor.
Confere, portanto, sentido para o caráter especial dessas autarquias especiais, diante do reconhecimento da definitividade das decisões das agências reguladoras, adotadas no âmbito de suas competências regulatórias previstas em lei. Por outro lado, adverte sobre situações em que a própria agência afasta-se de suas competências legais, para decidir sobre matérias não afetas às suas competências, ou cujas decisões violem de qualquer modo as políticas públicas definidas para o setor, próprias da supervisão exercidas pelo Ministério de ascendência (vinculação).
De fato, entendimento diverso poderia conduzir-se ao absurdo, admitindo-se a existência de uma espécie de “Estado paralelo”, desbordando dos princípios insculpidos na própria Constituição Federal/88. Porém, em nada afeta a indigitada independência funcional, dado que a conclusão não discreta do entendimento acerca da supremacia das decisões do ente regular, quando adotadas no âmbito de suas competências regulatórias, e em observância das políticas traçadas para o setor regulado.
Num segundo momento, pode-se também admitir a mitigação da independência funcional, notadamente pela interferência do Tribunal de Contas da União, quando a atuação da agência reguladora afastar-se dos objetivos definidos em lei, ou atuar mediante desvio de poder. É o que se deflui do disposto no art. 71, da Constituição Federal, quando estabelece o controle externo incidente sobre a Administração Direta e Indireta, em auxílio ao Tribunal de Contas da União.
Assim, há de se afirmar que a independência reforçada conferida às agências reguladoras não significa um salvo conduto para sua atuação. Pelo contrário, estarão sujeitas ao controle interno e externo, sempre que seus atos encontrarem-se apartados de suas competências legais, ou quando violarem as políticas públicas estabelecidas pela Administração Central, ou atuarem com desvio de poder.
Destarte, há de se reconhecer na independência funcional o traço mais relevante das agências reguladoras, e é decorrente diretamente do reconhecimento da inexistência de recurso hierárquico impróprio, a partir do reconhecimento de campo próprio de atuação, assinalado reconhecimento de competências privativas, sem as quais não haveria qualquer sentido para a criação da espécie.
CONCLUSÃO
Na reestruturação do Estado Brasileiro promovida após a promulgação da Constituição Federal/88, a inovação mais significativa veio com o recrudescimento da delegação dos chamados “serviços públicos” para a iniciativa privada, mediante a concessão, permissão e autorização.
Na esteira dessa reforma administrativa, exsurge para a Administração Central a necessidade de criação de novos entes públicos, especializados para a supervisão e fiscalização dos serviços delegados. Assim, o legislador pátrio buscou no Direito Americano inspiração para a criação das agências reguladoras.
Tais entes restam caracterizados pelo regime autárquico especial que ostentam, gozando de independência administrativa, autonomia financeira e funcional, com mandato fixo de seus dirigentes.
Não se subordinam hierarquicamente a nenhum outro órgão da administração pública; encontram-se apenas vinculadas ao ministério da respectiva área finalística de atuação. Mostram, portanto, maior autonomia que as autarquias comuns.
Nem por isso significa que não se sujeitam aos mecanismos de controle, interno e externo, conforme exposto no trabalho acima.
Particularmente em relação à autonomia funcional – autonomia reforçada – das agências reguladoras, reconhece-se na delegação legal imprimida pelo legislador ordinário situação peculiar desses entes na administração pública, situando-os numa posição de instância administrativa final, no âmbito do objeto de regulação, significativo para determinar a inexistência de vínculo hierárquico na matéria finalística da agência, em face da Administração Direta.
Quer dizer, as decisões tomadas pelas agências reguladoras, dentro de sua esfera de atuação, não estão sujeitas a ato revisional por outro órgão da administração pública. De modo mais explícito, não cabe recurso hierárquico, próprio ou impróprio, das decisões adotadas pelas agências no âmbito do seu objeto de atuação finalística definida em lei.
[1] Direito Administrativo. 14ª ed., São Paulo: SARAIVA, 2002, pág. 398.
[2] Organização decorrente da novel legislação (Medida Provisória nº 595, de 6 de dezembro de 2012)
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002. p. 344.
[4] Direito Administrativo. 14ª ed., São Paulo: SARAIVA, 2002, pág. 404.
[5] Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: FORENSE, 2002, pág. 275.
[6] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: FORENSE, 2002, pág. 275.
[7] GUERRA, Sérgio. Agências Reguladoras e supervisão ministerial. p. 485. In: ARAGÃO, Alexandre (coord.). O poder normativo das agências reguladoras, Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 477-507.
[8] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências reguladoras independentes, Fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005. p. 76.
[9] JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002. p. 476.
[10] ARAGÃO, Alexandre. Agências reguladoras: algumas perplexidades e desmitificações. p. 8. In: Revista IOB de Direito Administrativo, nº 8, agosto/2006. p. 07-19.
[11] Essa Medida Cautelar em ADIn, relatada pelo Ministro Sepúlveda Pertence e julgada em 18/11/99 (publicada no DJ de 25/11/2005), analisava a constitucionalidade de lei do Estado do Rio Grande do Sul que criava a Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul – AGERGS. Neste julgado, o STF entendeu que a demissão ad nutum seria incompatível com o exercício de mandato. Uma vez no exercício do mandato, o dirigente só poderia ser exonerado por justa causa.
[12] Art. 67. As decisões das Diretorias serão tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros, cabendo ao Diretor-Geral o voto de qualidade, e serão registradas em atas (Lei nº 10.233/2001)
[13] Direito Regulatório. Rio de Janeiro: RENOVAR, 2003, págs. 152-153.
[14] Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: FORENSE, 2002, págs. 274.
[15] Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: FORENSE, 2002, pág. 346.
[16] O Direito das Agências Reguladoras. São Paulo: DIALÉTICA, 2002, pág. 391.
[17] Sobre a possibilidade de interposição de recurso hierárquico impróprio contra decisões de agências reguladoras, v. GUERRA, Sérgio. Agências Reguladoras e supervisão ministerial. In: ARAGÃO, Alexandre (coord.). O poder normativo das agências reguladoras, Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 477-507.
Procurador Federal em exercício na Procuradoria da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ). Com pós-graduação em Direito Processual Civil pela UNISUL.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Carlos Afonso Rodrigues. Do incabimento de recurso hierárquico impróprio das decisões das agências reguladoras Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 fev 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33750/do-incabimento-de-recurso-hierarquico-improprio-das-decisoes-das-agencias-reguladoras. Acesso em: 26 dez 2024.
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