Na visão contemporânea pósmoderna, a admissão de que o império da verdade, da objetividade e de todos os entes que integram a nossa arquitetura intelectiva, como sejam: o bem, o mal, o belo, o justo, o feio em sua noção genérica, que por sua vez se desdobram na definição de categorias como indigno, hediondo, desumano, reprovável, perverso, abjeto, desleal, etc., esteja esvaziado de sentido, traz implicações tenebrosas.
A extinção do reino da objetividade na implantação do relativismo pósmoderno, circunstância em que todas as balizas que nos orientam na identificação dos valores e nas eleições das condutas comportamentais venham a cair por terra, custará à humanidade um dano de dimensão apocalíptica. Supor que a ruptura introduzida na história da cultura humana pela modernidade, anunciada pela disposição catalítica em esvaziar de significado os valores absolutos, referências pelas quais podemos aferir o nosso grau de aperfeiçoamento moral, tenha sido um ganho em prol de nossa emancipação com vista a uma liberdade plena, é um equívoco que talvez esteja a prenunciar a decadência ocidental em seus estertores últimos.
O princípio da incerteza aplicado na dinâmica do universo sociointerativo que compreende o homem em sua realidade existencial, professado por algumas correntes de pensamento filosófico, negando qualquer sentido profícuo no esforço humano de estabelecer parâmetros com vista a criar um modelo de projeto civilizatório que nos faça apostar com fé na possibilidade de um mundo futuro mais bonito e justo, não tem consistência.
A partir de Nietzsche observa-se uma tendência, no mundo intelectual, de desconsiderar tudo o que já é uma conquista civilizacional de afirmação do ser humano, em suas possibilidades transcendentais, conferindo sentido não só a sua existência como ao cosmo em geral. Querem fazer uma fogueira de tudo o que já se conseguiu até aqui em termos de nossa promoção ontológica, compreendendo todo empenho investido no curso da história, para nos superarmos em avanços qualitativos distanciando-nos do hominídeo, quase macaco, que outrora fomos. O entendimento de que o patrimônio civilizacional capitalizado na urdidura de todos os valores que até então nos possibilitaram um mundo possível de planejamento, prenhe de sentido, com um horizonte de segurança, certeza e um norte, esteja necessariamente fadado a sucumbir no buraco negro do relativismo pósmoderno e liquefazer-se em toda sua estrutura política, moral, ética e econômica é insustentável filosoficamente. O homem sendo um ser criativo e de fértil imaginação não se resignará a ser um joguete à mercê dos caprichos do destino sem lutar com todas as forças do espírito e disposição para a ação numa atitude afirmativa de sua dignidade ontológica.
Imaginemos uma situação em que alguém ofereça a outrem um pires com um conteúdo fecal a guisa de sobremesa. A pessoa objeto de tal mesura, sentindo-se ofendida, promete protestar em juízo. Ora, a estar valendo o entendimento pósmoderno, quando todas as instâncias que poderiam nos remeter a uma legítima e confiável identificação da realidade em foco não fazem mais sentido, como sejam; razão, objetividade, verdade, maldade, justiça, universalidade etc, a possibilidade de que o ajuizamento desta questão venha a definir-se será nenhuma, uma vez que, ausente os valores morais, as categorias de verdade, universalidade e objetividade..., a questão ficaria pairando no limbo das interpretações flutuantes, oscilando numa disposição binária entre o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, a maldade e a bondade, a razão e a desrazão indefinidamente. Não sendo a realidade mais aferível sob a perspectiva da objetividade, fica impossível constatar que a referida sobremesa tratava-se realmente do que a pessoa ofendida alegava ser. No universo oscilante das interpretações, as possibilidades de múltiplas definições são infinitas, incluindo até mesmo a declaração do suposto ofensor de que sua oferta se tratava apenas de um mousse de chocolate. E aí como é que fica? A parte ofendida vai acabar concluindo que o melhor será deixar pra lá. Finalmente, a quem não resiste ao encanto desse tipo de sobremesa, recomendo muito cuidado ao aceitá-la, pois, a depender da possível interpretação de outrem, o risco que estará correndo é assustador. Ao prescindirmos da objetividade como referência de verdade ficamos impossibilitados de testemunhar a cerca de qualquer fato e, por conseguinte, incapazes de ajuizarmos sobre qualquer questão. De começo teria que vir a baixo todo o edifício da justiça institucional por não contar mais com sua sustentação tanto deontológica quanto teleológica. No âmbito das relações interpessoais, sejam no ambiente de trabalho ou em qualquer outro em que você se dê conta de está sendo vítima de assédio moral, preconceito, ou qualquer outra circunstância humilhante, não alimente esperanças de que alguém se movimente num gesto de solidariedade a você, não que seus colegas em torno sejam pessoas altamente individualistas, egoístas, que pouco se importam com o que lhe suceda, ou porque são simplesmente covardes, frouxos, sem dignidade, mas porque sendo a objetividade algo destituída de sentido e, porque não dizer, inexistente, não há como eles aferirem se o que estão fazendo a você é um bem ou um mal. Você acreditaria nisso?
A objetividade é um ente investido de status ontológico que prefigura a realidade contida inclusive nos seres de conformação metafísica, de tal ordem que fica ao alcance da nossa intelecção genérica podendo ser compartilhada, quanto a sua identidade, em termos universais. Ninguém pode, honestamente, negar a existência do mal, por exemplo, pois ele é real. A maldade, como expressão fenomênica contingencial do mal, sempre atualizada nas mais diversas formas de atuação do homem, pulula em todo canto e encerra tanta objetividade quanto um mousse de chocolate. Não obstante não iremos concluir daí que ela possa ser alcançada por um míssil. Mesmo assim ela é identificável como uma expressão objetiva do agir humano. Negar a sua realidade ou ignorá-la não nos preserva de sermos alcançados pela mesma e muito menos torna o mundo melhor.
A falácia do discurso filosófico contemporâneo entronizando esse relativismo inescapável que deverá constituir o horizonte da nossa existência, em face do qual deveremos submeter-nos ao fatalismo de uma dinâmica difusa, caótica e sem sentido, perpetrada pelo “deus” do absurdo, porque assim o big bang das tecnologias digitais, com destaque especial para a internet, determinou, chega a ser ridículo e ofensivo a uma inteligência mediana. Fico a pensar a que interesses a difusão dessa abordagem filosófica, perspectivada de tal maneira, possa estar a serviço. Se entendermos que o futuro próximo nos aguarda com um mundo sem nenhuma estrutura de valores éticos que possam balizar o modelo de civilização em que desejamos viver, então é chegado o final dos tempos. Tudo vai ser admissível.
Se acreditarmos que do iluminismo para cá, pelo menos, ou mais além, dos fundamentos filosóficos de Sócrates passando pelo cristianismo até hoje, todo o legado que nos foi deixado esteja vazio de sentido, obsoleto, sem nenhuma serventia, o que podemos concluir é que o homem não terá mais barreiras morais que o regulem. Tudo será tolerado, a pedofilia, o latrocínio, a traição, a exploração do comércio sexual de crianças, o tráfico de órgãos, o estupro, o incesto, o canibalismo, assédio moral, etc. Teremos retroagido na escala do tempo para reeditarmos a nossa performance atual nos moldes da nossa ancestralidade simiesca de forma piorada. Será isto o que nos aguarda no futuro? Existe muita bobagem sendo professada por aí lamentavelmente. Fala-se numa crise que perpassa todo o ideário civilizacional clássico compreendido do universo total dos valores de toda ordem que até hoje constituem referências básicas que organizam a nossa vida em sociedade, ameaçando erodir o que conhecemos então como civilização ocidental. Algo como o esvaziamento de sentido e eficácia de todos os valores estáveis que têm garantido a nossa arquitetura civilizacional, suporte de viabilização da nossa convivência social nos limites do razoavelmente aceito. Prefiro acreditar na existência de outro tipo de crise que se expressa pela carência de lideranças políticas e intelectuais corajosas, dispostas a afrontar os desafios que a realidade atual apresenta, sem se deixarem intimidar pelo convencionalismo do “politicamente correto,” não exercendo uma política imediatista atreita a parâmetros da mediocridade, mas obstinadas a perseguir um ideal grandioso, que possa resgatar a nossa fé no futuro, não deixando que morra a nossa esperança de um mundo mais bonito, mais justo, que privilegie as pessoas portadoras de valores nobres, capacitadas a contribuir para a consolidação de uma civilização da decência. No dia em que o homem perder essa fé, aí sim, será provavelmente o preâmbulo do fim de um mundo em que valeria a pena viver nele.
O niilismo na perspectiva do pensamento Nietzscheniano que tem fomentado essa visão pósmoderna, que entroniza o relativismo absoluto como paradigma necessário na condução do destino da humanidade, a despeito de ser profundamente lamentável, tem feito a cabeça de muita gente. E chega até dar status a muitos pensadores que se alinham por essa visão essencialmente pessimista e decadente. E esta compreensão é vista muitas vezes como indicativo de muita inteligência.
Nietzsche veio para desencorajar toda e qualquer tentativa do homem em se constituir um ser de nobreza ao transcender os limites impostos pela resistência das suas barreiras instintivas que lhe prendem humilhantemente a uma base animal. Todo o esforço do cristianismo em abrir um caminho de possibilidade com vista a libertar o homem dos grilhões humilhantes de sua animalidade elementar, Nietzsche tentou neutralizá-lo. Ainda hoje o seu pensamento ressoa disseminando um conceito redutor e mesquinho do homem quanto ao seu horizonte de possibilidade na tentativa de engrandecimento ontológico. Aquilo que custou milênios ao homem na escala do tempo para promovê-lo a uma ascese enriquecedora de sua dignidade, Nietzsche despudoradamente tentou reduzir a uma expressão ficcional destituída de sentido, inútil e desprezível. Em fim, ao que me parece, essa onda de consagração a tudo que se perfila pelo indefinido, fugaz, impreciso, dégradé, inseguro, de tal ordem em que nunca se possa alcançar conceitualmente a demarcação exata de sua configuração ontológica e sempre a nos apontar para um horizonte de matiz impreciso em sua nuança, tênue, quase indefinível de um “rosa bebê”, precisa ser superada por tudo que nos resgate o mundo da definição, da firmeza, da precisão, da segurança, a nos apontar sempre para um horizonte de cores vivas, fortes, bem definidas revestindo-nos num halo de virilidade anunciando a coragem em nossa disposição afirmativa na busca de recuperar um mundo em que valha a pena habitá-lo e estão permitindo que o destruam. Quem sabe, não estará faltando talvez um pouco de macheza em tudo isso?
Como se pode pretender reduzir os conceitos de razão, verdade, objetividade, universalidade e absoluto a uma seqüência de entidades fictícias, inúteis que expressem uma percepção delirantemente patológica do homem, sem extinguirmos a nós mesmos como expressão teleológica que nos distância das demais espécies animais? Iremos nos assumir como mais uma espécie animal congênere entre as demais existentes?
É possível que alguém de qualquer nacionalidade ou etnia, seja em qual lugar for do planeta, ao somar duas laranjas com mais outras duas obtenha um resultado diferente do de quatro laranjas? Se não, é porque a razão, verdade, objetividade, universalidade e o absoluto são categorias reais, pois, tal operação aritmética é universalmente identificada, aceita como expressão de verdade deduzida pela razão, e encerra um caráter absoluto já que é impossível relativizá-la. Você já teve notícia de alguém que tenha iniciado a combustão no carvão de uma lareira ou churrasqueira com muitas notas de cem dólares substituindo um jornal velho ou por outra, comido fezes em razão de desconhecer do que se trata? Tenho certeza que não, porque a objetividade inscrita nos dois casos permitirá à pessoa em questão identificar o absurdo da sua ação em termos absolutos, especialmente no segundo caso, porque ela não se permitirá relativizar quanto à interpretação do que possa vir a ser fezes humanas ou um mousse de chocolate. Com certeza ela não se equivocará porque a objetividade é um fato incontestável. Esta constatação só reforça que apostar, sem medo, na crença em todas as já referidas categorias cognoscíveis, referências estáveis que constituem a nossa arquitetura intelectiva, não é nenhuma aventura e sim, andar em terra firme.
http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,repensando-a-constituicao,41944.html
Profº de Filosofia c/ Pós-Graduação em Filosofia da Ciência e da Linguagem. Contato: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, José da Silva. O buraco negro do relativismo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 fev 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33898/o-buraco-negro-do-relativismo. Acesso em: 23 dez 2024.
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