1. Pressupostos e evolução da paternidade socioafetiva
Muito se avançou no Brasil no que a doutrina jurídica especializada denomina paternidade (e filiação) socioafetiva, assim entendida a que se constitui na convivência familiar, independentemente da origem do filho. A denominação agrupa duas realidades observáveis: uma, a integração definitiva da pessoa no grupo social familiar; outra, a relação afetiva tecida no tempo entre quem assume o papel de pai e quem assume o papel de filho. Cada realidade, por si só, permaneceria no mundo dos fatos, sem qualquer relevância jurídica, mas o fenômeno conjunto provocou a transeficácia para o mundo do direito, que o atraiu como categoria própria. Essa migração foi possível porque o direito brasileiro mudou substancialmente, máxime a partir da Constituição de 1988, uma das mais avançadas do mundo em matéria de relações familiares, cujas linhas fundamentais projetaram-se no Código Civil de 2002.
O ponto essencial é que a relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho. Toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não-biológica; em outras palavras, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não-biológica. Tradicionalmente, a situação comum é a presunção legal de que a criança nascida biologicamente dos pais que vivem unidos em casamento adquire o status jurídico de filho. Paternidade biológica aí seria igual a paternidade socioafetiva. Mas há outras hipóteses de paternidade que não derivam do fato biológico, quando este é sobrepujado por outros valores que o direito considera predominantes.
Em escrito publicado no número 1 da Revista Brasileira de Direito de Família (O exame de DNA e o princípio da dignidade da pessoa humana, p. 72), tínhamos chamado atenção para a necessidade de os juristas e profissionais do direito atentarem para a distinção necessária entre genitor e pai. Dissemos:
Pai é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos, enquanto houve primazia da função biológica da família. Afinal, qual a diferença razoável que deva haver, para fins de atribuição de paternidade, entre o homem dador de esperma, para inseminação heteróloga, e o homem que mantém uma relação sexual ocasional e voluntária com uma mulher, da qual resulta concepção? Tanto em uma como em outra situação, não houve intenção de constituir família. Ao genitor devem ser atribuídas responsabilidades de caráter econômico, para que o ônus de assistência material ao menor seja compartilhado com a genitora, segundo o princípio constitucional da isonomia entre sexos, mas que não envolvam direitos e deveres próprios de paternidade.
A paternidade é muito mais que o provimento de alimentos ou a causa de partilha de bens hereditários. Envolve a constituição de valores e da singularidade da pessoa e de sua dignidade humana, adquiridos principalmente na convivência familiar durante a infância e a adolescência. A paternidade é múnus, direito-dever, construída na relação afetiva e que assume os deveres de realização dos direitos fundamentais da pessoa em formação “à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar” (art. 227 da Constituição). É pai quem assumiu esses deveres, ainda que não seja o genitor.
Outra categoria importante é a do estado de filiação, compreendido como o que se estabelece entre o filho e o que assume os deveres de paternidade, que correspondem aos direitos mencionados no art. 227 da Constituição. O estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação de parentesco, compreendendo um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados. O filho é titular do estado de filiação, da mesma forma que o pai é titular do estado de paternidade em relação a ele. Assim, onde houver paternidade juridicamente considerada haverá estado de filiação. O estado de filiação é presumido em relação ao pai registral.
A legislação brasileira prevê quatro tipos de estados de filiação, decorrentes das seguintes origens: a) por consangüinidade; b) por adoção; c) por inseminação artificial heteróloga; d) em virtude de posse de estado de filiação. A consangüinidade, a mais ampla de todas, faz presumir o estado de filiação quando os pais são casados ou vivem em união estável, ou ainda na hipótese de família monoparental. O direito brasileiro não permite que os estados de filiação não consangüíneos, referidos nas alíneas b a d, sejam contraditados por investigação de paternidade, com fundamento na ausência de origem biológica, pois são irreversíveis e invioláveis, no interesse do filho.
Por fim, outra categoria que se consagrou no direito brasileiro de família foi o da afetividade, entendida como o liame específico que une duas pessoas em razão do parentesco ou de outra fonte constitutiva da relação de família. A afetividade familiar é, pois, distinta do vínculo de natureza obrigacional, ou patrimonial, ou societário. Na relação familiar não há fim econômico, cujas dimensões são sempre derivadas (por exemplo, dever de alimentos, ou regime matrimonial de bens), nem seus integrantes são sócios ou associados. Por outro lado, a afetividade, sob o ponto de vista jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, este de ocorrência real necessária. O direito, todavia, converteu a afetividade em princípio jurídico, que tem força normativa, impondo dever e obrigação aos membros da família, ainda que na realidade existencial entre eles tenha desaparecido o afeto. Assim, pode haver desafeto entre pai e filho, mas o direito impõe o dever de afetividade. Além dos fundamentos contidos nos artigos 226 e seguintes da Constituição, ressalta o dever de solidariedade entre os membros da família (art. 3º, I, da Constituição), reciprocamente entre pais e filho (art. 229) e todos em relação aos idosos (art. 230). A afetividade é o princípio jurídico que peculiariza, no âmbito da família, o princípio da solidariedade.
2. A opção do legislador brasileiro pela paternidade socioafetiva
Como vimos, a Constituição tomou partido pelo conceito aberto e inclusivo de paternidade. Não há qualquer preceito constitucional que autorize a confusão entre genitor e pai, ou a primazia da paternidade biológica. Apesar disso, são espantosos e recorrentes os desvios doutrinários e jurisprudenciais, seduzidos pela impressão de certeza de exames genéticos, particularmente do DNA.
Encontram-se na Constituição brasileira vários fundamentos do estado de filiação geral, que não se resume à filiação biológica: a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º); b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º); não é relevante a origem ou existência de outro pai (genitor); d) o direito à convivência familiar, e não a origem genética, constitui prioridade absoluta da criança e o do adolescente (art. 227, caput).
Portanto, toda vez que um estado de filiação estiver constituído na convivência familiar duradoura, com a decorrente paternidade socioafetiva consolidada, esta não poderá ser impugnada nem contraditada. A investigação de paternidade só é cabível quando não houver paternidade, nunca para desfazê-la.
É incabível o fundamento da investigação da paternidade biológica, para contraditar a paternidade socioafetiva já existente, no princípio da dignidade da pessoa humana, pois este é uma construção cultural e não um dado da natureza. Aliás, a contradição é evidente quando se maneja o princípio da dignidade humana com intuito de assegurar a uma pessoa o direito à herança deixada pelo pretenso genitor, pois como disse Immanuel Kant em Fundamentação da metafísica dos constumes a dignidade é tudo aquilo que não tem preço.
Outro fundamento equivocado, frequentemente utilizado pela jurisprudência dos tribunais, antes do Código Civil de 2002, é o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabelece ser o reconhecimento do estado de filiação direito personalíssimo, indisponível e imprescritível. O equívoco radica no fato de nele enxergar-se o direito a impugnar paternidade já existente. Estado de filiação, como explicamos, resulta de convivência familiar duradoura. Se já existe, pouco importando sua origem, o art. 27 do ECA é imprestável. Se não existe, ou seja, quando não houver paternidade de qualquer natureza, então o artigo é aplicável, para assegurar o reconhecimento do estado de filiação àquele que nunca o teve.
O Código Civil de 2002, por seu turno, consagrou em sede infraconstitucional as linhas fundamentais da Constituição em prol da paternidade de qualquer origem e não apenas da biológica. Encerrou-se definitivamente o paradigma do Código Civil anterior, que estabelecia a relação entre filiação legítima e filiação biológica; todos os filhos legítimos eram biológicos, ainda que nem todos os filhos biológicos fossem legítimos. Com o desaparecimento da legitimidade e a expansão do conceito de estado de filiação para abrigar os filhos de qualquer origem, em igualdade de direitos (adoção, inseminação artificial heteróloga, posse de estado de filiação), o novo paradigma é incompatível com o predomínio da realidade biológica. Insista-se, o paradigma atual distingue paternidade e genética.
Destacamos, no Código Civil de 2002, as seguintes referências da clara opção pelo paradigma da paternidade socioafetiva:
a) art. 1.593, para o qual o parentesco é natural ou civil, “conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”. A principal relação de parentesco é a que se configura na paternidade (ou maternidade) e na filiação. A norma, ao contrário do persistente equívoco da jurisprudência, inclusive do STJ, é inclusiva, pois não atribui a primazia à origem biológica; a paternidade de qualquer origem é dotada de igual dignidade;
b) art. 1.596, que reproduz a regra constitucional de igualdade dos filhos, havidos ou não da relação de casamento (estes, os antigos legítimos), ou por adoção, com os mesmos direitos e qualificações. O § 6º do art. 227 da Constituição revolucionou o conceito de filiação e inaugurou o paradigma aberto e inclusivo;
c) art. 1597, V, que admite a filiação mediante inseminação artificial heteróloga, ou seja, com utilização de sêmen de outro homem, desde que tenha havido prévia autorização do marido da mãe. A origem do filho, em relação aos pais, é parcialmente biológica, pois o pai é exclusivamente socioafetivo, jamais podendo ser contraditada por investigação de paternidade ulterior;
d) art. 1.605, consagrador da posse do estado de filiação, quando houver começo de prova proveniente dos pais, ou, “quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos”. As possibilidades abertas com esta segunda hipótese são amplas. As presunções “veementes” são verificadas em cada caso, dispensando-se outras provas da situação de fato. O Código brasileiro não indica, sequer exemplificadamente, as espécies de presunção, ou a duração, o que nos parece a orientação melhor. Por seu turno, o Código Civil francês, art. 311-2, na atual redação, apresenta as seguintes espécies não taxativas de presunção de estado de filiação, não sendo necessária a reunião delas: a) quando o indivíduo porta o nome de seus pais; b) quando os pais o tratam como seu filho, e este àqueles como seus pais; c) quando os pais provêem sua educação e seu sustento; d) quando ele é assim reconhecido pela sociedade e pela família; e) quando a autoridade pública o considere como tal. Na experiência brasileira, incluem-se entre a posse de estado de filiação o filho de criação e a adoção de fato, também chamada “adoção à brasileira”, que é feita sem observância do processo judicial, mediante declaração falsa ao registro público;
e) art. 1.614, continente de duas normas, ambas demonstrando que o reconhecimento do estado de filiação não é imposição da natureza ou de exame de laboratório, pois admitem a liberdade de rejeitá-lo. A primeira norma faz depender a eficácia do reconhecimento ao consentimento do filho maior; se não consentir, a paternidade, ainda que biológica, não será admitida; a segunda norma faculta ao filho menor impugnar o reconhecimento da paternidade até quatro anos após adquirir a maioridade. Se o filho não quer o pai biológico, que não promoveu o registro após seu nascimento, pode rejeitá-lo no exercício de sua liberdade e autonomia. Assim sendo, permanecerá o registro do nascimento constando apenas o nome da mãe. Claro está que o artigo não se aplica contra o pai registral, se o filho foi concebido na constância do casamento ou da união estável, pois a declaração ao registro público do nascimento não se enquadra no conceito estrito de reconhecimento da paternidade.
Diante desses marcos conceituais e legais, no direito brasileiro não há espaço para afirmação da primazia ou, o que é pior, da exclusividade da origem genética para determinar a paternidade, que é mais que um dado da natureza, pois é um complexo de direitos e deveres que se atribui a uma pessoa em razão do estado de filiação seja ele consangüíneo ou não. Assim se encontravam as coisas, quando o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula n. 301, optando pela corrente que parece negar a evolução a que se chegou.
3. Súmula 301-STJ
Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade.
O enunciado, aparentemente, procura ater-se à formação de prova, no campo processual, mas suas conseqüências vão além, atingindo o direito material e tornando tabula rasa a evolução antes demonstrada. Parte do lamentável equívoco de que paternidade biológica é a única que importa, desconsiderando a mudança de paradigmas que se operou no direito brasileiro, em total desconhecimento de sua natureza socioafetiva. Se o exame de DNA concluir que A é genitor de B então a paternidade estaria definida. Por outro lado, induz o réu a produzir prova contra si mesmo, invertendo um princípio que resultou da evolução do direito e da emancipação do homem. Confunde investigação da paternidade com o direito da personalidade de conhecimento da origem genética. Cria desnecessariamente mais uma presunção no direito de família: a da confissão ficta ou da paternidade não provada. Não faz referência às demais provas indiciárias, que contribuam para o convencimento do juiz. Não ressalva o estado de filiação já constituído, cuja história de vida é desfeita em razão da presunção de paternidade biológica.
Outro notável equívoco é a identificação subjacente à súmula, constantemente referida em seus precedentes, da verdade real na verdade biológica. Mas a verdade social da paternidade socioafetiva é tão real quanto a biológica, aferível por todos os meios de prova admitidos em direito. O paradigma do atual direito brasileiro é a paternidade de natureza socioafetiva, hipercomplexa e inclusiva, que pode ter origem biológica ou não biológica. A partir desse paradigma é que se deve pesquisar a verdade real, que pode ser diferente da que a origem genética indica (adoção, inseminação artificial heteróloga e posse de estado de filiação).
A Súmula indiretamente contradiz a orientação assentada no Supremo Tribunal Federal no HC 71.373/RS, de 1996, no sentido de que ninguém pode ser obrigado a submeter-se a exame de DNA, pois tal ato violaria garantias constitucionais explícitas e implícitas, a saber, “preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta da obrigação de fazer”. Ao impor, como resultado da recusa ao exame de DNA, a conseqüência da paternidade presumida, na ordem prática das coisas, viola todas as garantias preservadas pelo STF. Para não sofrer tais conseqüências, o réu terá de se submeter ao exame.
A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no registro civil, determina o art. 1.603 do Código Civil. O registro pode conter a filiação biológica ou a filiação não biológica. Não se exige que o declarante faça qualquer prova biológica; basta sua declaração. A declaração, como qualquer outra, poderá estar viciada por erro ou por falsidade. Mas não haverá erro ou falsidade da declaração para registro de filiação oriundo de posse de estado, consolidado na convivência familiar.
4. Os precedentes da Súmula 301
A Súmula 301 faz referência a sete precedentes, com respectivos anos das decisões do STJ: AGA 498.398-MG (2003), RESP 55.958-RS (1999), RESP 135.361-MG (1998), RESP 141.689-AM (2000), RESP 256.161-DF (2001), RESP 409.285-PR (2002), RESP 460.302-PR (2003).
O traço em comum encontrado nas decisões, com exceção da última referida, é a inexistência de pai registral (a criança apenas foi registrada com indicação da mãe), voltando-se as respectivas investigações de paternidade para imputa-la aos genitores biológicos. Como demonstraremos, a súmula seria aceitável se explicitasse sua aplicação a essa hipótese e desde que a presunção viesse conjugada à existência de provas indiciárias. A última decisão, todavia, demonstra que não é esse o seu alcance pretendido, pois resulta em desconsideração da paternidade socioafetiva. Passemos ao destaque dos pontos que interessam em cada uma das decisões.
No AGA 498.398-MG está dito que a recusa injustificada à realização do exame de DNA contribui para a presunção de veracidade. Ou seja, a recusa justificada afastaria a presunção e a presunção depende da existência de provas, pois apenas contribui. A decisão foi favorável, apesar de o agravante (réu) alegar que em nenhum momento o autor conseguiu “produzir indícios de provas de seu alegado direito”, o que em parte foi confirmado pelo relator do tribunal recorrido (“a provas dos autos é evidentemente frágil, pois os depoimentos testemunhais são contraditórios”).
No RESP 55.958-RS diz-se (ementa) que as decisões locais encontraram fundamento “em caudaloso conjunto probatório” e que a recusa ao exame de DNA induz presunção que milita contra a irresignação do investigado. Ora, se as provas são caudalosas qual a utilidade da presunção?
No RESP 135.361-MG constata-se que há “elementos suficientes de convicção sobre a paternidade imputada ao investigado”. Pela mesma razão da decisão anterior, qual a utilidade da presunção? Neste caso, o mais grave foi admitir-se a presunção, em virtude da recusa dos irmãos e herdeiros do investigado (falecido). A investigação de paternidade foi manejada para fins exclusivamente econômicos.
No RESP 141.689-AM foi decisivo para o julgamento favorável à investigação da paternidade o fato de o investigado ter recusado o exame por mais de dez vezes, pois seu relacionamento com a mãe do investigante foi ocasional, inexistindo outras provas indiciárias. Para fins de imputar a paternidade a alguém pouco importa a quantidade de recusa a submeter-se ao exame.
No RESP 256.161-DF invocou-se o “princípio da garantia da paternidade responsável” para fazer valer a presunção (maioria da Terceira Turma do STJ). Note-se que os votos vencidos, inclusive do relator originário, chamaram a atenção para o fato de que “não há provas de que a mãe da autora e o réu tenham mantido relações sexuais” e que o Tribunal só tem admito a “presunção negativa de realização do exame de DNA apenas quando as provas complementares do processos são no sentido da paternidade”.
No RESP 409.284-PR a Quarta Turma do STJ por unanimidade reconhece que “tal presunção não é absoluta, de modo que incorreto o despacho monocrático ao exceder seu alcance, afirmando que a negativa levaria o juízo de logo a presumir como verdadeiros os fatos, já que não há cega vinculação ao resultado do exame de DNA ou à sua recusa, que devem ser apreciados em conjunto com o contexto probatório global dos autos”. Essa advertência bem demonstra o risco que a orientação simplista extraída do enunciado da súmula pode levar.
Finalmente, o RESP 460.302-PR expande perigosamente o alcance dessa orientação, pois resultou em negativa da paternidade socioafetiva existente, para atingir fins meramente econômicos. Tratou-se de ação negatória de paternidade proposta pela viúva e filhos do autor da herança contra menor impúbere filho registral deste com outra mulher, sob alegação de não ser filho biológico, com o fito de determinar “a exclusão da certidão de nascimento do nome ali constante como pai, dos avós paternos e apelidos de família”. Essa violação à paternidade socioafetiva declarada pelo pai falecido junto ao registro público foi perpetrada sob argumento de constituir presunção desfavorável “a recusa da parte em submeter-se ao exame de DNA”.
Do conjunto dos precedentes, percebe-se que a súmula é totalmente inútil, equivocada em seus fundamentos e violadora de princípios constitucionais. Sob a sedução do progresso científico e da grande precisão do exame de DNA, parte-se de premissa falsa que contamina todo resultado e leva a decisões injustas, a saber, a de que toda paternidade seria biológica e esta seria a verdade real.
5. Limites de aplicação da Súmula 301
Pelas razões aduzidas, melhor seria que essa súmula nunca tivesse sido editada. Por outro lado, as razões de sua edição, os limites e restrições a seu alcance que se encontram dispersos em seus precedentes referidos, tendem a não ser considerados na aplicação cotidiana do direito, ante a inclinação natural de render-se à simples literalidade do enunciado. Ainda que não tenha efeito vinculante, na prática judiciária a súmula do STJ funciona com a mesma força normativa de regra legal, para os aplicadores do direito, o que bem demonstra o risco de otimização de seus desvios e equívocos.
Todavia, enquanto essa súmula perdurar, dois grandes limites implícitos devem ser observados para sua adequada aplicação e interpretação em conformidade com a Constituição e o Código Civil: a) não pode resultar em negação de paternidade derivada de estado de filiação comprovadamente constituído; b) a presunção de paternidade, em ação investigatória quando haja apenas mãe registral, depende da existência de provas indiciárias consistentes, não podendo ser aplicada isoladamente.
A Súmula 301 restringe-se à investigação da paternidade; assim é incabível como fundamento de ação negatória ou de impugnação de paternidade. A investigação ou reconhecimento judicial da paternidade tem por objetivo assegurar pai a quem não o tem, ou seja, na hipótese de genitor biológico que se negou a assumir a paternidade. Portanto, é incabível nas hipóteses de existência de estados de filiação não biológica protegidos pelo direito: adoção, inseminação artificial heteróloga e posse de estado de filiação. É totalmente incabível para constituir paternidade desconstituindo a existente.
O Código Civil apenas admite duas hipóteses de impugnação da paternidade: uma, pelo marido (art. 1.601), outra, pelo filho contra o reconhecimento da filiação (art. 1.614). Não há, pois, fundamento legal para a espantosa disseminação de ações negatórias de paternidade, com intuito de substituí-la por suposta paternidade genética. Só o marido pode impugnar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, que não sejam biologicamente seus. Esse direito é de exercício exclusivo e imprescritível, mas desde que não se tenha constituído o estado de filiação na convivência familiar duradoura. A impugnação do reconhecimento de filiação é exercício exclusivo do filho, quando atingir a maioridade e desde que o faça dentro do prazo decadencial de quatro anos após esse evento.
A segunda grande limitação é a impossibilidade de utilização isolada da presunção, significando dizer que é apenas um dos elementos que formam o convencimento do juiz. Sem prova ou provas indiciárias convincentes, trazidas aos autos pelo autor, não pode o juiz aplicar a súmula 301. Os precedentes da súmula deixam claro tal requisito. Nos julgamentos posteriores à súmula, ao longo de 2005, o STJ tem restringido sua aplicação, como se vê no RESP 692.242-MG, cuja ementa enuncia que
Apesar da Súmula 301/STJ ter feito referência à presunção juris tantum de paternidade na hipótese de recusa do investigado em se submeter ao exame de DNA, os precedentes jurisprudenciais que sustentaram o entendimento sumulado definem que esta circunstância não desonera o autor de comprovar, minimamente, por meio de provas indiciárias a existência de relacionamento íntimo entre a mãe e o suposto pai.
6. A questão patrimonial e a solução jurídica que preserva a paternidade socioafetiva
A profunda mudança de paradigma da paternidade, no direito brasileiro, significou centralizar a atenção na realização existencial das pessoas envolvidas (pai e filho) e na afirmação de suas dignidades; em uma palavra, na repersonalização. Os interesses patrimoniais, que antes determinavam as soluções jurídicas nas relações de família, implícita ou explicitamente, perderam o protagonismo que detinham, assumindo posição de coadjuvantes dos interesses pessoais.
Assim, não podem os interesses patrimoniais ser móveis de investigações de paternidade, como ocorre quando o pretendido genitor biológico falece, deixando herança considerável. Repita-se: a investigação de paternidade tem por objeto assegurar o pai a quem não tem e nunca para substituir a paternidade socioafetiva pela biológica, até porque esta só se impõe se corresponder àquela.
Todavia como resolver o inevitável conflito que se instaura entre esses interesses, de modo a preservar a paternidade socioafetiva? Sob outra perspectiva, é razoável a pretensão patrimonial daquele que teve negado seu originário direito à filiação, cuja paternidade foi assumida por outrem. Advirta-se que o conflito apenas é possível em se tratando de situações enquadráveis na posse de estado de filiação, pois os demais estados de filiação não-biológica, isto é, decorrentes de adoção e de inseminação artificial heteróloga, cortam integralmente a relação com o passado biológico; nestas duas últimas hipóteses, a presunção legal de paternidade é absoluta, não podendo haver qualquer relação jurídica com o genitor biológico, salvo para fins de impedimento para casar.
Tampouco pode ser admitido conflito de interesses que conduza a atribuir responsabilidade jurídica a dador anônimo de sêmen ou gametas crioconservados em instituições e destinados a reprodução medicamente assistida. O item 3 do Capítulo IV da Resolução n. 1.358/1992 do Conselho Federal de Medicina, estabelece norma deontológica - que serve de norte para decisão, à falta de norma jurídica geral - assim enunciada:
Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.
Posta a questão dentro desses limites, de que modo podem ser compatibilizados os interesses pessoais e patrimoniais, quando o conflito se der entre paternidade socioafetiva derivada de posse de estado de filiação e o pretendido interesse em imputar responsabilidade ao genitor biológico falecido? A resposta pode ser encontrada nas categorias gerais do sistema jurídico. O estado de filiação é matéria afeta ao direito de família, inviolável por decisão judicial que pretenda negá-lo, pelas razões já expostas. Não pode haver, consequentemente, sucessão hereditária entre filho de pai socioafetivo e seu genitor biológico; com relação a este não há direito de família ou de sucessões. Mas, é possível resolver-se a pretensão patrimonial no âmbito do direito das obrigações. É razoável atribuir-se-lhe um crédito decorrente do dano causado pelo inadimplemento dos deveres gerais de paternidade (educação, assistência moral, sustento, convivência familiar, além dos demais direitos fundamentais previstos no art. 227 da Constituição) por parte do genitor biológico falecido, cuja reparação pode ser fixada pelo juiz em valor equivalente ao de uma quota hereditária se herdeiro fosse. Para isso será necessário ajuizar ação de reparação de dano moral e material, habilitando-se no inventário como credor do espólio, com requerimento de reserva de bens equivalentes para garantia da ação.
7. A argumentação conclusiva
A paternidade socioafetiva não é espécie acrescida, excepcional ou supletiva da paternidade biológica; é a própria natureza do paradigma atual da paternidade, cujas espécies são a biológica e a não-biológica. Em outros termos, toda a paternidade juridicamente considerada é socioafetiva, pouco importando sua origem. Nas situações freqüentes de pais casados ou que vivam em união estável, a paternidade e a maternidade biológicas realizam-se plenamente na dimensão socioafetiva. Sua complexidade radica no fato de não ser um simples dado da natureza, mas uma construção jurídica que leva em conta vários fatores sociais e afetivos reconfigurados como direitos e deveres. Superou-se a equação simplista entre origem genética, de um lado, e deveres alimentares e participação hereditária, de outro. A paternidade é múnus assumido voluntariamente ou imposto por lei no interesse da formação integral da criança e do adolescente e que se consolida na convivência familiar duradoura.
Toda pessoa, especialmente a pessoa humana em formação, tem direito à paternidade. Se não a tem, porque ninguém a assumiu voluntariamente, pode investigá-la para que seja reconhecida judicialmente e imputada ao genitor biológico. No plano jurídico, a afetividade é princípio e, como tal, dotado de força normativa, impondo deveres e conseqüências por seu descumprimento. Por isso, não se confunde com o afeto como simples fato anímico e psicológico. A decisão judicial no reconhecimento forçado da filiação declara e impõe a paternidade em sua total dimensão socioafetiva, cujos deveres de natureza moral e material devem ser cumpridos.
Nem toda paternidade socioafetiva resulta da consangüinidade, pois o direito assegura igualdade de direitos e deveres ao pai que assumiu voluntariamente o estado de filiação nas hipóteses adoção, de inseminação artificial heteróloga e de posse de estado. Em todas, o estado de filiação assim constituído é inviolável e não pode ser desfeito por decisão judicial, salvo na situação comum de perda do poder familiar (art. 1.638 do Código Civil). A paternidade desaparece em face do genitor biológico em virtude da perda do poder familiar, nas hipóteses de adoção e de declaração judicial de posse de estado de filiação, e nunca aparece nas hipóteses de inseminação artificial heteróloga e de dação anônima de sêmen.
A paternidade socioafetiva decorrente da posse de estado de filiação não pode ser contraditada, mas como evitar que aquele que não cumpriu seu dever de paternidade fique impune? Cogita-se de responsabilidade civil por dano imputável ao genitor biológico quando não assumir os deveres de paternidade e quando não seja possível a investigação judicial, em virtude de outro homem já ter assumido a paternidade socioafetiva com a constituição do estado de filiação. Essa solução, no campo do direito das obrigações, somente é possível quando a paternidade resultar de posse de estado de filiação, sendo vedada nas paternidades derivadas da adoção regular e da inseminação artificial heteróloga, pois há total desfazimento de laços jurídicos com os genitores biológicos. Dessa forma harmonizam-se o princípio da imodificabilidade do estado de filiação e o dever genérico de responsabilidade por dano, o direito de família e o direito das obrigações. Esse tipo de reparação qualifica-se como punitivo, cuja excepcionalidade compreende-se no requisito que se consolida no Brasil para recepção da doutrina do punitive damage.
Posto assim o estado da arte nessa matéria, conclui-se pela impropriedade da Súmula 301. Ela é equivocada porque parte de pressuposto falso, a saber, a da identidade da paternidade com a origem genética, desconsiderando o paradigma atual da socioafetividade. Ela é inútil porque depende da existência de provas indiciárias para que a presunção possa ser aplicada Ela é injusta porque induz o réu a produzir provas contra si mesmo e porque serve de instrumento a interesses meramente patrimoniais, que nunca prevalecem quando o genitor biológico é pobre. Ela é contraditória porque indiretamente viola princípios constitucionais ressaltados no precedente do Supremo Tribunal Federal (HC 71.373-RS); a recusa ao exame do DNA não pode ser tida como presunção desfavorável, pois os princípios constitucionais tutelam quem assim age, e se não se pode produzir provas contra as ormas legais, também não se pode admitir presunção que leve ao mesmo efeito. Ela é desnecessária porque há solução dentro do sistema jurídico para a pretensão de natureza patrimonial, sem necessidade de negar o estado de filiação constituído.
Advogado militante, Economista, Escritor com livros publicados, capítulos de livros publicados e centenas de artigos de circulação nacional, militante no Direito, com ênfase em Direito Público, Criminal, Trabalhista, Civil, Previdenciário. Mestrado em andamento em Tecnologia, Ambiente e Sociedade. Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri , Especialização em andamento em Gestão Pública (2014-2015). Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - Campus Mucuri. Especialização em Direito Público (2012-2013). Universidade Anhanguera - Uniderp. Especialização em Direito Processual Civil (2012-2013). Universidade Anhanguera - Uniderp. Especialização em andamento em Educação em Direitos Humanos. (2014-2015). Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - Campus Mucuri. Graduação em Ciências Econômicas. (2008-2012). Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - Campus Mucuri. Graduação em Direito. (2006-2010). Fundação Educacional Nordeste Mineiro. Livros publicados/organizados ou edições 1. COLEN, D. C. . ÉTICA, IMPROBIDADE E CORRUPÇÃO ADMINISTRATIVA: UMA VISÃO CRÍTICA NO CENÁRIO BRASILEIRO. 1. ed. Rio de janeiro: CBJE / Globo, 2012. COLEN, D. C. . Crimes de Informática: A atipicidade e as consequências na sociedade. 01. ed. , 2012.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COLEN, Dalvan Charbaje. Paternidade socioafetiva e o direito de herança Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 fev 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33966/paternidade-socioafetiva-e-o-direito-de-heranca. Acesso em: 23 dez 2024.
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