Imagine o comportamento de alguém que marca um muro publico com um desenho. Para alguns, esta conduta pode ser considerada ofensiva, um ato de mau gosto, e o autor classificado como vândalo. Entretanto, para os seus amigos e para os apreciadores dessa manifestação o comportamento pode ser considerado um ato ce valentia, de habilidade, e o autor um autêntico artista. Ou seja, um mesmo comportamento pode ser valorado de diversas formas (RAMÍREZ E HORMAZÁBAL, 1997, p. 15).
Ainda quanto ao exemplo, rabisca-se, nas concepções de hoje, uma fronteira entre o “grafite”, visto como uma forma de expressão incluída no âmbito das artes visuais, com grafiteiros sendo convidados para exibir seu trabalho em espaços públicos, e as “pichações”, consideradas criminosas[1], nos termos do artigo 65 da Lei dos Crimes Ambientais[2], que em seu texto estipula pena de até um ano de detenção aos infratores, além de multa. O curioso é que muitos dos que hoje são os artistas visuais das ruas eram os pichadores do passado[3].
Esta mudança de perspectiva faz parte de um processo histórico no qual os conflitos deixam de ser encarados como tais. Eles aparecem e desaparecem na historia de acordo com as mudanças culturais que geram uma nova visão da realidade. A homossexualidade e o concubinato, por exemplo, embora ainda possam ocasionar conflitos no seio social, deixam de admitir punições institucionalizadas, ou seja, perdem a qualificação de delito. Outras condutas deixam mesmo de representar conflitos, como é o caso da bruxaria e da tentativa de suicídio (HULSMAN, 1993, p. 66).
Os conflitos não variam apenas no tempo, mas também no espaço:
(...) o que é delituoso em um contexto, é aceitável em outro. Conforme você tenha nascido em um lugar ao ives de outro, ou numa determinada época e não em outra, você é passível — ou não — de ser encarcerado pelo que fez, ou pelo que é.
Exemplos são o da punibilidade da bigamia e do uso de drogas em alguns países e em outros não. Assevera-se, portanto, que não há nada na essência do fato que permita reconhecer se ele se trata de um delito:
O que há em comum entre uma conduta agressiva no interior de uma família, um ato violento cometido no contexto anônimo das ruas, o arrombamento de uma residência, a fabricação de moeda falsa, o favorecimento pessoal, a receptação, uma tentativa de golpe de Estado, etc.? Você não descobrira qualquer denominador comum na definição de tais situações, nas motivações dos que nelas estão envolvidos, nas possibilidades de ações visualizáveis no que diz respeito à sua prevenção ou à tentativa de acabar com eles. A única coisa que tais situações têm em comum é uma ligação completamente artificial, ou seja, a competência formal do sestema de justiça criminal para examiná-las (HULSMAN, 1992, p. 64).
Definir o delito com conceitos vagos, como, por exemplo, o comportamento que afeta as “condições de vida de uma sociedade”, ou aquele que ataca os “interesses do individuo ou do corpo social”[4], é incorrer em dois graves erros. O primeiro é inverter a lógica da realidade: o estado primeiro postula o crime para, em seguida, combate-lo, não o contrário[5]. O segundo erro é ignorar a conclusão alcançada pelas pesquisas sobre a cifra oculta da criminalidade[6]: a imensa maioria dos atos legalmente puníveis não são solucionados pela via institucionalizada (HULSMAN, 1993, p. 68).
Com base nos estudos criminológicos, é possível afirmar que a criminalidade não é um comportamento da minoria, mas, ao contrário, é o comportamento de largos estratos ou mesmo da maioria dos membros da nossa sociedade (BARATTA, 2002, p. 103). Zaffaroni e Pierangeli (2008, p.56) utilizam os exemplos da não devolução de um livro emprestado, do furto de uma toalha de hotel e da apropriação de um objeto perdido para afirmar que, na verdade, se cada cidadão avaliasse suas próprias condutas, comprovaria que várias vezes infringiu normas penais.
Deve-se subtrair o argumento de que estes delitos são “leves”, uma vez que não são poucas as condenações por condutas quase banais, como o “furto de uma xicara de café barata por parte de um servente de limpeza” ou “de duas latas de pêssego por um empregado”. Ademais, ao menos no século XX, os maiores danos causados ao maior número de pessoas, em guerra ou fora dela, foram provocados pelos Estados (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2008, p. 56)
Adicione ao panorama traçado o fato de que o sistema penal age de modo seletivo, elegendo os candidatos ao controle penal dentre aqueles que compõem as camadas econômicas menos privilegiadas. É inegável que a probabilidade de ser preso é inversamente proporcional À proximidade do individuo do centro da estrutura social. EM outras palavras, os que se encontram marginalizados em razão da sua situação de pobreza são os alvos fáceis do sistema penal. A seleção incide antes sobre aquele que é considerado delinquente do que sobre a conduta “desviada” (ZAFFARONI e PIERANGELI, p. 56-57).
Somando todas essas constatações, é possível concluir que o delito é, de fato, uma construção na realidade social, e não uma realidade preexistente à sociedade, o que exclui a noção ontológica do crime.
Bibliografia
BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Rio de Janeiro: E,p. Graphica Ep., 1926.
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
BARATA, Alessandro. Criminologia Critica e Crítica do Direito Penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
CARVALHO, Salo de. Anti-manual de Criminologia. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas — O Sistema Penal em questão. Tradução de Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro: Luam, 1993.
RAMÍREZ, Juan J. Bustos; MALARÉE, Hernán Hormazábal. Lecciones de Derecho Penal. Vol. 1. Madrid: Trotta, 1997.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 7ª ED. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
[1] “As produções dramáticas tradicionais e parte da mídia tendem a perpetuar a idéia simples _ e simplista_ de que há os bons de um lado e os maus de outro. É certo que existe toda uma corrente cultural com um enfoque das pessoas e situações muito mais cheio de nuances. A arte, a literatura, o cinema contemporâneos esforçam-se por descobrir a complexidade dos seres, de suas relações, das experiências vividas, mostrando o irrealismo dos discursos em preto e branco. Entretanto, no campo da justiça penal, as imagens maniqueístas ainda se impõem quase que por inércia” (HULSMAN, 1993, p. 56).
[2] A Lei nº 12.408/11 alterou a redação do artigo 65 da Lei número 9.605/98 para retirar o verbo “grafitar”, que constituía núcleo do tipo na antiga redação. Acrescentou-se, ainda, parágrafo que dispõe: “§ 2o Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional”.
[3] Para mais: LEWINSOHN, Cedar. Street Art — The Graffiti Revolution. Nova York: Tate, 2008.
[4] Estes conceitos são utilizados por Mestieri (1991, p.3) e Heleno Fragoso (1985, p. 2) respectivamente, quando discorrem sobre a finalidade do Direito Penal. Nilo Batista (2005, p.21), em sua introdução ao Direito Penal, tece críticas às definições dos autores e à afirmação de Damásio, segundo o qual o Direito Penal tem como finalidade “combater o crime” (1985, p. 3)
[5] O sergipano Tobias Barreto já afirmava que “Não há um direito natural, mas uma lei natural do direito” (1926, p. 38).
[6] Na definição de Salo de Carvalho (2008, p. 81), a cifra oculta da criminalidade corresponde “à lacuna existente entre a totalidade dos eventos criminalizados ocorridos em determinados temo e local (criminalidade real) e as condutas que efetivamente são tratadas como delito pelos aparelhos de persecução criminal (criminalidade registrada)”.
Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HERICK VICTOR DANTAS DE ARGôLO, . O delito como construção Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 mar 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34268/o-delito-como-construcao. Acesso em: 23 dez 2024.
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