Resumo: O presente artigo discorre sobre a teoria da margem apreciação, que vem a ser um meio de solução de conflitos concretos existentes entre o sistema internacional de direitos humanos e a legislação interna de cada nação. Tal doutrina encontra amparo no sistema regional europeu, vendo sendo atualmente relativizada neste sistema pelo princípio da proporcionalidade. O Sistema regional americano não possui precedentes com relação à utilização desta teoria.
Palavras-chave: Teoria da margem de apreciação. Direitos Humanos. Sistema Regional Europeu. Meio de solução de conflitos. Relativização pelo Princípio da proporcionalidade.
A Teoria da Margem de apreciação e a sua aplicação nos sistemas regionais de Direitos Humanos
A teoria da margem de apreciação (“margin of appreciation”) é considerada pela doutrina especializada como um importante meio utilizado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos para solucionar conflitos existentes entre os sistemas jurídicos nacionais e o sistema internacional dos direitos humanos.
Tal doutrina vem sendo agasalhada pelo sistema regional europeu, que a concebe como meio para interpretação e solução de conflitos relacionados à efetividade dos Direitos Humanos. De acordo com a teoria da margem da apreciação, determinadas questões controvertidas relacionadas com as restrições estatais devem ser debatidas e solucionadas pelas comunidades nacionais, não podendo o juiz internacional apreciá-las. Assim, ficaria a cargo do próprio Estado nacional estabelecer os limites e as restrições ao gozo de direitos em face do interesse público. É imperioso destacarmos que, apesar de bastante citada pela Corte Européia de Direitos Humanos, a teoria da margem de apreciação não encontra o devido amparo na Corte Americana de Direitos Humanos,
Ao reconhecer tal teoria pela primeira vez, no “caso Handsyde” (em que houve o confisco de determinados exemplares de um livro considerado obsceno pelo Reino Unido) a Corte Européia de Direitos Humanos entendeu que “em virtude do contínuo e direto contato com as forças vitais de seus países, as autoridades estatais estão, a princípio, em melhor posição de que o juiz internacional, para avaliar as exigências morais de suas sociedades” [1]. O mesmo entendimento foi novamente adotado pela Corte Européia, no famigerado “caso James”, onde a Corte examinou determinada lei britânica que permitia a expropriação de propriedade alugada em nome do interesse público. Na ocasião, a referida Corte decidiu que “devido ao seu conhecimento direto de sua sociedade e de suas necessidades, as autoridades nacionais estão, a princípio, e em melhor posição, de que o juiz internacional, para apreciar o que seria o “interesse público” (...) consequentemente, as autoridades nacionais gozam de uma certa margem de apreciação” [2]. A análise deste trecho acaba sendo de fundamental importância na definição da teoria da margem de apreciação, tendo em vista que dele podemos inferir a ideia fundamental dos defensores desta doutrina.
É de se destacar que a aplicação da teoria da margem da apreciação pela Corte Européia de Direitos Humanos não ficou restrita aos dois supracitados casos destacados acima, tendo a mesma sido aplicada em outros importantes casos nesta referida Corte, como no “Caso Engel”, em que a Corte mais uma vez autolimitou-se, afirmando que “cada Estado é competente para organizar seu próprio sistema de disciplina militar e goza, na matéria, de certa margem de apreciação” [3], bem como no “caso Cossey”, em que a Corte, ao tratar de questão relativa ao direito de os transexuais de modificar a sua identidade e de ter direito ao casamento, decidiu que caberia a cada Estado, de acordo com a sua margem de apreciação, decidir sobre o tema.
Todavia, em que pese a sua aplicação nos casos acima, é importante destacarmos que a teoria da margem da apreciação não vem mais sendo aplicada de forma irrestrita pela Corte Européia de Direitos Humanos. Com efeito, ao julgar o “caso Goldwin”, a Corte decidiu por não aplicar a teoria da margem da apreciação, mudando assim o seu posicionamento, para, condenar o Reino Unido por violação a determinados dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos, no caso, por violação ao direito à vida privada e ao direito do matrimônio. No deslinde deste caso, a Corte Européia decidiu, ainda, que as suas decisões não são vinculantes e que o uso da teoria da margem de apreciação deveria ser feito levando em consideração o princípio da proporcionalidade.
Hodiernamente, vários são os juristas que criticam a teoria da margem de apreciação, por entenderem que ela acaba conduzindo a uma relativização dos direitos humanos, o que acaba não sendo interessante, tendo em vista a necessidade de se garantir uma aplicabilidade e eficácia cada vez maior a estes direitos. Um destes mais eminentes críticos é o jurista brasileiro Antônio Augusto CANÇADO DE TRINDADE, que, ao tratar do tema em sua obra Tratado de Direitos Internacionais dos Direitos Humanos, destaca que: “É bom lembrar que o texto da Convenção Européia de Direitos Humanos não contém nenhuma menção à margem de apreciação nacional: pelo contrário, há a expressa obrigação dos Estados em garantir e respeitar os Direitos Humanos, sem ressalvas ou titubeios”. Cançado de Trindade ainda comemora o fato de que tal doutrina não encontrou um desenvolvimento paralelo explícito na jurisprudência sob a Convenção Americana de Direitos Humanos.
Outro que não concorda com o uso da teoria da margem de apreciação é o professor inglês J. G. Merrils [4], o qual destaca que “se uma Corte Internacional de Direitos Humanos utilizar em demasia a “margem de apreciação”, ela será considerada conservadora e inapta para cumprir seu papel de guardiã dos direitos humanos”. Para Merrils, a aplicação da teoria da margem de apreciação acaba levando a um retrocesso na busca de uma maior efetividade dos direitos humanos.
Os críticos à teoria da margem de apreciação ainda rebatem o argumento dos defensores desta doutrina, que afirmam que a aplicação da margem de apreciação possibilita que as Cortes Internacionais de Direitos Humanos possam exercer sua função de forma subsidiária e moderada, impossibilitando, assim, eventuais arbítrios do juiz internacional. Para estes críticos, a subsidiariedade não deve implicar ou restringir a competência dos órgãos internacionais na avaliação de eventuais violações de direitos humanos. Neste pórtico, cabe-nos registrar a seguinte passagem do voto dissidente do Juiz Martens, no “caso Cossey” da Corte Européia de Direitos Humanos (precedente já superado), o qual afirma que, “se uma coletividade oprime um indivíduo porque não deseja receber mudanças sociais, a Corte deveria ter grande cuidado em não se inclinar tão comodamente em favor de argumentos baseados nas particularidades históricas e culturais de um país” [5].
Feitas estas considerações, podemos constatar que a teoria da margem de apreciação tem sua aplicação realizada de forma mais restrita dentro do sistema europeu de direitos humanos, e mesmo neste sistema vem sofrendo uma certa relativização em sua aplicabilidade, em decorrência do princípio da proporcionalidade. Tal doutrina ainda não encontrou uma aplicação digna de nota no nosso sistema americano de direitos humanos, o que para muitos deve ser festejado, tendo em vista que isto acaba se traduzindo em uma aplicação mais efetiva dos Direitos Humanos no nosso continente.
Referências Bibliográficas:
CANÇADO TRINDADE. Antônio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos humanos, v. II. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2011
RAMOS, André Carvalho de. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 2ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
WEISS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos. 2ª Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2010.
Notas:
[1]. Tradução livre (Corte Européia de Direitos Humanos, Série A, n. 24, parágrafo 48.
[2] Tradução livre. Caso James (Comissão versus Reino Unido), Corte Européia de Direitos Humanos, Série A, n. 98, parágrafo 46.
[3] Corte Européia de Direitos Humanos, Caso Engel, Série A, n.22, parágrafo 59.
[4] MERRILS, G. G., The development of international Law by the European Court of Human Rights. 2ª ed. Manchester: Manchester University Press, 1995, p. 174.
[5] Corte Europeia de Direitos Humanos, Caso Cossey (Comissão versus Reino Unido), Série A, voto dissidente, parágrafo 5.6.3.
Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MORAIS, Ronald Medeiros de. A "Teoria da Margem de apreciação", nos Direitos Humanos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 mar 2013, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34399/a-quot-teoria-da-margem-de-apreciacao-quot-nos-direitos-humanos. Acesso em: 23 dez 2024.
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