O presente artigo busca abordar as mais importantes características da Doutrina da Proteção Integral, base estruturante do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Contudo, primeiramente, faz-se importante delinear os elementos fundamentais da Doutrina da Situação Irregular, que a antecedeu, para, em seguida, ressaltar as principais mudanças trazidas pelo novel estatuto concernente à proteção especial destinada à infância.
Tanto o Código de Menores de 1927 como o Código de Menores de 1979 são marcados por um corte categórico no âmbito de incidência de suas normas, as quais se referem apenas a uma classe social de infância. Pode-se perceber que os destinatários dessas normas eram somente aqueles que estivessem em “situação de perigo moral ou material” ou em “situação irregular”, termos estes definidos em lei e tratados como uma “patologia social”. Na linha do art. 2º do Código de 1979, considerava-se em situação irregular a criança ou o adolescente:
I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de:
a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;
b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;
Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
III - em perigo moral, devido a:
a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;
b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;
IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável;
V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;
VI - autor de infração penal.
A aplicação da norma especial regia-se, portanto, pelo binômio carência/delinquência, uma vez que o enquadramento na situação irregular ocorria pelo simples fato de a criança e o adolescente serem pobres ou, além de pobres, terem praticado uma infração penal.
Percebe-se, então, que àquela época havia uma forte criminalização da infância em situação de pobreza, isto é, a falta de condições econômicas da família para garantir uma vida digna à criança configurava motivo suficiente para o Estado retirá-la do convívio familiar, decretando a perda ou a suspensão do poder familiar, e levá-la a um estabelecimento estatal “adequado” (art. 45, inc. I, da Lei 6.697/79). O Estado, dessa forma, arredava-se da responsabilidade pela desigualdade social e miséria da maioria da população do país e a redirecionava para a criança e para a família, investindo-se do direito de sancioná-las pelo simples fato de serem pobres. Sobre o tema, elucida João Batista Costa Saraiva (2005, p. 51):
Neste tempo, de vigência do Código de Menores, a grande maioria da população infanto-juvenil recolhida às entidades de internação do sistema FEBEM no Brasil, na ordem de 80%, era formada por crianças e adolescente, “menores”, que não eram autores de fatos definidos como crime na legislação penal brasileira. Estava consagrado um sistema de controle da pobreza, que Emílio Garcia Mendez define como sociopenal, na medida em que se aplicavam sanções de privação de liberdade a situações não tipificadas como delito, subtraindo-se garantias processuais. Prendiam a vítima. Esta também era a ordem que imperava nos Juizados de Menores.
O Estado, dessa forma, tratava indiferentemente as questões pertinentes à política social e as relativas à responsabilidade penal, havendo uma verdadeira juridicização dos problemas sociais concernentes à infância e à juventude.
Outra característica marcante da doutrina da Situação Irregular era o tratamento destinado à criança e ao adolescente. Vistos como objetos da norma, eles eram considerados seres passivos, que necessitavam de proteção especial dada pelo Estado, numa perspectiva manifestamente paternalista. Com o brilhantismo que lhe é peculiar, ensina-nos João Batista Costa Saraiva (2005, p. 43):
A idéia de incapacidade dos menores, colocados como insusceptíveis de qualquer responsabilidade, os colocava em uma condição similar aos inimputáveis por sofrimento psíquico, tanto que as medidas aplicáveis aos menores faziam-se por tempo indeterminado, em um caráter muito semelhante à medida de segurança aplicável aos inimputáveis por incapacidade mental.
Assim, não se vislumbrava na criança e no adolescente a ideia de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, mas sim de sujeitos mentalmente incapazes, inaptos para expressarem suas ideias e suas opiniões.
A proteção especial destinada à infância já se faz presente desde a Declaração de Genebra de 1924 (LIBERATI, 2012, P. 52). No entanto, o início da ruptura paradigmática começa a ser visualizada com a Declaração Universal dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 1959. Embora de forma tímida, a criança vai deixando de ser vista como um objeto da norma para ser sujeito de direitos e obrigações próprios de sua condição peculiar de desenvolvimento. Dessa forma, aduz a Declaração dos Direitos da Criança:
VISTO que a criança, em decorrência de sua imaturidade física e mental, precisa de proteção e cuidados especiais, inclusive proteção legal apropriada, antes e depois do nascimento (...)
PRINCÍPIO 1º
A criança gozará todos os direitos enunciados nesta Declaração. Todas as crianças, absolutamente sem qualquer exceção, serão credoras destes direitos, sem distinção ou discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição, quer sua ou de sua família. (grifo nosso)
Observa-se, então, que a aludida Declaração começa a trazer alguns elementos que servirão de base para a construção da Doutrina da Proteção Integral.
Apensar do movimento internacional pela proteção especial à infância, somente com a Constituição de 1988, a Doutrina da Proteção Integral consagrou-se no ordenamento jurídico brasileiro, consolidado-a de vez com a vigência do ECA, em 1990. O art. 227 da Constituição estabelece:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A criança e o adolescente passam, então, de objetos do Direito a sujeitos de direitos, tornando-se “protagonistas de seus próprios direitos” (LIBERATI, 2012, p. 55).
Na linha das lições da professora Ângela Pinheiro (2006, p. 81), “dois princípios se fazem fundantes, nesta representação: a igualdade perante a lei e o respeito à diferença”. O primeiro se expressa na universalização dos direitos e de seus sujeitos, “garantia de todos os direitos para todas as crianças e adolescentes”. Quanto ao segundo, significa dizer que se reconhece à criança e ao adolescente, além dos direitos garantidos a todo e qualquer cidadão brasileiro (excepcionando-se aqui aqueles que para serem exercidos exigissem uma idade mínima – 16 ou 18 anos), um plus de direitos, em razão de se encontrarem em peculiar condição de desenvolvimento.
Nesse sentido, Wilson Liberati (2012, p. 54) acentua a mudança de enfoque, em que as normas destinadas à infantoadolescência deixam de ser destinadas a uma única categoria de infante, abrangendo, agora, todas as crianças e todos os adolescentes, que, por sua vez, devem ter todos os seus direitos assegurados:
(...) a Doutrina da Proteção Integral preconiza que o direito da criança não deve e não pode ser exclusivo de uma “categoria” de menor, classificado como “carente”, “abandonado” ou “infrator”, mas deve dirigir-se a todas as crianças a todos os adolescentes, sem distinção. As medidas de proteção devem abranger todos os direitos proclamados pelos tratados internacionais e pelas leis internas dos Estados.
Cumpre notar que, com a Doutrina da Proteção Integral, há, também, um novo enfoque da ideia de incapacidade da criança e do adolescente. Agora, deixa-se de lado a comparação com os incapazes por ausência de discernimento e passa-se a reconhecer a infância como uma fase delicada de desenvolvimento da pessoa humana, e, por isso, merecedora de cuidados especiais.
Dessa forma, a responsabilidade infracional juvenil deve ser encarada de forma diversa da responsabilidade dos portadores de deficiência mental, pois a inaplicação de penas não é devido à falta de discernimento, mas sim em razão da peculiar condição de pessoa em desenvolvimento. É por esse motivo que as medidas socioeducativas visam preponderantemente o aprendizado do jovem em conflito com a lei; contudo, sem negar por completo o caráter retributivo/punitivo da medida.
Além do que foi dito acima, a nova abordagem acerca da incapacidade nos leva a entender e a considerar de máxima importância a palavra e a opinião da criança e do adolescente. A partir daí, deve-se estimular a participação delas nos espaços de tomadas decisões que lhes afetem, e, considerando sua fase peculiar de desenvolvimento, deve-se buscar as melhores formas para sua intervenção. Assim é que, por exemplo, embora os menores de 16 anos não possam votar, o Estado tem que criar mecanismos para que estes possam da democracia brasileira, desenvolvendo desde cedo o sentimento político e o exercício da cidadania.
Na perspectiva da Proteção Integral, observa-se ainda o desaparecimento de parte dos conceitos vagos e indeterminados, bastante presentes nas legislações anteriores, fato que gerava enorme insegurança jurídica, dando margem para diversas arbitrariedades das autoridades estatais competentes.
Por fim, convém mencionar que, no âmbito internacional, a Doutrina da Proteção Integral somente consagrou-se com o advento da Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança em 1989, atualmente ratificada por vários países membros da ONU.
Em suma, as principais mudanças trazidas pelo novo paradigma da Proteção Integral são: 1) a universalização dos destinatários da norma, abrangendo todas as crianças e todos os adolescentes; 2) o reconhecimento deles como sujeitos de direitos; 3) a nova perspectiva de proteção não mais focada no infante, mas sim nos seus direitos, abandonando o viés paternalista; 4) a proteção especial em razão da condição peculiar de desenvolvimento, não mais os comparando aos incapazes por ausência de discernimento; 5) a incidência da proteção devido à ameaça ou à violação de direitos, afastando-se da ideia de “situação de risco ou perigo moral ou material” ou da “situação irregular”; 6) o deslocamento da situação irregular, passando-se a ver a irregularidade não mais no infante, mas sim nos adultos, nas instituições e nos serviços ao violarem ou ao ameaçarem os direitos das crianças e dos adolescentes ; 7) o abandono dos termos “menor”, “menor abandonado” e “delinquente”; 8) a fundamental importância conferida à opinião deles; 9) a descentralização das competências decisórias, ressaltando-se a importância da participação da sociedade e, sobretudo, das crianças e dos adolescentes; 10) a atuação do juiz de forma técnica, limitada pelas garantias judiciais e em âmbito estritamente jurisdicional; evitando o paternalismo e a arbitrariedade judiciais e a juridicização das políticas sociais; 11) a separação entre as esferas assistencial e penal, execrando a criminalização da pobreza; 12) o reconhecimento de todas as garantias judiciais; e 13) a adoção de medida de privação de liberdade como providência excepcional, devendo ser breve e por tempo determinado, sempre observando a condição peculiar de desenvolvimento.
Apesar das inúmeras mudanças paradigmáticas, a vigência de um ordenamento jurídico fundado na Doutrina da Proteção Integral não é capaz, por si só, de mudar o imaginário acerca da proteção conferida à criança e ao adolescente e de efetivar a aplicação da norma de acordo com os novos preceitos. A implementação da Doutrina da Proteção Integral requer uma disputa constante de conceitos e de ideias acerca da proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes. Para isso, faz-se necessária a presença contínua dos movimentos sociais nos espaços políticos, a fim de dialogar com todos os setores da sociedade sobre a representação da proteção integral. Pois, enquanto a sociedade não tiver consciência da importância da proteção integral da infância, haverá um déficit de efetividade do novo ordenamento jurídico, permanecendo a Doutrina da Proteção Integral apenas no campo teórico.
Referências
BRASIL. Lei 6.697/79. Institui o Código de Menores. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/1970-1979/L6697impressao.htm>. Acesso em: 27 mar. 2013.
BRASIL. Lei 8.089, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 20 mar.2013.
LIBERATI, Wilson Donizeti. Adolescente e ato infracional: medida socioeducativa é pena? 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.
PINHEIRO, Ângela. Criança e Adolescente no Brasil: Porque o Abismo entre a Lei e a Realidade. Fortaleza: Editora UFC, 2006.
SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei – da indiferença à proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
Defensor Público do Estado de Sergipe. Assessor do Núcleo Especializado de Defesa da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Estado de Sergipe. Formado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Pós-Graduando em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-Minas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: QUEIROZ, Paulo Eduardo Cirino de. Da Doutrina "Menorista" à Proteção Integral: mudança de paradigma e desafios na sua implementação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 abr 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34444/da-doutrina-quot-menorista-quot-a-protecao-integral-mudanca-de-paradigma-e-desafios-na-sua-implementacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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