RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo principal abordar o modelo de argumentação denominado por construtivismo kantiano, apresentação a sua distinção para outros modelos de argumentação em teoria moral, tais como o intuicionismo e o utilitarismo. São desenvolvidos e trabalhados durante o texto, os conceitos de autonomia, dignidade humana e moralidade. Fica claro durante o desenvolvimento do trabalho que a concepção de pessoa é o elemento central de um construtivismo do tipo kantiano.
Palavras chave: Autonomia – Construtivismo – Dignidade humana
ABSTRACT: This paper aims to address the main model called a Kantian constructivism arguments, presented the distinction to other models of argument in moral theory, such as intuitionism and utilitarianism. Are developed and worked over the text, the concepts of autonomy, human dignity and morality. It is clear during the development work that the concept of person is the central element of a type of Kantian constructivism.
Keywords: Autonomy - Constructivism - Human Dignity
Sumário: INDTRODUÇÃO; 1 REPRESENTAÇÃO DA RAZÃO; 2 O HOMEM COMO FIM EM SI; 3 REINO DO FINS; 4 AUTONOMIA; CONCLUSÃO.
INTRODUÇÂO
Neste trabalho é demonstrada a característica própria do construtivismo kantiano e a sua distinção para os outros modelos de construtivismo moral.
O que interessa no primeiro momento é distinguir o que seria o construtivismo kantiano, dos outros modelos de construtivismos que não seriam kantianos.
De uma forma geral o procedimento do construtivismo descreve que durante o processo do conhecimento, o objeto não seria apenas um elemento “dado a priori” que fora apresentado como se fosse uma evidência inata. Antes de tudo, o objeto seria pensado e construído a partir de uma sistemática teórica da relação que lhe é posta pelo sujeito.
A variante kantiana do construtivismo, por sua vez, descreve que a concepção da pessoa representa uma centralidade para que no procedimento construtivista os princípios possam ter validade objetiva incondicionada.
Nesta concepção, a pessoa é demonstrada como dotada de razão, sendo por isso mesmo, considerada como fonte autônoma dos seus princípios.
Neste trabalho, portanto, é demonstrado que o modelo kantiano do construtivismo estabelece que a explicação dos pressupostos, a organização dos valores e os preceitos morais, são validados por este procedimento que justifica as máximas que deverão ser adotadas em respeito à lei moral.
A análise deste modelo argumentativo (construtivismo) se faz necessária, porque uma doutrina construtivista kantiana surge como alternativa a outras filosofias morais não-kantianas, como por exemplo, o intuicionismo racional ou o utilitrismo.
De forma geral, o intuicionismo enquanto filosofia da teoria moral, pressupõe que as proposições ou princípios são imediatamente evidentes, em relação a razões válidas que serão utilizadas. O conteúdo das razões utilizadas que justificam as concepções morais, é fixado por uma ordem moral anterior a uma concepção de pessoa.
Por sua vez, o utilitarismo clássico, é a teoria que determina o procedimento da produção do princípio da utilidade, tendo como busca, o bem estar geral. Pode se dizer aqui, que na concepção do utilitarismo clássico seja possível uma supremacia do bem sobre o justo.
Tanto o utilitarismo quanto o intuicionismo, não seriam suficientes enquanto teorias morais, porque o fundamento destas teorias não estaria em puros conceitos racionais abstraídos de toda forma de contingências possíveis. A doutrina kantiana, por outro lado, pressupõe esta pureza dos princípios em relação a contingências.
A idéia do construtivismo kantiano se contrapõe, portanto, as concepções do intuicionismo racional e do utilitarismo clássico, propondo um procedimento de definição de princípios a partir da concepção da pessoa como sendo racional, livre e igual. Como se demonstra no desenvolvimento deste trabalho, uma doutrina kantiana descreve os princípios das máximas da ação de forma autônoma, se contrapondo à idéia do intuicionismo. Da mesma forma, o que é válido para a doutrina kantiana, não seria a maximização do total liquido de felicidade e sim, o conteúdo da máxima da ação. Significa dizer, que o construtivismo kantiano não é apresentado apenas como um modelo de análise, mas sim, enquanto modelo de justificação sobre aquilo que é argumentado.
1. A REPRESENTAÇÃO DA RAZÃO
É preciso dizer, inicialmente, que os conceitos empíricos não são fontes seguras para explicar as máximas das ações humanas e o valor moral destas máximas. Isto porque, o valor moral não se refere às ações visíveis, “mas dos seus princípios íntimos que se não vêem”.[1]
Segundo Kant, é possível dizer que “é absolutamente impossível encontrar na experiência com perfeita certeza um único caso em que a máxima de uma ação, de resto conforme ao dever, se tenha baseado puramente em motivos morais”.[2]
As ações humanas, pelo seu valor moral, se dão pelo “dever”, pois de outro modo, não se poderia fundamentar a máxima de uma ação de forma livre da experiência e das contingências. Contudo, se não é possível afirmar que as ações se dão por dever ao valor moral, é preciso conhecer que a razão, independente de fatores externos a ela mesma, ordena o que deve acontecer.
“(...) mesmo que nunca tenha havido ações que tivessem jorrado de tais fontes puras, a questão não é agora saber se isto ou aquilo acontece, ma sim que a razão por si mesma e independente de todos os fenômenos ordena o que deve acontecer”.[3]
Afirma-se assim, que a razão é o critério seguro para explicar as máximas das ações humanas, se contrapondo, desta forma, com os exemplos empíricos.
“de forma que ações, de que o mundo até agora talvez não deu nenhum exemplo [porque não é possível dá exemplos], de cuja possibilidade poderá duvidar até aquele que tudo funda na experiência, podem ser irremitentemente ordenadas pela razão”.[4]
Por residir a priori na razão, os valores morais valem não só para o homem, mas para todos os seres racionais, de forma necessária e absoluta. Se residissem na experiência, por outro lado, os valores morais não possuiriam este caráter objetivo.
“Se se acrescentar que, a menos que se queira recusar ao conceito de moralidade toda a verdade e toda a relação com qualquer objeto possível, se não pode contestar que a sua lei é de tão extensa significação que tem de valer não só para os homens mas para todos os seres racionais em geral, não só sob condições contingentes e com exceções, mas sim absoluta e necessariamente, torna-se então evidente que nenhuma experiência pode dar motivo para concluir sequer a possibilidade de tais leis apodíticas”.[5]
Esta objetividade dos valores morais, por residirem em puros conceitos racionais, possibilita uma prescrição universal destes princípios que não podem ser obtidos de forma contingente ou condicionada.
Residindo na razão, os princípios morais permitem o conceito de uma vontade livre (a ser explicada mais a frente neste trabalho) de exemplos, sendo que estes, não podem justificar o que reside somente na razão.
“Somente da idéia que a razão traça a priori da perfeição moral e que une indissoluvelmente ao conceito de vontade livre. (...) os exemplos servem apenas para encorajar, (...),mas nunca podem justificar que se ponha de lado o seu verdadeiro original, que reside na razão, e que nos guiemos de exemplos”.[6]
A exatidão do princípio moral, não podendo ser justificado por exemplos empíricos e pela experiência humana, funda-se na razão.
“Pois a pura representação do dever e em geral da lei moral, que não anda misturada com nenhum acrescento de estímulos empíricos, tem sobre o coração humano, por intermédio exclusivo da razão (que só então se dá conta de que por si mesma também pode ser prática), uma influência muito mais poderosa do que todos os outros móbiles que se possam ir buscar ao campo empírico”.[7]
Os princípios morais residindo puramente na razão, têm nesta origem, a sua dignidade para servirem de princípios práticos supremos. Na medida de acréscimo de considerações móbiles ou contingentes, tem-se diminuída a pureza do princípio.
“Do aduzido resulta claramente que todos os conceitos morais têm sua sede e origem completamente a priori na razão, (...); que exatamente nesta pureza da sua origem reside a sua dignidade para nos servirem de princípios práticos supremos”.[8]
O sobredito não significa que os princípios morais sejam dependentes da natureza racional, mas antes disto, que estes princípios devem valer para todo o ser racional em geral, de forma universal.
“Mas aqui não se deve, como a filosofia especulativa o permite e por vezes mesmo o acha necessário, tornar os princípios dependentes da natureza particular da razão humana; mas, porque as leis morais devem valer para todo o ser Racional em geral, é do conceito universal de um ser Racional em geral que se devem deduzir”.[9]
A representação da razão é necessária, para que os valores morais sejam fundados de forma pura. Para tanto, é preciso conhecer os elementos da razão, até o ponto em que nela residem os princípios morais.
Ao passo que o ser racional age segundo princípios, somente ele possui uma vontade. Esta vontade se constitui em razão prática, porque o agir é derivado dos princípios da ação. A vontade consiste desta forma na ação como objetiva e subjetivamente necessária, porque ela é capacidade de escolher a ação conforme aquilo que a razão reconhece como necessário.
“Só um ser Racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou; só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser, que são conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer, como bom”.[10]
Por outro lado, quando a razão não é causa suficiente da vontade, ainda que as ações sejam objetivamente necessárias, serão subjetivamente contingentes, sendo esta relação da vontade com a razão, uma obrigação.
“(...) se a vontade não é em si plenamente conforme a razão (como acontece realmente entre os homens), então as ações, que objetivamente são reconhecidas como necessárias, são subjetivamente contingentes, e a determinação de uma tal vontade, conforme as leis objetivas, é obrigação”.[11]
Significa dizer, que a vontade subjetivamente contingente não obedece necessariamente ao mandamento da razão.
Esta obrigação da vontade subjetivamente contingente em relação à vontade objetivamente necessária constitui-se num mandamento, representado pela fórmula de um imperativo que se expressa pelo dever.
“Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever (Sollen), e mostram assim a relação de uma lei objetiva da razão para uma vontade que segundo a sua constituição subjetiva não é por ela necessariamente determinada (uma obrigação)”.[12]
Os princípios válidos para os seres racionais em geral, constituem esta vontade objetivamente necessária, não para um indivíduo particular ou de forma subjetiva, mas sim, universalmente.
Os imperativos são aplicáveis apenas nas vontades subjetivamente contingentes (obrigações), porque as vontades subjetivamente necessárias estão em conformidade com a representação objetivamente necessária para todos os seres racionais.
“Por isso os imperativos [em especial o imperativo categórico] são apenas fórmulas para exprimir a relação entre as leis objetivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva deste ou daquele ser Racional, da vontade humana, por exemplo”.[13]
Os imperativos podem representar a necessidade prática de uma ação como meio para outra coisa ou podem representar uma ação como objetivamente necessária para si mesma. Quando se trata do primeiro caso, os imperativos são chamados hipotéticos, ao passo que no segundo, são chamados de categóricos.
“Ora, todos os imperativos ordenam hipotética ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade”.[14]
Importa esclarecer, que o imperativo exprime a relação entre a lei objetiva e a imperfeição subjetiva da vontade humana. No caso do imperativo hipotético, a vontade é boa enquanto meio para outra coisa que se queira. No imperativo categórico, a vontade é representada como boa em si mesma em conformidade com a razão, valendo como princípio apodítico.
“O imperativo categórico, que declara a ação como objetivamente necessária por si [diferentemente do imperativo hipotético], independentemente de qualquer intenção, quer dizer, sem qualquer outra finalidade, vale como princípio apodítico (prático)”.[15]
O imperativo categórico não se relaciona com o resultado da ação e não se baseia a qualquer condição de outra intenção, mas antes disto, ordena imediatamente o comportamento, se relacionando com o conteúdo do princípio de qual deriva a ação, consistindo num mandamento da moralidade.
“Há por fim um imperativo que, sem se basear como condição em qualquer outra intenção a atingir por um certo comportamento, ordena imediatamente este comportamento. Este imperativo é categórico. Não se relaciona com a matéria da ação e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio de que ela mesma deriva; e o essencialmente bom na ação reside na disposição (Gesinnung), seja qual for o resultado. Este imperativo pode-se chamar o imperativo da moralidade”.[16]
O mandamento (lei) da moralidade traz consigo a necessidade de agir mesmo contra contingências e inclinações, sendo, portanto, um mandamento de necessidade incondicionada, objetiva e absoluta, não sendo limitado por qualquer condicionamento. Em outras palavras, o imperativo categórico implica na renúncia a todo o querer contingente e externo a ele mesmo.
“Pois só a lei [mandamento moral] traz consigo o conceito de uma necessidade incondicionada, objetiva e conseqüentemente de validade geral, e mandamentos são leis a que tem de se obedecer, quer dizer que se têm de seguir mesmo contra a inclinação”.[17]
Se o mandamento moral ou o imperativo categórico se relaciona com o conteúdo da máxima da ação, independente de fatores externos, ele não pode ser conhecido por qualquer fator da experiência, porque se assim fosse, seria hipotético e não categórico.
“(...) aqui nos não assiste a vantagem de a sua realidade [imperativo categórico] nos ser dada na experiência [como no imperativo hipotético], de modo que não seria precisa a possibilidade para o estabelecermos, mas somente para o explicarmos”.[18]
No imperativo categórico é conhecido imediatamente o seu conteúdo, ao passo que o conteúdo do imperativo hipotético o conteúdo somente é conhecido quando a condição (finalidade) também é conhecida. Desta maneira, no próprio conceito do imperativo categórico está a sua fórmula, que o explica, independente de fatores externos, sendo esta fórmula, a seguinte: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”.[19]
Cumpre ressaltar, um elemento de estrema importância referente à fórmula contida acima, que a pessoa quer a universalidade da máxima da sua ação, porque esta universalidade é o que possibilita o julgamento em geral da máxima como sendo moral, representada pela fórmula:“Temos que poder querer que uma máxima da nossa ação se transforme em lei universal: é este o cânone pelo qual a julgamos moralmente em geral”.[20]
Importa dizer, que sempre que há uma transgressão ao dever, há na verdade um desejo de que a máxima não seja universalizada, consistindo esta transgressão, uma resistência, ou uma exceção ao mandamento da moralidade. A exceção subjetiva se contrapõe à necessidade objetiva do imperativo categórico.
“Se agora prestarmos atenção ao que se passa em nós mesmos sempre transgredimos qualquer dever, descobrimos que na realidade não queremos que a nossa máxima se torne lei universal, porque isso nos é impossível; o contrário dela é que deve universalmente continuar a ser lei; nós tomamos apenas a liberdade de abrir nela uma exceção para nós, ou (também só por esta vez) em favor da nossa inclinação”.[21]
O imperativo categórico exprime, desta forma, que é o dever que contem o conceito de uma verdadeira legislação para as ações humanas, sendo ele mesmo encerrado neste imperativo da moralidade.
“Conseguimos portanto mostrar, pelo menos, que, se o dever é um conceito que deve ter um significado e conter uma verdadeira legislação para as nossas ações, esta legislação só se pode exprimir em imperativos categóricos, mas de forma alguma em imperativos hipotéticos; de igual modo determinamos claramente e para todas as aplicações o que já é muito, o conteúdo do imperativo categórico que tem de encerrar o princípio de todo o dever”.[22]
A universalidade da máxima, implica que o dever tenha validade objetiva, valendo portanto, para todos os seres racionais como tais, mandando o agir, mesmo contra as inclinações, contingências ou outras disposições heterogenias à vontade.
“Pois o dever deve ser a necessidade prática incondicionada da ação; tem de valer portanto para todos os seres racionais (os únicos aos quais se pode aplicar sempre um imperativo), e só por isso pode ser lei também para toda a vontade humana”.[23]
Seria justamente na maior resistência às contingências externas a vontade, ou no menor apoio nas inclinações que residiria a dignidade do mandamento do dever.
“Tanto assim, que a sublimidade e a íntima dignidade do mandamento expresso num dever resplandecerão tanto mais, quanto menor for o apoio e mesmo quanto maior for a resistência que ele encontre nas causas subjetivas, sem que com isto enfraqueça no mínimo que seja a obrigação que a lei impõe ou ela perca nada da sua validade”.[24]
A representação da razão implica numa lei objetiva prática, na relação de uma vontade consigo mesma, determinada somente, pela própria razão. Os fatores empíricos não seriam legítimos para a representação desta vontade consistente na faculdade de agir em conformidade com a representação da lei moral.
“Tudo portanto o que é empírico é, como acrescento ao princípio da moralidade, não só inútil mas também altamente prejudicial à própria pureza dos costumes; pois o que constitui o valor particular de uma vontade absolutamente boa, valor superior a todo o preço, é que o princípio da ação seja livre de todas as influências de motivos contingentes que só a experiência pode fornecer”.[25]
A faculdade de agir em conformidade com a representação da lei moral, consistente na vontade, somente se encontra, nos seres dotados de razão, sendo válidos em igual forma, para todos os seres racionais.
“A vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis. E uma tal faculdade só se pode encontrar em seres racionais. Ora, aquilo que serve à vontade de princípio objetivo da sua autodeterminação é o fim (Zweck), e este, se é dado pela só razão, tem de ser válido igualmente para todos os seres racionais”.[26]
Corretamente representada à razão, verificou-se que os princípios morais não encontram sua sede em fatores extraídos da experiência. Pelo contrário, a máxima do agir segundo uma vontade por conformidade ao mandamento da moralidade, reside propriamente na razão.
A razão consiste, portanto, na pureza de gênese na qual se sustenta o fundamento da máxima de uma ação subjetiva, correspondente a uma máxima objetivamente necessária.
2. O HOMEM COMO FIM EM SI
Na representação da razão, afirmou-se que a máxima da vontade em agir em conformidade com a lei moral é válida para um ser racional e, portanto, de forma objetiva, válida para todos os seres racionais em geral.
Uma vez que a máxima desta vontade não corresponde a fatores externos ao mandamento racional, ela é a condição para a base de um imperativo categórico, afirmando-se a partir de então, que o ser racional, existe não como meio para um fim qualquer, mas como fim em si mesmo.
“Admitindo porém que haja alguma coisa cuja a existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesmo, possa ser a base de leis determinadas, nessa coisa e só nela é que estará a base de um possível imperativo categórico, quer dizer, de uma lei prática.
O homem, e, duma maneira geral, todo o ser raciona, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”.[27]
Significa afirmar, que o homem sempre e simultaneamente tem que ser considerado como fim em si mesmo, seja qual for a sua ação, seja qual for o direcionamento desta sua ação.
Ao passo que os objetos e os seres irracionais possuem um valor condicional ou relativo, eles são chamados de coisas, o homem, sendo um fim em si mesmo, é chamado de pessoa, possuindo um valor absoluto.
“(...) os seres racionais se chama pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida o arbítrio (e é um objeto de respeito)”.[28]
O reconhecimento do homem como fim em si mesmo implica em dizer que ele é um fim objetivo, isto é, uma vez que seu valor não é condicionado ou relativo ele não pode ser substituído por outro ser, porque isto contrariaria o seu valor incondicional e absoluto. Justamente por esta consideração, se pode afirma a possibilidade de um princípio prático supremo da razão.
“Estes [seres humanos] não são portanto meros fins subjetivos cuja a existência tenha para nós um valor como efeito da nossa ação, mas sim fins objetivos, quer dizer, coisas cuja existência é em si mesma um fim, e um fim tal que se não pode pôr nenhum outro no seu lugar em relação ao qual essas coisas servissem apenas como meios; porque de outro modo nada em parte alguma se encontraria que tivesse valor absoluto; mas se todo o valor fosse condicional, e por conseguinte contingente, em parte alguma se poderia encontrar um princípio prático supremo para a razão”.[29]
A vontade humana em conformidade com o mandamento moral corresponde àquilo que é um fim para o ser racional, por ser este, um fim em si mesmo. Assim, a vontade objetivamente necessária serve como vontade universal.
“Se, pois, deve haver um princípio prático supremo e um imperativo categórico no que respeita á vontade humana, então tem de ser tal que, da representação daquilo que é necessariamente um fim para toda a gente, porque é fim em si mesmo, faça um princípio objetivo da vontade que possa por conseguinte servir de lei prática universal. O fundamento deste princípio é: A natureza Racional existe como fim em si. É assim que o homem se representa necessariamente a sua própria existência; e neste sentido, este princípio é um princípio subjetivo das ações humanas”.[30]
Verifica-se portanto, que o reconhecimento do homem como fim em si mesmo é um princípio objetivo por que deriva das leis práticas objetivamente necessárias, como também, é um princípio subjetivo, uma vez que a natureza racional é em si mesma um fim, resultando isto, na seguinte fórmula: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.[31]
Esta consideração do reconhecimento do ser racional como sendo um fim em si mesmo, por consistir na afirmação de que o homem é um valor absoluto e não meramente condicionado ou relativo, implica em dizer, que não pode ser extraída de exemplos da experiência. Isto porque, a condição da universalidade deste reconhecimento do homem como fim em si mesmo e a condição de limitação dos fins subjetivos da ação por este reconhecimento, determinam que tal consideração somente se extrai da própria razão, ou seja, o princípio da vontade reside na regra que a torna capaz.
“Este princípio da humanidade e de toda a natureza Racional em geral como fim em si mesma (que é a condição suprema que limita a liberdade das ações de cada homem) não é extraído da experiência – primeiro, por causa da sua universalidade, pois que se aplica a todos os seres racionais em geral, sobre o que nenhuma experiência chega para determinar seja o que for; segundo, porque nele a humanidade se representa não como fim dos homens (subjetivo), isto é, como objeto de que fazemos por nós mesmos efetivamente um fim, mas como fim objetivo, o qual, sejam quais forem os fins que tenhamos em vista, deve construir como lei a condição suprema que limita todos os fins subjetivos, e que por isso só pode derivar da razão pura”.[32]
Com isso é possível afirmar, que a vontade do ser racional como fim em si mesmo (assim como qualquer ser racional que também consiste em ser fim para si mesmo), é uma vontade legisladora universal que permite subsistir somente as máximas que estejam de acordo com esta vontade. A vontade, portanto, submetida objetivamente a lei é ao mesmo tempo uma vontade legisladora universal.
“(...) o sujeito de todos os fins é (conforme o segundo princípio) todo ser Racional como fim em si mesmo: daqui resulta o terceiro princípio prático da vontade como condição suprema da concordância desta vontade com a razão prática universal, quer dizer, a idéia da vontade de todo o ser Racional concebida como vontade legisladora universal.
Segundo este princípio são rejeitadas todas as máximas que não possam subsistir juntamente com a própria legislação universal da vontade”.[33]
Por ser legisladora universal (mesmo estando subordinada a esta legislação), conclui-se que a vontade não é determinada por nenhum interesse contingente.
“Assim o princípio, segundo o qual toda a vontade humana seria uma vontade legisladora universal por meio de todas as suas máximas, se fosse seguramente estabelecido, conviria perfeitamente ao imperativo categórico no sentido de que, exatamente por causa da idéia da legislação universal, ele se não funda em nenhum interesse, e portanto, de entre todos os imperativos possíveis, é o único que pode ser incondicional; ou, melhor ainda, invertendo a proposição: se há um imperativo categórico (i.e., uma lei para a vontade de todo o ser Racional), ele só pode ordenar que tudo se faça em obediência à máxima de uma vontade que simultaneamente se possa ter a si mesma por objeto como legisladora universal”.[34]
A vontade subordinada e ao mesmo tempo legisladora universal permite afirmar que o ser racional, tendo esta capacidade, é um valor absoluto e por tanto, representado com um fim em si mesmo.
Este reconhecimento do homem como fim em si mesmo, como afirmado acima, não pode ser extraído de exemplos da experiência, mas apenas nos critérios próprios da razão.
3. O REINO DOS FINS
Até agora, foi dito que o homem está ligado à sua própria legislação, ou melhor, que a máxima da sua vontade, subordinada à legislação objetivamente necessária, é também legisladora universal.
Para Kant, é necessária a formulação do conceito de um reino dos fins, para que seja possível o ser racional considerar-se pela máxima da sua vontade, como legislador universal.
O conceito do reino dos fins implica na consideração de uma relação entre seres racionais submetidos a leis objetivas, que se consideram a si mesmos e aos demais, como fins em si mesmos.
“Seres racionais estão pois todos submetidos a esta lei que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si. Daqui resulta porém uma ligação sistemática de seres racionais por meio de leis objetivas comuns, i.e., um reino que, exatamente porque estas leis têm em vista a relação destes seres uns com os outros como fins e meios, se pode chamar um reino dos fins (que na verdade é apenas um ideal)”.[35]
O ser racional por ter a máxima da sua vontade submetida às leis universais é membro do reino dos fins. Todavia, o ser racional, por ser legislador universal (chefe no reino dos fins), não pode estar sujeito ou subordinada a vontade de outro ser racional.
“Mas um ser Racional pertence ao reino dos fins como seu membro quando é nele em verdade legislador universal, estando porém também submetido a estas leis. Pertence-lhe como chefe quando, como legislador, não está submetido à vontade de um outro”.[36]
Este reino possível (consistente num ideal) se torna possível quando a máxima da ação (moralidade) oriunda da vontade do ser racional está ligada a legislação universal, possibilitando o seguinte princípio:
“nunca praticar uma ação senão em acordo com uma máxima que se saivá poder ser uma lei universal, quer dizer, só de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma ao mesmo tempo como legisladora universal”.[37]
Quando, todavia, as máximas não estão necessariamente em conformidade com o princípio objetivo da moralidade, o ser racional age por dever, que pertence ao “chefe” do reino dos fins. Sendo o ser racional integrante, o dever cabe em igual medida a todos os membros do reino dos fins.
“Ora, se as máximas não são já pela sua natureza necessariamente concordes com este princípio objetivo dos seres racionais como legisladores universais, a necessidade da ação segundo aquele princípio chama-se então obrigação prática, isto é, dever. O dever não pertence ao chefe no reino dos fins, mas sim a cada membro e a todos em igual medida”.[38]
O dever está na ligação dos seres racionais uns com os outros, sendo este considerado sempre e simultaneamente como legisladores universais, ou seja, como fins em si mesmos.
A legislação universal está na relação de uma razão com todas as outras razões, constituindo a idéia de dignidade humana. A dignidade humana está na capacidade de reconhecer o ser humano, enquanto ser racional, sempre e simultaneamente como um fim em si mesmo.
“A necessidade prática de agir segundo este princípio, isto é, o dever, não assenta em sentimentos, impulsos e inclinações, mas sim somente na relação dos seres racionais entre si, relação essa em que a vontade de um ser Racional tem de ser considerada sempre e simultaneamente como legisladora, porque de outra forma não podia pensar-se como fim em si mesmo. A razão relaciona, pois cada máxima da vontade concebida como legisladora universal com todas as outras vontades e com todas as ações para conosco mesmos, e isto não em virtude de qualquer outro móbil prático ou de qualquer vantagem futura, mas em virtude da idéia de dignidade de um ser Racional que não obedece a outra lei senão àquela que ele mesmo simultaneamente dá”.[39]
Segundo Kant, tudo aquilo que tem um valor relativo ou condicionado, ou melhor, tudo aquilo que possui um preço, pode ser torçado por outra coisa equivalente. Todavia, existe algo no reino dos fins que não possui um preço e sim, possui dignidade.
“No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.
O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme certo gosto, isto é, a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento (Affektionspreis); aquilo porém que constitui a condição graças a qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é, dignidade”.[40]
A dignidade consiste, portanto, na possibilidade de se considerar algo como um fim em si mesmo. Na concepção kantiana, a moralidade como condição de um ser racional considerar-se como um fim em si mesmo, possui dignidade, sendo que o próprio ser humano, capaz da moralidade, também é dotado de dignidade. Esta dignidade é suficiente para que a máxima de uma ação não seja simplesmente guiada por qualquer contingência ou inclinação, mas é guiada somente pela imposição da razão à vontade.
“Estas ações não precisam também de nenhuma recomendação de qualquer disposição ou gosto subjetivos para as olharmos com favor e prazer imediatos; não precisam de nenhum pendor imediato ou sentimento a seu favor: elas representam a vontade, que as exerce, como objeto de um respeito imediato, pois nada mais se exige senão a razão para as impor à vontade e não para as obter dela por lisonja, que aliás seria contraditório tratando-se de deveres”.[41]
Esta dignidade humana, consistente no reconhecimento do homem como um fim em si mesmo, permite que o mesmo esteja inserido como legislador universal no reino dos fins, restando claro, que pela sua própria consideração como fim em si, o homem já estava destinado a ser legislador universal no reino dos fins. A legislação universal a qual o homem racional se submete, em virtude desta consideração é também a legislação que ele mesmo se dá, enquanto legislador.
A dignidade humana consiste em reconhecer o ser humano como um fim em si mesmo, sendo que o homem é digno, por ser dotado de autonomia.
Pela consideração acima é possível afirmar que em essência, as máximas de uma ação em conformidade com a moral possuem uma forma consistente na universalidade, ou seja, uma matéria. Considerando o ser humano como condição restritiva de todos os fins relativos e também uma determinação completa consistente na concordância de todas as máximas com a idéia do reino dos fins, há uma aproximação das máximas da ação, da intuição.
“Todas as máximas têm, com efeito:
1) Uma forma, que consiste na universalidade, e sob este ponto de vista a fórmula do imperativo moral exprime-se de maneira que as máximas têm de ser escolhidas como se devessem valer como leis universais da natureza;
2) Uma matéria, isto é, um fim, e então a fórmula diz: o ser Racional, como fim segundo a sua natureza, portanto como um fim em si mesmo, tem de servir a toda a máxima de condição restritiva de todos os fins meramente relativos e arbitrários;
3) Uma determinação completa de todas as máximas por meio daquela fórmula, a saber: que todas as máximas, por legislação própria, devem concordar com a idéia de um reino possível dos fins como um reino da natureza”.[42]
Das afirmações até aqui expostas, é possível dizer, que a vontade do ser racional, para ser uma boa vontade, está na sua condição de universalidade, estando configurada na fórmula: “Age sempre segundo aquela máxima cuja a universalidade como lei possas querer ao mesmo tempo; esta é a única condição sob a qual uma vontade nunca pode estar em contradição consigo mesma”.[43]
A razão distingue o homem dos demais seres, sendo ele, reconhecido como um fim em si mesmo. Este reconhecimento do homem como um fim em si mesmo, todavia, é um reconhecimento negativo, isto é, nunca se dever agir contra este fim e este fim, nunca dever utilizado simplesmente como meio, mas sempre e simultaneamente como fim em si mesmo.
“A natureza Racional distingue-se das restantes por se pôr a si mesma como um fim. Este fim seria a matéria de toda a boa vontade. Mas como na idéia de uma vontade absolutamente boa, sem condição restritiva (o fato de alcanças este ou aquele fim), se tem de abstrair inteiramente de todo o fim a realizar (o que faria toda a vontade só relativamente boa), o fim aqui não deverá ser concebido como um fim a alcançar, mas sim, como fim independente, portanto só de maneira negativa; quer dizer: nunca se deverá agir contra ele, e não deve ser avaliado nunca como simples meio, mas sempre simultaneamente como fim em todo o querer”.[44]
É o mesmo que dizer, que o reconhecimento do ser racional como fim em si, não se refere à possibilidade dele ser posto como fundamento de todas as máximas como meio, mas sim, como condição restritiva na utilização dos meios.
“O sujeito dos fins, isto é, o ser Racional mesmo, não deve nunca ser posto por fundamento de todas as máximas das ações como simples meio, mas como condição suprema restritiva no uso dos meios, isto é, sempre e simultaneamente como fim”.
Este reconhecimento do ser racional como condição restritiva no uso de todos os meios, implica que o ser racional se submete à legislação do reino dos fins, porque ao mesmo tempo ele é considerado como legislador universal. Justamente por constituir-se como legislador universal, que o ser racional se distingue como sendo um fim em si mesmo.
“Ora, daqui segue-se incontestavelmente que todo o ser Racional, como fim em si mesmo, terá de poder considerar-se, com respeito a todas as leis a que possa estar submetido, ao mesmo tempo como legislador universal; porque exatamente esta aptidão das suas máximas a constituir a legislação universal é que o distingue como fim em si mesmo”.
Da concepção de dignidade, reconhecendo o ser humano como um fim em si mesmo, resulta que todo ser racional tome suas máximas considerando a si mesmo e igualmente a todos os seres racionais como legisladores universais, resultando daí o princípio formal: “Age como se a tua máxima devesse servir ao mesmo tempo de lei universal (de todos os seres racionais)”.[45]
As regras prescritas aos seres racionais pelo imperativo categórico, possibilitam portanto, um reino dos fins. Estas regras, ordenam categoricamente, por que são regras da razão, não considerando qualquer outra vantagem das contingências ou das inclinações, mas tão somente, reconhecendo o homem como sendo digno.
“(...) a simples dignidade do homem considerado como natureza Racional, sem qualquer outro fim ou vantagem a atingir por meio dela, portanto o respeito por uma mera idéia, deva servir no entanto de regra imprescindível da vontade, e que precisamente nesta independência da máxima em face de todos os motivos desta ordem consista a sua sublimidade, tornando todo o sujeito Racional digno de ser um membro legislador no reino dos fins”.[46]
É na ligação da legislação universal com as suas máximas que consiste a percepção da moralidade como sendo a relação das ações com a autonomia da vontade. Em outras palavras a “moralidade é pois a relação das ações com a autonomia da vontade, isto é, com a legislação universal possível por meio da suas máximas”.[47]
4. A AUTONOMIA
Foi dito aqui, que o fundamento da vontade de todo ser racional é a autonomia, ou seja, o ser humano é reconhecido como um fim em si mesmo porque é dotado de autonomia da vontade. Assim, a autonomia consiste numa vontade que é para si mesma a sua lei.
Esta lei que o ser racional dá a si mesmo, deve valer objetivamente como lei universal para todos os seres racionais.
“Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças a qual ela é para si mesma a sua lei (independente da natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente no querer mesmo, como lei universal”.[48]
Esta regra prática da autonomia é verdadeiramente, segundo Kant, um princípio moral, ainda que não se possa mostrar, pelos conceitos nela contidos, que a vontade de todo o ser racional esteja ligada a ela mesma como condição.
“Que esta regra prática seja um imperativo, quer dizer, que a vontade de todo o ser Racional esteja necessariamente ligada a ela mesma como condição, é coisa que não pode demonstrar-se pela simples análise dos conceitos nela contidos, pois se trata de uma proposição sintética; (...). Pela simples análise dos conceitos da moralidade pode-se, porém, mostrar muito bem que o citado princípio da autonomia é o único princípio moral. Pois desta maneira se descobre que esse seu princípio tem de ser um imperativo categórico, e que este imperativo não manda nem mais nem menos do que precisamente esta autonomia”.[49]
Significa dizer que um princípio fundado na heteronomia da vontade, ou seja, quando a razão não determina a vontade não é verdadeiramente um princípio legítimo da moralidade, não se assentando portanto, na fórmula do imperativo categórico.
“Não é a vontade que então se dá a lei a si mesma, mas é sim o objeto que dá a lei à vontade pela sua relação com ela. Esta relação, quer assente na inclinação, quer em representações da razão, só pode tornar possíveis imperativos hipotéticos”.[50]
O princípio da autonomia da vontade, ao seu modo, implica que a razão não seja uma mera estratégia para qualquer que seja a finalidade, mas sim, que ela (razão) seja determinante da vontade como lei para si mesma.
É possível afirmar, que a autonomia refere-se à liberdade da vontade do ser racional em fundamentar a sua ação somente pelas prescrições do mandamento da razão.
Esta liberdade se assenta na capacidade do ser racional em ser legislador universal, sendo portanto legislador de si mesmo e, por esta característica, ser reconhecido como um fim em si.
A liberdade consiste na concepção da autonomia da vontade ser par si mesma uma lei de validade prática incondicionada, ou seja, uma lei que prescreve o fundamento da ação pelas prescrições da razão.
“Ela [liberdade] vale somente como pressuposto necessário da razão num ser que julga ter consciência duma faculdade bem diferente da simples faculdade de desejar (a saber, a faculdade de se determinar e agir como inteligência, por conseguinte segundo leis da razão [...])”.[51]
Pela autonomia, a vontade é independente da sensibilidade, porque o homem é livre no uso da razão, pensando a si mesmo como independente de impressões sensíveis.
Todo ser racional, no mesmo enfoque, deve agir sob a idéia de liberdade, porque todo ser racional tem vontade e, como já foi dito, esta vontade constitui-se na representação da razão prática.
“todo o ser que não pode agir de outra maneira senão sob a idéia da liberdade, é, por isso mesmo, do ponto de vista prático, realmente livre; quer dizer que todas as leis inseparavelmente associadas à liberdade, valem para ele exatamente como se a sua vontade fosse também reconhecida livre em si mesma e por motivos válidos”.[52]
Uma vez que a pessoa racional é legisladora universal, a mesma obedece somente a lei que ela simultaneamente dá, ou seja, sendo livre, deve obediência somente às leis que ela mesmo se propõe, segundo as quais as máximas possam pertencer a uma legislação universal.
A liberdade estaria presente, primeiro, porque o ser racional é o verdadeiro legislador universal e tal legislação, se deu de forma independente de fatores da experiência e de quaisquer contingências. A liberdade consiste na vontade independente de fatores heteronomos.
“nós poderemos sempre ser libertos das prescrições, renunciando ao fim; ao invés, o preceito incondicionado não entrega, por forma alguma, ao beneplácito da vontade a faculdade de optar pelo contrário: portanto só ele implica em si aquela necessidade que reclamamos para a lei”[53]
Segundo, porque ele (ser racional) deve obediência somente à sua própria legislação, ou seja, não sendo obrigado por máximas subjetivas externas à sua autonomia.
Pode se afirmar então, que a liberdade é demonstrada quando a vontade humana está vinculada aos preceitos da razão.
Estando claro que a máxima da ação não se funda em princípios empíricos, resta afirmar que é a liberdade que separa o ser racional, de todo o empirismo contingente.
A liberdade é justamente a capacidade que consiste na independência da máxima da ação das causas determinantes de tudo que é dado pela experiência, sendo por isso mesmo, possível a afirmação de que a heteronomia não pode ser a fonte legítima dos princípios da moralidade.
“Pois quando pensamos uma tal vontade, veremos que, enquanto existe a possibilidade de uma vontade sujeita a leis estar ainda ligada a estas leis por um interesse, todavia é impossível que uma vontade, que seja suprema legisladora, dependa neste sentido de um interesse qualquer”.[54]
A liberdade, portanto, como atributo da razão, constitui-se em absoluta espontaneidade, isto é, a liberdade não está vinculada de qualquer causa de ordem heterônoma, ou seja:
“pois o que constitui o valor particular de uma vontade absolutamente boa, valor superior a todo preço [este não pode ser um valor relativo], é que o princípio da ação seja livre de todas as influências de motivos contingentes que só a experiência pode fornecer”[55]
A idéia de autonomia da vontade é a própria idéia de liberdade, ou seja, a liberdade da vontade é a autonomia, porque a vontade consiste em ser lei para si mesma.
A liberdade da pessoa é possível, porque o ser racional considera a si mesmo como autor da legislação universal à qual deve obediência.
Vontade livre e vontade obediente à lei moral, desta forma, são as mesmas coisas, ou seja, são ambas autonomia, logo a moralidade seria o princípio da liberdade.
“A vontade é uma espécie de causalidade dos seres viventes, enquanto dotados de razão, e a liberdade seria a propriedade que esta causalidade possuiria de poder agir independentemente de causas estranhas que a determinam”.[56]
Pelo mesmo fato da pessoa racional pautar a sua máxima sem influência das suas inclinações, é que ela deve agir pautada pelo dever de respeito à lei moral, ou seja, o mandamento da lei moral deve ser seguido, ainda que em prejuízo das inclinações.
A obediência à legislação universal implica em liberdade, porque a legislação universal é produto da razão, portanto da autonomia da pessoa.
A sublimidade da ação está na liberdade do ser racional para agir mesmo que a sua máxima seja contrária às suas inclinações e contingências da sensibilidade.
A liberdade é, portanto, a faculdade para que o ser racional, ao mesmo tempo afetado pelos sentidos, querer aquilo que só a razão lhe prescreve como dever.
“Para que um ser, que é, a um tempo, Racional e afetado pela sensibilidade, queira o que só a razão prescreve como .dever, é preciso que a razão tenha a faculdade de lhe inspirar um sentimento de prazer ou de satisfação pelo cumprimento do dever, e, conseguintemente, uma causalidade, pela qual determine a sensibilidade conforme a seus princípios”.[57]
É possível afirmar, somente assim, que a lei moral é uma lei suprema da liberdade, sendo esta, o fundamento das ações humanas.
CONCLUSÃO
Uma teoria construtivista é alicerçada nas justificativas dos princípios que não são dados de forma externa à construção, mas sim, no fato dos princípios estarem justificados na própria construção, ou seja, é na independência de fatores externos à construção que se fundamenta os seus princípios.
A doutrina kantiana demonstra bem esta percepção do princípio da moralidade não sofrer nenhum tipo de influência das contingências e das inclinações possíveis ao ser humano.
Seria exatamente na razão enquanto determinante da vontade, que o ser humano, pela autonomia, fundamenta a máxima da sua ação independentemente de qualquer fator empírico.
Esta autonomia, por sua vez, possibilita compreender o ser humano como um fim em si mesmo, ou seja, como meio restritivo para todos os fins possíveis.
Reconhecer o ser humano como um fim em si mesmo, é o mesmo que reconhecer que o mesmo é dotado de dignidade, não podendo ser utilizado simplesmente como meio para este ou aquele querer, mas sempre e simultaneamente como um fim, ou seja, como legislador universal.
Não sendo simplesmente um meio de uma ou outra vontade, o ser humano não é apenas um valor relativo ou condicionado, mas sim, um valor supremo, absoluto e incondicionado. Justamente por ser um valor absoluto, o ser humano é chamado de pessoa e não simplesmente de coisa.
Significa afirmar, que o ser humano determina a sua vontade pela razão. A sua vontade determinada pela razão implica no reconhecimento desta vontade como lei para si mesma, ou seja, o ser humano é dotado de autonomia. A autonomia é a condição para que o ser humano seja considerado como dotado de dignidade e esta dignidade, consistente no reconhecimento do homem como um fim em si, é que possibilita o ser humano ser chamado de pessoa.
Vê-se então, que é este conceito de pessoa a chave para dizer se um construtivismo é ou não kantiano.
Diferentemente de outros tipos de construtivismos ou até mesmo de outras terias como o intuicionismo e o utilitarismo, o construtivismo kantiano tem uma condição que justifica qualquer princípio, sendo esta condição, a concepção de pessoa.
Segundo Rawls, em Kant está claro este reconhecimento da pessoa, colocada acima de qualquer preço:
“Assim, respeitar as pessoas é reconhecer que elas possuem uma inviolabilidade fundada na justiça, que não pode ser sobrepujada nem mesmo pelo bem-estar da sociedade como um todo. [...] As prioridades lexicais da justiça representam o valor das pessoas que, segundo Kant, estão acima de qualquer preço”[58]
É a pessoa, enquanto dotada de uma vontade determinada pelas prescrições da razão, que autonomamente fundamenta a máxima da tua ação, de tal forma que a mesma possa valer objetivamente sob as condições da universalidade.
A pessoa ocupa uma posição fundamental para o desenvolvimento da variante kantiano do construtivismo, porque sendo um ser racional, é a única que seria capaz de pautar a máxima da sua ação não como meio para outra intenção, validando assim, a lei como uma obrigação de necessidade absoluta.
A fórmula do imperativo categórico descreve com clareza, o reconhecimento da pessoa que tem legitimada a máxima da tua ação, pela universalidade.
Na fórmula do imperativo moral, se reconhece a concepção da pessoa como sendo moral, por isso mesmo livre e igual aos demais seres racionais.
Cumpre dizer que como pessoa dotada de razão, o ser racional deseja (não sendo este um desejo meramente subjetivo) que as suas faculdades morais estejam plenamente desenvolvidas. Mesmo não sendo bem este o contexto, Kant deixa claro esta percepção: “Pois como ser racional quer ele necessariamente que todas as suas faculdades se desenvolvam, porque lhe foram dadas e lhe servem para toda a sorte de fins possíveis”.[59]
Com isto, contrariando qualquer sorte de teorias possíveis, um construtivismo kantiano pressupõe uma concepção particular de pessoa moral, como elemento possível de definição de um princípio.
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[4] IBID, p. 214, 1948.
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[23] IBID, p. 226, 1948.
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[26] IBID, p. 228, 1948.
[27] IBID, p. 228, 1948. 228/229
[28] IBID, p. 229, 1948..
[29] IBID, p. 229, 1948.
[30] IBID, p. 229, 1948.
[31] IBID, p. 229, 1948.
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[58] RAWLS, John, Uma Teoria da Justiça, p. 653, 2ª edição, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2002
[59] KANT, Emanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 225 Coleção Pensadores, Tradução Paulo Quintela. Coimbra, agosto de 1948.
Doutorando em Direito Penal pela PUC Minas. Mestre em Filosofia pela FAJE/MG. Advogado Criminalista.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Francisco José Vilas Bôas. O Construtivismo na obra de Kant Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 abr 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34489/o-construtivismo-na-obra-de-kant. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Milena Calori Sena
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