Orientador: Eduardo Maneira
1. INTRODUÇÃO
O poder judicial de tributar, tema da presente obra, é uma denominação decorrente da capacidade do Poder Judiciário de se valer do ativismo judicial em lides que versem sobre matéria tributária.
A fim de compreendermos o poder judicial de tributar, assim como possíveis aplicações práticas e suas limitações, faz-se mister primeiramente que entendamos o que é o chamado ativismo judicial.
Ativismo judicial é uma expressão dotada de significados distintos, mais comumente utilizada para designar uma postura por parte dos Magistrados que diante de conflitos, muitas vezes trazem para dentro de seu âmbito de discussão temas de índole política, ou seja, que poderiam ser resolvidos dentro da esfera Legislativa ou Executiva. Estudaremos adiante o seu significado mais profundamente, assim como suas características.
No que concerne a tributação, sabe-se que o poder de tributar é constitucionalmente amparado e limitado por princípios explícitos, como o princípio da legalidade, isonomia, irretroatividade, não confisco, entre outros.
O objeto do presente trabalho é analisar a possibilidade de uma postura ativista por parte dos magistrados em lides que versem sobre Direito Tributário, uma vez que a matéria, no Brasil, é alicerçada nos princípios da legalidade e no da não surpresa.
Primeiramente faremos uma análise histórica da evolução do ativismo judicial no Brasil, culminando com o estudo das principais características elencadas pela doutrina jurídica.
Em um segundo momento, analisaremos os princípios constitucionais tributários supostamente conflitantes com o poder judicial de tributar, quais sejam o princípio da não surpresa e o princípio da legalidade tributária.
Posteriormente estudaremos casos concretos de matéria tributária onde é possível notar a manifestação do ativismo judicial.
E por fim, colocaremos em choque os princípios constitucionais tributários com a postura ativista adotada pelos magistrados.
Passemos agora ao estudo da origem e da evolução do Ativismo Judicial no direito brasileiro.
2. A EVOLUÇÃO DO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL
A fim de adentrarmos no nascimento do ativismo judicial no Brasil e entendermos suas origens e sua evolução no sistema jurídico brasileiro, cumpre analisarmos paralelamente outro fenômeno, a “judicialização da política”.
A judicialização da política no Brasil é um fenômeno jurídico cuja origem se dá por causas distintas, vejamos as principais delas [1]:
1) a redemocratização do país, com marco na Assembleia Nacional Constituinte de 1988, momento em que o cidadão passa a ter maior acesso ao Poder Judiciário;
2) a força normativa da Constituição, deixando-se de lado a concepção de que ela seria um mero tratado político. Passou-se a entender, em similitude ao que ocorria nos Estados Unidos da América desde o século XIX e na Europa Ocidental a partir da segunda metade do século XX, que as normas constitucionais são normas jurídicas, plenamente eficazes, cujo cumprimento é judicialmente sindicável;
3) o modelo brasileiro de Constituição analítica trouxe, para a discussão constitucional, temas que antes eram tratados em plano de legislação ordinária, o que certamente ampliou o campo de atuação do Poder Judiciário, especialmente do Supremo Tribunal Federal;
4) a adoção de um modelo de controle híbrido de constitucionalidade em nosso país, alinhando o sistema difuso e incidental dos Estados Unidos ao sistema de controle abstrato e concentrado austríaco, inspirado nas concepções de Hans Kelsen. Em apertada síntese, o primeiro modelo de controle permite que qualquer juiz ou tribunal declare a inconstitucionalidade de ato normativo cuja validade perante a Constituição Federal seja questão prejudicial à apreciação do pedido em determinada causa. Por sua vez, de acordo com o modelo kelseniano o controle em tese ou em abstrato, de constitucionalidade é de competência exclusiva de um tribunal especializado;
5) a ampliação do rol de pessoas legitimadas a ajuizar ação direta de inconstitucionalidade pela Constituição de 1988, bem como a criação de novas modalidades de ações de controle abstrato de constitucionalidade.
Observa-se que o processo de judicialização da política possui dois ramos distintos. Por um lado, notamos a politização do Poder Judiciário, que se traduz na expansão dos poderes de executar leis e de legislar para o Poder Judiciário. Por outro, constatamos a “Tribunalização da Política”, ou seja, a difusão de técnicas de argumentação e aplicação das normas de Direito para os Poderes Legislativo e Executivo.
Ademais, com o advento do fenômeno da judicialização da política, muitos dos conflitos de natureza política ou sobre temas morais controversos passaram a ser resolvidos pelo Poder Judiciário.
É inserido nesse ambiente de judicialização da política que temos o fomento do chamado ativismo judicial, fruto de uma visão predominantemente neoconstitucionalista.
O neoconstitucionalismo – produto do movimento de transformações metodológicas, teóricas e ideológicas ocorridas no âmbito do Direito Constitucional, no período posterior à 2ª Guerra – trabalha com as teses da aplicação direta das normas constitucionais, da interpretação das leis conforme a Constituição e também da influência da Carta Constitucional sobre as relações políticas.
Essa nova perspectiva em relação ao constitucionalismo tem como um dos pontos marcantes o Estado constitucional de direito, ou seja, a constituição possui uma elevada carga valorativa. Dessa forma, as leis e os Poderes Públicos devem estar em consonância com o espírito, com o caráter axiológico, e com os valores impressos na Constituição. Dessa forma, a Carta Maior possui o status de norma jurídica, dotada de imperatividade, superioridade e centralidade. [2]
Diversas são as críticas tecidas ao neoconstitucionalismo. Entre elas temos principalmente a desconfiança frente ao legislador parlamentar, comprometendo o seu pluralismo e a sua liberdade. [3]
Conforme ensina Luís Roberto Barroso, o ativismo judicial possui origens na atuação da Suprema Corte norte americana, vejamos:
As origens do ativismo judicial remontam à jurisprudência norteamericana. Registre-se que o ativismo foi, em um primeiro momento, de natureza conservadora. Foi na atuação proativa da Suprema Corte que os setores mais reacionários encontraram amparo para a segregação racial (Dred Scott v. Sanford, 1857) e para a invalidação das leis sociais em geral (Era Lochner, 1905-1937), culminando no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte, com a mudança da orientação jurisprudencial contrária ao intervencionismo estatal (West Coast v. Parrish, 1937). A situação se inverteu completamente a partir da década de 50, quando a Suprema Corte, sob a presidência de Warren (1953-1969) e nos primeiros anos da Corte Burger (até 1973), produziu jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais, sobretudo envolvendo negros (Brown v. Board of Education, 1954), acusados em processo criminal (Miranda v. Arizona, 1966) e mulheres (Richardson v. Frontiero, 1973), assim como no tocante ao direito de privacidade (Griswold v. Connecticut, 1965) e de interrupção da gestação (Roe v. Wade, 1973). [4]
Os Estados Unidos da América adotam um modelo sintético de Constituição, contendo em seu corpo apenas sete artigos, e sendo alvo de vinte e sete emendas constitucionais ao longo da história.
Por outro lado, a Carta Magna brasileira é classificada como analítica (ou também chamada de prolixa), conforme previamente elucidado. Logo, nossa Constituição trata de questões inerentes à legislação infraconstitucional. Dessa forma, é conferido ao nosso Supremo Tribunal Federal uma margem mais ampla de atuação no que concerne a aplicação direta do texto constitucional.
No Brasil, uma das primeiras manifestações do ativismo judicial ocorreu quando o STF, com base no princípio democrático, proferiu decisão no sentido de impor a perda do mandato à todos aqueles que mudassem de partido político após o término da eleição, ainda que não exista previsão expressa no texto legal.
Portanto, de posse dos ensinamentos acerca da incorporação do ativismo judicial no Brasil, iremos no próximo capítulo distinguir os conceitos de “ativismo judicial” de “judicialização da política”, bem como as características de ambos.
3. AS ESPÉCIES E CARACTERÍSTICAS DO ATIVISMO JUDICIAL
A distinção dos conceitos de ativismo judicial e de judicialização da política não se encontra pacificado na doutrina jurídica. No entanto, os ensinamentos majoritários apontam a abrangência de cada um dos institutos como característica chave para a diferenciação.
Nesse aspecto, o conceito de judicialização da política se refere às condições jurídicas, políticas e institucionais que favoreceriam a transferência decisória dos Poderes Legislativo e Executivo para o Poder Judiciário.
O conceito de ativismo judicial, por sua vez, tem como fundamento o comportamento de magistrados no sentido de revisar temas e questões de competência de outros Poderes[5], ou seja, de participar da elaboração de políticas que normalmente são feitas pelas outros Poderes, bem como de substituir as decisões feitas por esses Poderes ou suprir omissões desses poderes.
Os magistrados no uso do ativismo judicial podem ter posicionamentos progressistas ou conservadores. Essa atitude decisória surge em face da morosidade do Poder Legislativo na edição de leis, transferindo para o STF a tarefa de regulamentar temas sem o consenso da sociedade, sendo medida pela frequência da invalidação das normas dos outros poderes[6]. Ao utilizar do ativismo judicial, o judiciário atua além de um mero órgão de fiscalização negativa da Constituição.
Mediante as alterações feitas pela Emenda Constitucional n° 45/2004, e pela mudança da composição do STF a partir de 2003, percebe-se um ativismo judicial formal e preocupado com a redefinição das competências do STF, como um processo autônomo de nossa jurisdição constitucional.
É possível identificar duas espécies de ativismo judicial. O ativismo forte, o qual é exercitado sem a utilização de parâmetros jurídico-normativo, e o ativismo fraco, o qual utiliza a Constituição, a legislação infraconstitucional e outras fontes formais de direito para regular uma política pública ou regulamentar uma norma Constitucional.
O Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, em seu voto proferido no julgamento da ADPF 3510-DF, que objetivava a declaração de inconstitucionalidade do art. 5° da Lei n° 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), a qual permitia, para fins de pesquisa, o aproveitamento de células-tronco embrionárias contidas em embriões não utilizáveis, nos apresenta quatro das sete dimensões do ativismo judicial mencionadas por William P. Marshall, quais sejam:
1) Ativismo Contramajoritário - Expressa o não constrangimento do Tribunal Constitucional em atuar contra-majoritariamente, declarando a inconstitucionalidade de decisões de órgãos de poderes democraticamente eleitos.
2) Ativismo Jurisdicional - Aumento da competência da Jurisdição Constitucional, para apreciar e decidir de casos políticos e morais controversos. Gilmar Mendes critica o dogma da atuação da Jurisdição Constitucional como Legislador Negativo. Fortalece aspecto vinculante das decisões do Tribunal Constitucional.
3) Criatividade Judicial - Criação de novas teorias e direitos na Jurisdição Constitucional. Gilmar Mendes expõe Teoria da Representação Argumentativa de Robert Alexy.
4) Ativismo Remedial - Instituição, pelo Poder Judiciário, de obrigações positivas. No caso concreto, Ministro Gilmar Mendes sugeriu que o executivo criasse órgão fiscalizatório no setor da saúde.
Ainda que não mencionadas pelo Ministro Gilmar Mendes, William P. Marshall [7] nos mostra ainda mais 3 dimensões do ativismo judicial, vejamos elas:
1) Ativismo Não Originalista – Essa dimensão de ativismo judicial é marcada pelo não reconhecimento de originalismo na interpretação realizada pelo Poder Judiciário, desconsiderando a intenção do legislador e as concepções estritas do texto normativo.
2) Ativismo de Precedentes – Nessa dimensão há a ocorrência da rejeição de precedentes antes estabelecidos.
3) Ativismo Partisan – O Poder Judiciário busca, através do Ativismo Judicial, almejar objetivos específicos de uma determinada parte da sociedade.
No campo doutrinário, muitas são as críticas tecidas à adoção recente e cada vez mais comum dessa postura, como por exemplo, os comentários feitos pelo professor Lenio Streck:
Aliás, aqui parece ser o momento ideal para esclarecer uma questão que tem sido tratada de forma superficial em terrae brasilis. Trata-se do modo tabula rasa como tem sido empregado o termo ativismo judicial. Note-se: nos Estados Unidos, a discussão sobre o governo dos juízes e sobre o ativismo judicial acumula mais de duzentos anos de história. Quanto a isso, basta recordar que o mesmo Marshall que instituiu o precedente que consagrou o judicial review foi também quem iniciou, no case McCulock v.s. Maryland, a tradição do judicial self restraint. Sintomático, também, que a segunda decisão em sede de controle de constitucionalidade nos EUA só se deu cinquenta e dois anos depois da primeira.
(...)
De pronto, consigno que, quando o judiciário age – desde que devidamente provocado – no sentido de fazer cumprir a Constituição, não há que se falar em ativismo. O problema do ativismo surge exatamente no momento em que a Corte extrapola os limites impostos pela Constituição e passa a fazer política judiciária, seja para o “bem”, seja para o “mal”. [8]
Nessa esteira, adicionalmente são tecidos comentários acerca de uma suposta violação ao princípio da separação dos poderes, cláusula pétrea contida no art. 2° de nossa Carta Maior, conforme defende o doutrinador Carlos Eduardo Dieder Reverbel.
O ativismo judicial centra-se neste ponto. O juiz transpassa o campo do direito e ingressa na seara política. Assim resolve problemas políticos por critérios jurídicos. Isto se dá, dentre outras razões, pelo desprestígio da lei, ineficiência da política, dificuldade da própria administração, malversação dos recursos públicos (...). Quando se confunde o campo jurídico com o campo político, a consequência é fatal: o julgador acaba fazendo uma má política, por meios jurídicos. (...) O ativismo, assim, na busca de uma solução mágica, na extração de um princípio que fundamente a decisão (razoável ou não), acaba por afrontar a separação dos poderes. [9]
Luís Roberto Barroso nos remete a uma importante crítica acerca do ativismo judicial, seu uso configura um risco para a legitimidade democrática, uma vez que os integrantes do Poder Judiciários não se configuram como agente públicos eleitos:
Impõe-se, todavia, uma observação final. A importância da Constituição – e do Judiciário como seu intérprete maior – não pode suprimir, por evidente, a política, o governo da maioria, nem o papel do Legislativo. [10]
O doutrinador tece ainda críticas no que tange o risco de politização da Justiça [11], uma vez que magistrado não deve atuar por vontade política própria, deve respeitar a presunção de validade das leis, e deve atuar em sintonia com o sentimento social.
Adicionalmente, é notada uma aparente falta de capacidade institucional do Poder Judiciário, uma vez que “ele nem sempre dispõe das informações, do tempo e mesmo do conhecimento para avaliar o impacto de determinadas decisões (...)” [12], acarretando no risco de efeitos inesperados e indesejados.
Ainda em sua obra, Barroso nos aponta a existência da adoção de uma postura oposta ao ativismo judicial, a chamada auto-contenção judicial. Ao se valer dessa postura, o Poder Judiciário objetiva diminuir sua interferência no raio de atuação do Poder Legislativo e Poder Executivo.
O oposto do ativismo é a auto-contenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. Por essa linha, juízes e tribunais (i) evitam aplicar diretamente a Constituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinário; (ii) utilizam critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos; e (iii) abstêm-se de interferir na definição das políticas públicas. Até o advento da Constituição de 1988, essa era a inequívoca linha de atuação do Judiciário no Brasil. A principal diferença metodológica entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, sem contudo invadir o campo da criação livre do Direito. A auto-contenção, por sua vez, restringe o espaço de incidência da Constituição em favor das instâncias tipicamente políticas. [13]
Por outro lado, no âmbito judiciário é notória a tentativa de consolidar a aceitação da prática do ativismo judicial. Notamos essa tentativa, por exemplo, no discurso proferido pelo Ministro Celso de Mello, no evento da posse do presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, em 2008. Vejamos um trecho de seu discurso:
Práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas por esta Corte em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos por expressa determinação do próprio estatuto constitucional, ainda mais se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade.
Acompanhando esse posicionamento encontra-se o doutrinador Hélder Barbosa, ao constatar que o uso do ativismo judicial é uma ferramenta indispensável para a proteção dos direitos tidos como fundamentais:
Pensadores do direito podem se mostrar contrários ao ativismo judicial, sob a alegação de que um acréscimo de poder ao judiciário seria um desvio de finalidade, desvio do fim do judiciário, entretanto inexiste tal afirmação, uma vez que os juízes estariam apenas aplicando o direito, os direitos fundamentais em especial, direitos estes que gozam de autoexecutoriedade. [14]
Dessa forma, é notável o conflito dentro da doutrina jurídica e da própria jurisprudência acerca dessa importante tendência moderna, que é a adoção do ativismo judicial.
Entretanto, se por um lado o magistrado é capaz de adotar uma postura ativista e consequentemente “invadir” a competência dos Poderes Legislativo e Executivo, invalidando suas ações, bem como atuando como legislador positivo, por outro o poder de tributar é limitado por princípios de ordem constitucional, como o princípio da legalidade e o princípio da não surpresa.
Diante do exposto, é possível constatar a existência de um suposto choque entre os princípios constitucionais limitadores do poder de tributar e o comportamento ativista adotado pelo Poder Judiciário. Portanto, passemos agora à análise de alguns dos princípios constitucionais tributários relevantes à presente obra.
Todavia, faz-se mister que avaliemos preliminarmente outro princípio, o qual se configura como gerador de diversas críticas acerca da aplicabilidade do ativismo judicial, o princípio da separação dos poderes, a fim de que posteriormente analisemos alguns dos princípios constitucionais tributários relevantes ao presente tema.
4. O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
O princípio da separação dos poderes, conforme previamente ilustrado, é um comando constitucional contido no art. 2° de nossa Constituição Federal, o qual institui que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Trata-se de um princípio de suma importância para a construção de uma sociedade, nas palavras de Montesquieu:
Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos [15]
Trata-se de uma cláusula pétrea em nosso ordenamento constitucional, conforme os ditames do art. 60, § 4°, inciso III:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
(...)
III - a separação dos Poderes;
(...)
A independência dos poderes se traduz no fato de que na organização e exercício de suas atribuições, os Poderes são autônomos e livres entre si, observando apenas os comandos constitucionais contrários.
Já a harmonia dos poderes se caracteriza pelo respeito mútuo às prerrogativas e faculdades que todos os Poderes possuem.
Segundo Inocêncio Mártires Coelho, foi um princípio inicialmente formulado em sentido forte, mas que vem exigindo temperamentos e ajustes conforme as diferentes mudanças nas realidades constitucionais:
Nesse contexto de "modernização", esse velho dogma da sabedoria política teve de flexibilizar-se diante da necessidade impetiosa de ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo, como as nossas medidas provisórias — que são editadas com força de lei — bem assim para a legislação judicial, fruto da inevitável criatividade de juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é frequente a criação de normas de caráter geral, como as chamadas sentenças aditivas proferidas por esses supertribunais em sede de controle de constitucionalidade [16]
(grifou-se)
Dessa forma, conclui-se que o ativismo judicial em matéria tributária não acarreta em violação ao princípio constitucional da separação dos poderes, tendo em vista que a adoção dessa postura se trata meramente de uma maleabilidade à rigidez principiológica.
De posse dessas indagações preliminares, podemos agora adentrar ao estudo dos princípios constitucionais tributários conflitantes com o ativismo judicial.
5. AS LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS CONFLITANTES COM PODER DE TRIBUTAR
A Constituição da República Federativa do Brasil conferiu aos seus entes políticos um grandioso poder a ser exercido em face de seus governados, estamos falando do poder de tributar.
Se por um lado o Estado é dotado da capacidade de obrigar as pessoas físicas e jurídicas a se solidarizarem com o interesse público mediante um pagamento compulsório [17], por outro ele exerce esse poder observando sempre as limitações impostas através de princípios constitucionais, conforme bem ensinava Aliomar Baleeiro:
O sistema tributário movimenta-se sob complexa aparelhagem de freios e amortecedores, que limitam os excessos acaso detrimentosos à economia e à preservação do regime e dos direitos individuais. [18]
Os princípios transmitidos por nossa Carta Maior são cláusulas pétreas, as quais objetivam, entre outras, impedir o cometimento de abusos por parte do Estado contra o contribuinte.
Iremos mostrar agora dois princípios constitucionais de suma importância para o estudo do ativismo judicial, o princípio da legalidade tributária e o princípio da não surpresa, princípios esses garantidores de segurança jurídica, que podem ser conflitantes com a noção de ativismo judicial em matéria tributária. Vejamos primeiramente a análise do princípio da legalidade tributária.
5.1 O Princípio da Legalidade Tributária
O princípio da legalidade tributária é um princípio constitucional explícito no artigo 150, inciso I, o qual objetiva garantir a segurança jurídica do contribuinte através da vedação da exigência ou majoração de tributo por outra via que não seja a lei.
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
(...)
Exigir um tributo corresponde ao ato de cobrá-lo, dessa forma, tendo em vista que a cobrança tributária é dependente de instituição prévia, o comando constitucional estabelece a necessidade de lei para criar um tributo.
Trata-se de um princípio derivado do princípio da legalidade, disposto no artigo 5º, inciso II da Lei Maior, o qual estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Referido princípio já encontrava previsão normativa elencada no art. 4° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento elaborado na Assembléia Nacional Constituinte da França, fruto da Revolução Francesa.
Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.
Tomando por base o princípio da legalidade, pode o indivíduo praticar quaisquer atos que não contrariem as leis. Por outro lado, a pratica de atos pela administração pública está condicionada à previsão prévia em lei.
Cumpre mencionar que estamos diante de um princípio o qual se faz presente ao longo da evolução constitucional brasileira. Aliomar Baleeiro, em sua obra, explicita a trajetória do princípio da legalidade tributária.
Desde o ano de 1624, era possível notar que os tributos eram aprovados mediante atuação legislativa dos Senados e das Câmaras.
Com o advento de nossa primeira Constituição, em 1824, apesar de não haver referência literal à lei, era atribuído competência para legislar a tributação às Assembleias Legislativas.
Na Constituição Republicana de 1891 encontramos o princípio da legalidade aplicado apenas aos impostos, excluindo a regra às demais espécies de tributos. Já na Constituição Brasileira de 1934, o referido princípio fora elencado nas disposições preliminares do art. 17., aplicável à todas as espécies tributárias.[19]
Durante a ditadura brasileira, entre 1937 e 1945, houve um afastamento do princípio da legalidade tributária. Ocorre que o artigo 13, alínea ‘d’ da Carta de 1937 continha a seguinte previsão:
Art. 13 - O Presidente da República, nos períodos de recesso do Parlamento ou de dissolução da Câmara dos Deputados, poderá, se o exigirem as necessidades do Estado, expedir decretos-leis sobre as matérias de competência legislativa da União, excetuadas as seguintes:
(...)
d) impostos;
(..)
Agravando tal fato, a Constituição Federal impunha, em suas disposições transitórias e finais, a dissolvição da Câmara dos Deputados, Senado Federal, Assembleias Legislativas dos Estados e Câmaras Municipais, havendo eleição para o Parlamento Nacional, após ser realizado o plebiscito previsto no artigo 187[20], entretanto, tal plebiscito nunca ocorreu.
Dessa forma, conforme disposto no artigo 180, o Presidente da República detinha plenos poderes para expedir decretos leis sobre todas as matérias da competência da União Federal, inclusive sobre matéria tributária, vejamos:
Art. 180 - Enquanto não se reunir o Parlamento nacional, o Presidente da República terá o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias da competência legislativa da União.
Portanto, é possível observar a flagrante ruptura do princípio da legalidade tributária durante a ditadura militar. Por sorte, com o término do período ditatorial e advento da Constituição Federal de 1946, o princípio retornou aos direitos e garantias individuais constitucionalmente protegidos[21].
As Constituições posteriores mantiveram em seu texto o princípio, salvo raras e pontuais modificações, como por exemplo, a possibilidade do Poder Executivo Federal modificar as alíquotas e bases de cálculo dos impostos incidentes sobre o comércio exterior e sobre as operações financeiras, instituída através da do art. 2°, inciso I da Emenda Constitucional n° 18 de 1965.
Atualmente previsto no artigo 150, inciso I, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Princípio da Legalidade Tributária possui a finalidade de garantir às pessoas, tanto físicas quanto jurídicas, uma maior segurança jurídica, protegendo “a pessoa humana dos abusos e inconstâncias da Administração, garantindo-lhe um “estatuto” onde emerge sobranceira a segurança jurídica (...)”. [22]
O Código Tributário Nacional aborda o princípio da legalidade tributária em seu artigo 97, firmando a necessidade da legislação traçar não só as características do fato gerador, mas também todos os aspectos indispensáveis para cobrança do tributo. A lei tributária deve dispor sobre o fato gerador, a base de cálculo, a alíquota, a obrigação tributária e o sujeito passivo, conforme ensina Luciano Amaro, vejamos:
Em suma, a legalidade tributária não se conforma com a mera autorização de lei para cobrança de tributos; requer-se que a própria lei defina todos os aspectos pertinentes ao fato gerador, necessários à quantificação do tributo devido em cada situação concreta que venha a espelhar a situação hipotética descrita na lei. [23]
Nessa esteira, a doutrina caminha em paralelo com o posicionamento jurisprudencial, conforme exemplificado no julgado abaixo:
TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PREVISTA NA LEI Nº 8.212/91, ART. 22, II. INCONSTITUCIONALIDADE DA COBRANÇA ÀS ALÍQUOTAS DE 2% E 3%. ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA PARA A DECLARAÇÃO.
1- Em respeito aos princípios da estrita legalidade e da tipicidade fechada no âmbito tributário, deve a lei que institui contribuição social definir e descrever todos os elementos essenciais da exação.
2- É vedado ao regulamento suprir as omissões legislativas, eis que a matéria é de competência indelegável do Poder Legislativo.
3-Inconstitucionalidade da cobrança do tributo em apreço às alíquotas de 2% e 3%.
4- Arguição de inconstitucionalidade acolhida.
5- Remessa da matéria à apreciação do Colendo Órgão Especial, nos termos do art. 97 da Constituição Federal e 11, parágrafo único, "g", do Regimento Interno.
6-Remessa dos autos ao Egrégio Órgão Especial.
(AMS 200003990200940, JUIZ GILBERTO JORDAN, TRF3 - PRIMEIRA TURMA, 11/06/2002)
Segundo o doutrinador Ricardo Alexandre, o referido princípio constitucional impõe que o aumento de alíquotas e a cobrança dos tributos sejam feitos por lei em sentido estrito, ou seja, Leis Ordinárias ou Leis Complementares, bem como por meio de Medida Provisória [24].
Com base no chamado princípio do paralelismo das formas, tendo em vista que a Carta Maior exige a lei para instituir um tributo, consequentemente ela demanda a mesma espécie normativa (ou uma espécie normativa hierarquicamente superior) para extinguir o tributo.
Entretanto, é possível notar casos onde a CRFB autoriza “legislar” em direito tributário através de meio distinto de uma lei em sentido estrito. É o caso da majoração das alíquotas do Imposto de Importação, Imposto de Exportação, Imposto sobre Produtos Industrializados e o Imposto sobre Operações Financeiras, os quais podem ter suas alíquotas aumentadas mediante ato normativo do Poder Executivo Federal, em nome da celeridade e da urgência, permitindo assim certa liberdade de ação da Administração Pública. [25]
Contudo, um grande equívoco cometido pelos juristas no que concerne a possibilidade de legislar através de ato diverso de uma lei em sentido estrito, é o fato de atribuir a esse fato o caráter de exceção ao Princípio da Legalidade Tributária. Muito bem ensina Misabel Derzi, quando atribui a esse fato o caráter de uma “mera atenuação do princípio da especificidade conceitual ou da legalidade rígida”, vejamos:
Efetivamente, não existem exceções, quer na Constituição anterior, quer na atual, à legalidade, pois todo tributo somente pode ser disciplinado, em seus aspectos substanciais (material, temporal, espacial, subjetivo e quantitativo) por diploma legal, emanado do Poder Legislativo. Não obstante, em certas hipóteses excepcionais, contempladas na Constituição, a legalidade absoluta é quebrada, estabelecendo o legislador apenas os limites mínimo e máximo, dentro dos quais o Poder Executivo poderá alterar quantitativamente o dever tributário. Trata-se de mera atenuação do princípio da especificidade conceitual ou da legalidade rígida [26]
Mediante todo o exposto, pode-se resumir que o princípio da legalidade tributária é um princípio constitucional, o qual visa impedir a exigência ou majoração de tributos por outro mecanismo que não seja a lei, a fim de resguardar a segurança jurídica de todos os contribuintes.
Voltaremos posteriormente ao estudo do mencionado princípio quando o colocarmos em choque com a prática do ativismo judicial. Passaremos agora para a análise de outro relevante princípio constitucional, o princípio da não surpresa.
5.2 O Princípio da Não Surpresa
O princípio da não surpresa é uma garantia prevista pela Constituição Federal de 1988 o qual tem por finalidade proteger o contribuinte de ter uma elevação inesperada em sua carga tributária.
Trata-se de um princípio limitador do poder estatal de tributar, impedindo abusos e arbitrariedades de serem cometidos pelos Poderes Legislativo e Executivo, garantindo assim a segurança jurídica ao contribuinte.
Por esse princípio, havendo um aumento no valor do tributo a ser pago, é preciso um espaço mínimo de tempo para que o contribuinte se planeje em função da carga tributária a ser majorada.
Adicionalmente, o princípio protege as pessoas físicas e jurídicas no sentido de caso a legislação tributária venha a ser alterada em prejuízo do contribuinte, ela não afete tributos já pagos no passado, o que acarretaria em um impacto tributário inesperado.
Portanto, temos que o princípio da não surpresa acaba por envolver outros princípios constitucionais tributários, quais sejam o princípio da anterioridade (art. 150, III, ‘b’), o princípio da noventena (art. 150, III, ‘c’) e o princípio da irretroatividade (art. 150, III, ‘a’).
O princípio da irretroatividade, elencado no artigo 150, III, “a”, assegura ao contribuinte que uma legislação nova não venha a atingir atos já praticados em momentos anteriores.
Nessa esteira encontramos previsão legal no art. 105 do CTN, o qual institui que as normas tributárias são aplicadas aos fatos geradores futuros e pendentes, vejamos:
Art. 105 - A legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do artigo 116.
Contudo, a lei tributária retroagirá quando ela for interpretativa ou quando for mais benéfica ao contribuinte em matéria de infração e desde que o ato não tenha sido definitivamente julgado.
O princípio da anterioridade, disposto nos artigos 150, III, “b” da CRFB e 104 da CTN, garante que a lei tributária a qual institui um tributo entre em vigor prontamente, contudo sem produzir seus efeitos imediatamente. Esse tributo apenas produzirá seus efeitos no exercício financeiro seguinte àquele no qual ele foi instituído. Lembrando-se que o exercício financeiro se inicia no dia 1° de janeiro, e se encerra no dia 31 de dezembro de cada ano.
Temos ainda em nossa Constituição, no artigo 150 inciso III alínea “c”, o princípio da noventena (ou também chamado de princípio da anterioridade nonagésima), o qual se traduz na necessidade de se correr um prazo de 90 dias, contados a partir da publicação da respectiva lei, para que a norma que instituiu ou majorou tributo entre em vigor.
O princípio da anterioridade possui algumas exceções elencadas nos artigos 150 § 1° e 195 § 6° de nossa constituição, sendo o caso do Imposto de Importação, Imposto de Exportação, Imposto sobre Produtos Industrializados, Imposto sobre Operações Financeiras, Impostos Extraordinários e as Contribuições Sociais. Já o princípio da noventena possui exceções relativas ao II, IE, IOF, Imposto de Renda, e Impostos Extraordinários.
Importante ressaltar que constituem ainda como exceções aos princípios da anterioridade e da noventena a revogação de isenções, e a mera atualização monetária do valor do tributo ou da sua base de cálculo, conforme registrado no julgado abaixo:
TRIBUTÁRIO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. CONFISSÃO DE DÍVIDA. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. CORREÇÃO MONETÁRIA. SIMPLES ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA QUE NÃO SE CONFUNDE COM MAJORAÇÃO DO TRIBUTO. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. LEGALIDADE DA UFIR E DA TAXA REFERENCIAL COMO ÍNDICE DE JUROS.
1. Não há de se falar em cerceamento de defesa, por falta de notificação da origem da dívida no processo administrativo fiscal, uma vez que referido procedimento teve início por iniciativa do contribuinte, que formalizou instrumento de confissão de dívida a fim de parcelar o débito e regularizar sua situação fiscal e posteriormente não adimpliu as prestações assumidas.
2. A correção monetária é forma de atualização do valor da moeda, com vistas à manutenção de seu valor real. Por sua natureza, não implica ofensa a ato jurídico perfeito, tampouco em agravamento da situação jurídica do contribuinte, razão pela qual não encontra os limites previstos no art. 150, III, da Constituição (anterioridade tributária) e no art. 106 do CTN. Precedentes do Supremo Tribunal Federal: RE-AgR 200.844/PR, Relator Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJ do dia 16/08/2002, p. 92, e AI-AgR 256138/MG, Relator Min. Maurício Corrêa, Segunda Turma, DJ 07/04/2000, p. 59. No Superior Tribunal de Justiça, REsp 436.980/PR, Segunda Turma, Relator Min. João Otávio Noronha, 09/05/06, DJ 14/08/06.
3. A utilização da TRD como índice de juros de mora incidentes sobre débitos fiscais é plenamente reconhecida pela jurisprudência a partir de fevereiro de 1991 (REsp 260.631/SC - Rel. Min. Garcia Vieira, DJ de 18/09/2000; Resp 213.288/RS - Rel. Min. José Delgado, DJ de 08/03/2000; AgRg no Ag 672.182/RS - Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 06/03/2006).
4. Apelação a que se nega provimento.
(TRF1, AC - APELAÇÃO CIVEL – 200001000360624, Rel. JUIZ FEDERAL MARK YSHIDA BRANDAO (CONV.), DJ 09/11/2007)
(grifou-se)
Entretanto, é importante notar que o princípio da anterioridade é aplicado apenas às leis que revoguem isenções referentes aos impostos sobre patrimônio e renda, por força do art. 104, inciso III do CTN:
Art. 104. Entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda:
(...)
III - que extinguem ou reduzem isenções, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte, e observado o disposto no artigo 178.
Diante dos princípios constitucionais aqui expostos faz-se mister indagarmos a questão primordial acerca do ativismo judicial no Direito Tributário.
5.3 A Questão Primordial Acerca do Ativismo Judicial em Matéria Tributária
Com o advento do ativismo judicial e consequentemente a figura do Poder Judiciário assumindo cada vez mais o papel de legislador positivo, poderia ser entendido como necessária a limitação imposta pelos princípios que compõem o princípio da não surpresa, assim como o princípio da legalidade tributária, às decisões de cunho ativista?
Esse choque entre os princípios e o ativismo judicial nos remete à uma importante questão: Até que ponto pode o Poder Judiciário se valer do ativismo judicial, sem ultrapassar a barreira imposta pela Constituição e consequentemente ferir a segurança jurídica do contribuinte?
Diante disso, torna-se imprescindível realizar uma análise casos concretos onde é possível observar a manifestação do ativismo judicial em matéria tributária, a fim de que posteriormente possamos responder a essa importante pergunta.
6. A MANIFESTAÇÃO DO ATIVISMO JUDICIAL EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA
O ativismo judicial, conforme previamente elucidado, se caracteriza principalmente na atuação do magistrado como legislador positivo, participando da elaboração de políticas que seriam feitas por outros Poderes, assim como substituindo as decisões feitas por esses Poderes ou suprindo as omissões desses poderes.
Mediante isso, faz-se mister passarmos à expormos algumas das situações onde o Poder Judiciário adota, diante de matérias de cunho tributário.
6.1 Alteração no Valor de Multas Tributárias Exorbitantes
Configura-se como competência do Poder Judiciário brasileiro exercer o Controle de Constitucionalidade, o qual consiste em um mecanismo de verificação da compatibilidade de uma norma ou ato jurídico com a Carta Magna, em observância do Princípio da Supremacia da Constituição.
O Controle Difuso de Constitucionalidade se caracteriza pela possibilidade do Judiciário declarar a inconstitucionalidade de uma determinada norma dentro de um caso concreto, com seus efeitos recaindo apenas entre as partes do respectivo processo (efeitos inter partes).
Já no Controle Concentrado de Constitucionalidade, a inconstitucionalidade é declarada em sede de ação constitucional própria e seus efeitos recaem sobre todos os indivíduos (efeitos erga omnes).
Ao declarar uma inconstitucionalidade, muitas vezes acaba por ser criada um vazio normativo. Diante disso, algumas vezes é possível notar o Judiciário transcendendo seu papel de órgão julgador, ao atuar no sentido de suprir esse vazio, se portando desta forma como legislador positivo.
Pode ser citado, a caráter exemplificativo de atuação ativista no que concerne suprir vazios deixados pela declaração de inconstitucionalidade, casos referentes à multas tributárias exorbitantes.
O princípio do não confisco é um princípio constitucional tributário consagrado no artigo 150, inciso IV de nossa Carta Maior, o qual veda a utilização de um tributo cuja incidência seja exagerada “de forma que, absorvendo parcela considerável do patrimônio ou da renda produzida pelo particular, gerasse neste e na sociedade em geral uma sensação de verdadeira punição.” [27]
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
IV - utilizar tributo com efeito de confisco;
(...)
A ideia impressa no referido princípio é que o legislador utilize do poder de tributar objetivando que a tributação não venha a impedir o exercício das atividades do contribuinte ou colocar em perigo a sua dignidade.
Não existem parâmetros numéricos concretos para determinar se um tributo detêm o efeito confiscatório, sendo necessário que o legislador atue se valendo de uma razoabilidade, em observância dos panoramas políticos e econômicos.
As multas advindas de descumprimentos de obrigações tributárias, apesar de não se configurarem como verdadeiros tributos sofrem incidência do Princípio do Não Confisco quando possuírem valores excessivamente elevados, conforme mostram algumas decisões do poder Judiciário, vejamos a ementa da decisão do STF:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. §§ 2.º E 3.º DO ART. 57 DO ATO DAS DOSPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. FIXAÇÃO DE VALORES MÍNIMOS PARA MULTAS PELO NÃO-RECOLHIMENTO E SONEGAÇÃO DE TRIBUTOS ESTADUAIS. VIOLAÇÃO AO INCISO IV DO ART. 150 DA CARTA DA REPÚBLICA. A desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua consequência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em contrariedade ao mencionado dispositivo do texto constitucional federal. [28]
Entretanto, o Poder Judiciário não adota um posicionamento ativista quando apenas decide pela inconstitucionalidade das multas tributárias consideradas exorbitantes, por ferir o princípio do não confisco, mas sim quando adicionalmente fixa valor diverso daquele estipulado em lei, conforme o julgado infra:
1.TRIBUTÁRIO. ICMS.
2.ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
3.PERCENTUAL ELEVADO DE MULTA IMPOSTA PELO ESTADO, QUE PODE E DEVE SER REDUZIDO PELO PODER JUDICIÁRIO, ADEQUANDO-O À NOVA REALIDADE ECONÔMICA DO PAIS, EVITANDO-SE O CONFISCO INDIRETO, VEDADO PELO ART. 150, IV, DA CARTA POLÍTICA DE 1988.
4.JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DO S.T.F. 5.RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.[29]
(grifou-se)
No entanto, esse posicionamento adotado pelo Poder Judiciário não é pacificado. Ainda que não se entenda aplicável o princípio da não cumulatividade às multas exorbitantes, existe entendimento jurisprudencial atribuindo a submissão dessas multas aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Novamente é possível notar julgados modificando o valor de multas, com base nos princípios em expostos, vejamos:
TRIBUTÁRIO - EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL - INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NÃO OBRIGATÓRIA -NULIDADE DA CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA NÃO CONFIGURADA - DEMONSTRATIVO ATUALIZADO DO DÉBITO - DESNECESSIDADE - NULIDADE DA EXECUÇÃO POR AUSÊNCIA DE JUNTADA DAS NOTIFICAÇÕES - INOCORRÊNCIA - TRANSPORTE DE CARGA COM NOTA FISCAL FORA DO PRAZO DE VALIDADE - MULTA DE 30% DO VALOR DA MERCADORIA - ART. 60, IV, LEI ESTADUAL N. 10.297/96 - VALOR EXCESSIVO POR EQÜIVALER A MAIS DO QUE O DOBRO DO VALOR DO TRIBUTO DEVIDO - PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE - ANALOGIA COM O ART. 412 DO CC/2002 - AFRONTA AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DASEPARAÇÃO DOS PODERES - INEXISTÊNCIA - REDUÇÃO DA MULTA PARA 100% DO VALOR DO IMPOSTO.
(...)
A multa moratória fixada no percentual de 30% sobre o valor da mercadoria sobre a qual deveria incidir ICMS, embora não viole o disposto no art. 150, inciso IV, da CF/88, que veda a instituição de tributo com efeito de confisco, porque de tributo não se trata, mostra-se excessiva no caso em tela e, por isso, deve ser reduzida para 100% do valor do imposto, tanto com fundamento nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, como pela analogia com o art. 412 do Código Civil de 2002, segundo o qual "o valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o valor da obrigação principal".[30]
(grifou-se)
Dessa forma, é notável o uso do ativismo judicial a fim de que se faça valer princípios de ordem constitucional.
Passemos agora para o estudo de outro exemplo relativo às remediações derivadas de declarações de inconstitucionalidade.
6.2 Alteração no Valor de ICMS
O Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS é um tributo de competência estadual, cuja principal função é a fiscal, ou seja, sua função é predominantemente a arrecadatória.
Suas características gerais encontram-se elencadas no artigo 155, § 2° ao § 5° de nossa CRFB, assim como na Lei Complementar n° 87 de 1996, a chamada Lei Kandir.
Sua incidência se dá em operações de circulação de mercadoria, realizadas habitualmente, resultando na transferência da titularidade, bem como de serviços de comunicação, transporte interestadual e transporte intermunicipal.
O ICMS é um imposto não cumulativo, ou seja, o valor pago na operação anterior é creditado e descontado no pagamento do tributo devido na operação seguinte, reduzindo assim o impacto tributário na cadeia produtiva. Temos como característica fundamental do ICMS o fato dele ser regido pelo princípio da seletividade.
O princípio constitucional da seletividade objetiva a alteração da alíquota do tributo de acordo com a essencialidade do bem. Portanto, um bem de essencialidade maior possuirá uma alíquota menor e, consequentemente, um bem menos essencial possuirá uma alíquota de valor mais elevado.
O referido princípio recai apenas sobre o IPI e o ICMS, encontrando-se previsto nos artigos 153,§ 3º e 155 § 2º, III, cuja análise textual nos permite vislumbrar o fato da seletividade do IPI ser uma imposição, enquanto a seletividade do ICMS ser uma mera faculdade.
Uma manifestação do ativismo judicial referente ao ICMS se tornou presente em um caso onde o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro declarou inconstitucional a alíquota de 30% do ICMS[31], para operações de energia elétrica e prestação de serviços de telecomunicação, tomando por base o princípio da seletividade.
Mediante a declaração de inconstitucionalidade, o TJRJ adicionalmente fixou alíquota de 18%, uma vez que vislumbrou a essencialidade desses serviços, e, portanto entendeu que eles deveriam possuir uma alíquota menor, conforme mostrado no julgado a seguir:
Da análise da questão, verifica-se que a alíquota de 25% (vinte e cinco por cento) estabelecida no art. 14, VI, “b” e VIII, “g”, da Lei Estadual 2.657/96, regulamentada pelo Decreto 27.427/00, fere o princípio da seletividade insculpido no art. 155, § 2º, III, da CF/88, a determinar que ela se dará ‘em função da essencialidade das mercadorias e serviços’.Cabe ressaltar, que a seletividade é o princípio constitucional pelo qual a intensidade da tributação será inversamente proporcional à essencialidade dos bens tributados.
(...)
Assim, a Constituição Federal, buscando desonerar o contribuinte de fato, confere ao legislador estadual a faculdade de adotar a seletividade.
Entretanto, uma vez adotada, ela deve levar em conta a essencialidade das mercadorias e serviços para estabelecer a alíquota, sob pena de fixar percentuais inconstitucionais. Não se pode, portanto, levar em conta para aplicação do conceito de essencialidade a quantidade de consumo.
A referida lei estadual e seu regulamento fixaram alíquotas para o fornecimento de energia elétrica e para a prestação de serviços de telecomunicações em percentuais superiores aos estabelecidos para chope e cerveja (17% - art. 14, XXIII, idem) e aguardente (17% - art. 14, XXIV, idem).
Dessa forma, está a decisão do E. Órgão Especial que, ao apreciar a arguição de inconstitucionalidade nº 2005.017.00027, declarou, por unanimidade, a inconstitucionalidade dos incisos VI, item 2, e VIII, item 7 do art. 14 do Decreto 27.427/00:
‘Arguição de Inconstitucionalidade. Artigo 2, inciso I do Decreto nº 32.646 do ano de 2003 do Estado do Rio de Janeiro, que regulamenta a Lei Estadual nº 4.056/2002 que instituiu o Fundo Estadual de Combate à Pobreza e às Desigualdades Sociais. Superveniência da Emenda Constitucional n. 42, de 19/12/2003, que validou, em seu Artigo 4º, os adicionais criados pelos Estados em função da EC n. 31/2000, mesmo aqueles em desconformidade com a própria Constituição. Impossibilidade de se reconhecer a inconstitucionalidade do Decreto nº 32.646 de 2003. Precedente do STF. Artigo 14, VI, item 2, e VIII, item 7 do Decreto nº 27.427 do ano de 2000 do Estado do Rio de Janeiro, que fixa a alíquota do ICMS incidente sobre os serviços de energia elétrica e telecomunicações. Desatenção aos princípios constitucionais da seletividade e essencialidade, dispostos no Artigo 155, § 21º da CRFB. Inconstitucionalidade reconhecida. Arguição parcialmente procedente. 2005.017.00027 – ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. DES. ROBERTO WIDER – Julgamento: 27/03/2006 – ÓRGÃO ESPECIAL.’
Modificar o entendimento emanado do órgão de cúpula da Corte afrontaria o disposto no art. 103 do Regimento Interno, cujo comando determina a vinculação de todos os demais órgãos do Tribunal à decisão protocolada naquele feito.
Portanto, a questão posta nos autos cinge-se em saber se a decisão da Corte está sendo respeitada. E, nesse contexto, a resposta é negativa, restando patente a ilegalidade, pois o Fisco continua a fazer a cobrança do ICMS sobre o serviço de energia elétrica à alíquota de 25% que, somada ao percentual de 5% relativo ao Fundo Estadual de Combate e Erradicação da Pobreza instituído pela Lei 4056/2002, resulta numa alíquota total de 30%.
Decotada a parcela considerada inconstitucional da exação, deve haver a redução para a alíquota geral de 18% prevista no decreto regulamentador, sem embargo de eventual incidência do percentual relativo ao Fundo Estadual de Combate e Erradicação da Pobreza.
(...)
Outrossim, CONCEDE-SE PARCIALMENTE A ORDEM para determinar a incidência da alíquota genérica prevista no Regulamento do ICMS. [32] (grifou-se)
Dessa forma, mediante o estudo desse caso concreto de declaração de inconstitucionalidade, assim como elucidado no exemplo, é notório o esforço do Poder Judiciário, utilizando-se do ativismo judicial, para proteger os contribuintes de atos abusivos do Estado.
As declarações de inconstitucionalidade abrem espaço para a adoção do ativismo judicial não somente quando há a possibilidade de suprir um vácuo normativo, mas também quando abre a viabilidade para a modulação temporal de seus efeitos, tema o qual veremos posteriormente.
Passemos agora para a análise de casos onde o ativismo judicial é visto em matérias ligadas ao processo tributário.
6.3 Omissões Legislativas
A compensação é a modalidade de extinção do Crédito Tributário a qual ocorre a quitação mútua, ou seja, quando o Estado e o contribuinte são credores entre si. Compensa-se créditos tributários em favor do fisco com créditos, tributários ou não, vencidos ou vincendos, líquidos e certos em favor do sujeito passivo.
Contudo a compensação só poderá ocorrer mediante a existência de lei que a autorize, conforme dispõe o art. 170, caput, do Código Tributário Nacional:
Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda pública.
No que concerne a compensação de precatórios, direito previsto no art. 78, § 2° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF, existem estados, como é o caso do Rio Grande do Sul, desprovidos de sua devida regulamentação.
É sabido que o Poder Judiciário é acionado, ora através do mandado de injunção, ora através da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, a fim de obter a efetivação do direito garantido pela constituição.
O mandado de injunção é um remédio constitucional previsto no art. 5°, inciso LXXI de nossa Constituição, o qual busca o regulamento de uma norma constitucional de eficácia limitada. Dessa forma, quando a Constituição prevê um direito, mas ele não pode ser executado uma vez que não há a devida norma regulamentadora, é cabível a impetração do mandado de injunção pela pessoa titular do direito.
Uma vez julgado procedente o mandado de injunção, o poder judiciário irá impor ao ente regulamentador o início imediato do processo legislativo a fim de suprir a omissão objeto da ação constitucional.
No entanto, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, frente à inércia do Estado em elaborar a norma regulamentadora, proferiu decisão permitindo a compensação, e consequentemente suprindo a omissão legislativa, com fulcro no art. 78, § 2° da ADCT da CF de 1988, assim como no art. 170 do CTN, conforme a ementa do julgado abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL. TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. CESSÃO DE CRÉDITO RELATIVO A PRECATÓRIO. CRÉDITO DE NATUREZA PREVIDENCIÁRIA. COMPENSAÇÃO COM DÉBITO TRIBUTÁRIO. POSSÍBILIDADE. AUSÊNCIA DE LEI INFRACONSTITUCIONAL. IRRELEVÂNCIA.
Possível a compensação de crédito tributário com valores relativos a precatórios havidos por cessão onerosa de credores do IPERGS, porquanto a compensação, além de se constituir em direito constitucional assegurado pela Carta Maior, é, também, consequência natural de uma a relação jurídica em que duas pessoas sejam, ao mesmo tempo, credor e devedor uma
da outra. Extinção das obrigações até onde se compensarem. Prescindível a existência de lei infraconstitucional a regulamentar a matéria. O fato de o Estado se furtar a regulamentar, no plano infraconstitucional, a matéria relativa à compensação, não pode importar em violação a direito constitucionalmente garantido ao contribuinte. Inteligência do art. 170, do CTN. Regularidade na cessão, que sequer vem contestada pelo Estado. Possibilidade de compensação admitida pelo art. 78, § 2.º, do ADCT, da CF/88. Abrangência da expressão “entidade devedora” lá contida. Possibilidade de aplicação aos créditos privilegiados. Segurança concedida.
APELAÇÃO PROVIDA, POR MAIORIA.
VOTO VENCIDO.
(TJRS. 1ª Câmara Cível. Ap. Cível 70013433792, julgada em 12/4/2006, rel. Des. Henrique Osvaldo Poeta Roenick)
(grifou-se)
Dessa forma, nota-se que o poder judiciário gaúcho adotou um posicionamento ativista ao suprir a omissão legislativa do estado, atribuindo força normativa ao dispositivo da ADCT.
Similarmente, no que concerne as imunidades tributárias, existe ainda a possibilidade do uso do ativismo judicial a fim de conferir eficácia àquela que dependem de regulamentação infraconstitucional. [33]
6.4 Propositura de Ação Judicial e Renúncia Automática na Esfera Administrativa
Conforme previamente elucidado, o Ativismo Judicial se manifesta, entre outras formas, com a substituição dos atos feitos por outros Poderes. Adentremos agora na analise de um caso onde o Judiciário brasileiro nitidamente substituiu um comando emitido pelo Poder Legislativo.
No que concerne à discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública, o Poder Judiciário sempre demonstrou entendimento no sentido de que, a propositura de ação judicial importa na renúncia da discussão na esfera administrativa, com base nos ditames do parágrafo único do art. 38 da Lei 6.830 de 1980:
Art. 38 - A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição do indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos.
Parágrafo Único - A propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto.
Na tentativa de modificar esse entendimento, o qual nitidamente prejudica os contribuintes, foram proferidas decisões as quais decidiram o tema em sentido contrário à lei aplicável, consequentemente alterando o dispositivo da norma supra citada no caso concreto, vejamos:
AMS - APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA - 200138000324605 - TRF1; Relator(a) JUIZ FEDERAL MARK YSHIDA BRANDAO (CONV.)
Ementa
TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO NA VIA ADMINISTRATIVA. EXISTÊNCIA DE DISCUSSÃO JUDICIAL DA MATÉRIA. INEXISTÊNCIA DE LEI QUE INCOMPATIBILIZE AS INSTÂNCIAS. POSSIBILIDADE DE ADMISSÃO DO RECURSO ADMINISTRATIVO. 1. A admissibilidade de recursos está relacionada ao direito de petição, estatuído no art. 5º, inciso XXXIV, alínea a, da Constituição, intimamente relacionado ao direito de contraditório e de ampla defesa, previsto no inciso LV do mesmo dispositivo constitucional, razão pela qual eventual restrição desses direitos somente pode ser estatuída por lei formal, nos termos do art. 5º, II, da Constituição. 2. A norma prevista na alínea a do Ato Declaratório Normativo da Coordenação do Sistema de Tributação nº 03, de 14/11/96, que prevê que a propositura de ação judicial pelo contribuinte, antes ou posteriormente à autuação, com o mesmo objeto, implica em renúncia de eventual recurso interposto, ofende ao princípio da legalidade, porque extrapolou os limites de sua regulamentação. 3. O princípio da independência entre as instâncias administrativa e judicial permite que o mesmo fato seja analisado pela instância administrativa ainda que haja pendência de processo judicial, sendo possível que a administração conceda o mérito mesmo que o interessado não obtenha êxito na via judicial. 4. Apelação e remessa oficial, tida por interposta, a que se nega provimento. (Grifou-se)
Nota-se novamente que o Poder Judiciário, no caso em tela, se valeu do Ativismo Judiciário em prol do contribuinte, polo mais fraco da relação jurídica tributária, ao desconsiderar um comando emitido pelo Poder Legislativo, se valendo de uma aplicação direta da interpretação constitucional.
6.5 Prescrição Intercorrente
Uma manifestação do ativismo judicial não muito popular, mas que vem se mostrando parte da jurisprudência do Rio Grande do Sul, reside em casos de decretação de prescrição em sede de execução fiscal.
O prazo prescricional é o período de cinco anos que a Fazenda Pública possui para exigir judicialmente o pagamento de um crédito tributário, contados após a constituição definitiva do crédito tributário, ou seja, após a ocorrência do lançamento. Findo o prazo, ocorre a extinção do direito à exigibilidade do crédito tributário, ou seja, a perda do direito de ação.
Conforme postula a doutrina e a jurisprudência, existe ainda outra espécie de prescrição, a chamada de prescrição intercorrente:
(...) resultante de construção doutrinária e jurisprudencial para punir a negligência do titular de direito e também para prestigiar o princípio da segurança jurídica, que não se coaduna com a eternização de pendências administrativas ou judiciais. Assim, quando determinado processo administrativo ou judicial fica paralisado por um tempo longo, por desídia da Fazenda Pública, embora interrompido ou suspenso o prazo prescricional, este começa a fluir novamente. [34]
Essa modalidade é fruto da promulgação da Lei n° 11.960/09, a qual introduziu na Lei de Execuções Fiscais o parágrafo 4° ao seu artigo 40.
Dessa maneira, em análise do texto legal, temos que, em sede de execução fiscal, é declarada a prescrição intercorrente quando o feito estiver paralisado por mais de cinco anos após a declaração de suspensão do processo, em consequência da inércia da Administração Tributária.
Art. 40 - O Juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição.
(...)
§ 4o Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato.
Em consonância com esse entendimento doutrinário se encontra o posicionamento do STJ, ao editar a Súmula 314: “em execução fiscal, não localizados bens penhoráveis, suspende-se o processo por um ano, findo o qual inicia-se o prazo de prescrição quinquenal intercorrente”.
Existe ainda a possibilidade do prazo prescricional ser interrompido, consequentemente retornando para o seu valor integral de cinco anos. Os casos onde a prescrição é interrompida encontram-se elencados no art. 174 do CTN, vejamos:
Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.
Parágrafo único. A prescrição se interrompe:
I - pela citação pessoal feita ao devedor;
II - pelo protesto judicial;
III - por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;
IV - por qualquer ato inequívoco ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo devedor.
Entretanto, contrariando os comandos legais emitidos pelo artigo supra citado, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul vem adotando um posicionamento no sentido de atribuir como hipótese de prescrição tributária o fluir do prazo de cinco anos, contados a partir da data da citação da executada, sem que o fisco tenha obtido a satisfação da obrigação tributária, ainda que atue diligentemente, impulsionando o processo. Observemos a jurisprudência:
REEXAME NECESSÁRIO. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. ISSQN. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. OCORRÊNCIA. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO.
I - O prazo prescricional é de 5 (cinco) anos e transcorre a partir da constituição definitiva do crédito tributário, conforme previsto no art. 174 do CTN. Tal prazo é interrompido com a citação válida do devedor.
II - Em sede de execução fiscal, a inércia da parte credora em promover os atos de impulsão processual, por mais de cinco anos, pode ser causa suficiente para deflagrar a prescrição intercorrente, se a parte interessada, negligentemente, deixa de proceder aos atos de impulso processual que lhe compete ou, mesmo que agindo diligentemente, não obtenha êxito em localizar os bens dos devedores.
III - Ocorrência da prescrição intercorrente, no caso concreto, pois transcorridos mais de cinco anos após a data da citação do executado, sem que tenha sido satisfeita a obrigação tributária.
SENTENÇA MANTIDA EM REEXAME NECESSÁRIO.
(Reexame Necessário Nº 70035967280, Julgado em 30/06/2010)
(grifou-se)
APELAÇÃO CÍVEL. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. IPVA. PRESCRIÇÃO. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO "EX OFFICIO". POSSIBILIDADE. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. OCORRÊNCIA, NO CASO CONCRETO.
I - O art. 219, § 5º, do Código de Processo Civil, com a redação dada pela Lei 11.280, de 16.02.2006, autoriza o juiz decretar de ofício a prescrição.
II - Em sede de execução fiscal, a inércia da parte credora em promover os atos de impulsão processual, por mais de cinco anos, pode ser causa suficiente para deflagrar a prescrição intercorrente, se a parte interessada, negligentemente, deixa de proceder aos atos de impulso processual que lhe compete ou, mesmo que agindo diligentemente, não obtenha êxito em localizar os bens dos devedores. Isso porque o crédito tributário não é eterno.
IV - Com relação à prescrição, verifico a ocorrência da mesma, pois transcorridos mais de dez anos após a data da citação da executada por edital, sem que tenha sido satisfeita a obrigação tributária.
APELO DESPROVIDO. UNÂNIME.
(Apelação Cível Nº 70033437336, Julgado em 11/08/2010)
(grifou-se)
Dessa maneira, é notável a atuação do Poder Judiciário gaúcho no sentido de não somente contrariar o disposto no art. 174, inciso III do CTN, mas também de inovar e criar os requisitos para a interrupção do prazo prescricional.
Assim, ao requerer o êxito na localização dos bens dos devedores, a fim de que não seja deflagrada a prescrição intercorrente, o Judiciário atua de uma maneira claramente ativista sob a escusa do crédito tributário não ser eterno.
6.6 Modulação Temporal dos Efeitos de Declaração de Inconstitucionalidade
A modulação temporal dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade é um instrumento recentemente firmado em nosso ordenamento jurídico com o advento das Leis Ordinárias de n° s 9.868/99 e 9.882/99, o qual permite ao STF declarar que sua decisão terá eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou em outro momento a ser fixado, em casos de excepcional interesse social, bem como em situações que possam vir a gerar insegurança jurídica.
O emprego dessa técnica no controle de constitucionalidade permite o aprofundamento de temas antes afastados de apreciação constitucional, uma vez que fornece ao julgador a solução para casos onde a declaração de inconstitucionalidade de uma norma geraria severos efeitos na sociedade.
Pelo princípio da nulidade da lei inconstitucional, uma norma declarada como inconstitucional é incompatível com o nosso ordenamento jurídico, pois somente em consonância com a Constituição Federal ela teria validade[35].
Essa norma incongruente com a Carta Magna é tida como absolutamente nula, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade retroagirá (efeitos ex tunc) para o momento em que ela entrou em vigor, banindo a norma de todo ordenamento jurídico. Dessa maneira, uma norma caracterizada como inconstitucional sequer chega a gerar efeitos.
Entretanto, ao atribuir efeitos ex nunc às suas decisões, o STF adota uma posição ativista, uma vez que institui uma norma por um período de tempo no passado. Transcorrido esse período, ela será tida como inválida, bem como os atos praticados sob sua sombra.
Contudo, apesar dos avanços conquistados com a possibilidade de ponderar entre a atribuição de efeitos ex tunc e ex nunc, a modulação dos efeitos das decisões pode se mostrar como uma ameaça aos direitos e garantias do contribuinte, o elo mais frágil da relação jurídico-tributária.
Diante disso, faz-se mister analisarmos um caso concreto a fim de tirarmos nossas conclusões, caso esse de suma importância para o estudo das modulações dos efeitos das decisões em face de seu desfecho peculiar, a fim de tirarmos nossas conclusões.
A decisão dos Recursos Extraordinários 559.882-9 e 560.626-1, julgamento de 11/06/2008, declarou a inconstitucionalidade dos artigos 45 e 46 da Lei n° 8.212/91, os quais fixavam o prazo de dez anos para ser efetuado o lançamento e a cobrança de contribuições previdenciárias, bem como do parágrafo único do artigo 5° do DL 1.569/77, o qual estipulava que o arquivamento das ações de execução fiscal de créditos tributários de pequeno valor seria causa de suspensão do curso do prazo prescricional, uma vez que, segundo o artigo 146, III, ´b da Constituição Federal, apenas legislação complementar pode dispor sobre decadência e prescrição para a cobrança das contribuições da seguridade social e demais tributos.
Entretanto, a inovação se deu ao atribuir efeitos ex nunc à decisão, ou seja, a tributação realizada fora do correto prazo de cinco anos e antes da data de conclusão do julgamento é tida como válida àqueles que não pleitearam em juízo a inconstitucionalidade dos dispositivos legais.
Portanto, contribuintes que optaram por não recorrer ao judiciário em um primeiro momento, se viram impossibilitados de ajuizar ação de repetição dos tributos recolhidos indevidamente, enquanto aqueles que já haviam proposto ação antes da conclusão do julgamento puderam obter a restituição devida.
Em análise desse marcante caso, nota-se que, em detrimento de preservar os valores arrecadados e evitar um suposto esvaziamento dos cofres públicos, foi ferida a Segurança Jurídica, uma vez que o STF nitidamente tratou de maneira desigual os contribuintes que não recorreram ao judiciário previamente, em face daqueles que pleitearam em juízo seus direitos.
Cumpre destacarmos a argumentação elucidada pelo Ministro Marco Aurélio em 12/06/2008, no julgamento dos efeitos temporais da decisão do RE 559.882-9:
Não vejo com bons olhos, Presidente, a modulação em caso que acaba por diminuir a eficácia da Constituição Federal. A modulação quando, em última análise, há o prejuízo para os contribuintes, já exasperados com a carga tributária e, também, o locupletamento do Estado.
A modulação dos efeitos de uma decisão declaratória de inconstitucionalidade desfavorável ao contribuinte, além de possuir um evidente efeito negativo na realidade presente, pode ainda vir a trazer consequências danosas futuramente.
Abre-se um precedente para a possibilidade de futuros abusos por parte do Estado, o qual pode editar normas tributárias desrespeitosas à nossa Carta Magna de má fé, uma vez ser nítida a vantagem concedida através da modulação dos efeitos da inconstitucionalidade sob a escusa de evitar possíveis prejuízos financeiros [36], a chamada “inconstitucionalidade útil”.
Portanto temos que, balizado nos Princípios Constitucionais protetores da segurança jurídica, o STF não deveria modular os efeitos de decisões quando esse ato resultar em um efeito negativo ao contribuinte, uma vez se tratar do polo hipossuficiente da relação jurídico-tributária, o qual necessita de proteção em face de imposições tributárias arbitrárias, trazidas sob a forma de estabilidade e previsibilidade legal e jurisprudencial.
6.7 Súmulas Vinculantes
Com o advento da Emenda Constitucional de n° 45/2004, o ordenamento jurídico brasileiro foi agraciado com mais uma ferramenta contra a insegurança jurídica e o afogamento do judiciário, a possibilidade edição de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal.
Uma vez se tratando de matéria constitucional fomentadora de controversias entre órgãos judiciários ou entre eles e administração pública, bem como geradora de insegurança jurídica e multiplicação dos processos judiciais, após reiteradas decisões em uma determinada matéria pode o STF editar súmulas com efeitos vinculantes.
Ao editá-las, o STF condiciona a todos os órgãos do Poder Judiciário, assim como à administração pública direta e indireta, o seu entendimento pacificado, adquirindo, portanto status de fonte formal de direito, ao invés de uma mera orientação jurisprudencial. [37]
Segundo Hans Kelsen, ao conferir a um tribunal uma função criadora do direito, derivada do poder de instituir normas gerais, ele estará em concorrência com o órgão do Poder Legislativo, caracterizando uma descentralização da função legislativa[38].
Portanto, mediante a força de lei das súmulas vinculantes, torna-se perceptível o posicionamento ativista exercido pelo Supremo Tribunal Federal, o qual atua como legislador positivo ao editá-las.
Em sede de matéria tributária, a primeira edição de súmula vinculante ocorreu em 2008, mais precisamente com a súmula vinculante n° 8, a qual declarou que “são inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário.”, matéria essa previamente ilustrada na presente obra.
Recentemente o STF editou diversas novas súmulas vinculantes cujos conteúdos versam sobre matéria tributária, vejamos elas:
É inconstitucional a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade de crédito tributário. [39]
É constitucional a adoção, no cálculo do valor de taxa, de um ou mais elementos da base de cálculo própria de determinado imposto, desde que não haja integral identidade entre uma base e outra. [40]
É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis. [41]
O ICMS não incide sobre alienação de salvados de sinistro pelas seguradoras. [42]
Dando continuidade a essa tendência, o STF havia publicado ainda em 24 de abril de 2012 o edital de proposta n° 70, o qual objetiva transformar em Súmula Vinculante vinte e duas súmulas ordinárias. Entre essas súmulas, encontram-se algumas de matéria tributária, como por exemplo, a transcrita abaixo:
A imunidade tributária conferida a instituições de assistência social sem fins lucrativos pelo art. 150, VI, "c", da Constituição, somente alcança as entidades fechadas de previdência social privada se não houver contribuição dos beneficiários. [43]
Dessa maneira, é notável a preocupação do STF de consolidar jurisprudência, editando cada vez mais habitualmente súmulas de caráter vinculante.
Chegamos ao fim da análise de diversas formas de manifestação do ativismo judicial em matéria tributária. Faz-se mister agora colocarmos essas modalidades em confronto com os princípios constitucionais anteriormente mencionados na presente obra, a fim de obtermos uma resposta satisfatória acerca da possibilidade de sua coexistência com o Direito Tributário brasileiro.
7. A COLISÃO ENTRE A SEGURANÇA JURÍDICA E O ATIVISMO JUDICIAL EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA
Com base nos estudos acerca do ativismo judicial, tornou-se claro que o poder de instituir e modificar tributos não é mais uma exclusividade dos Poderes Legislativo e Executivo, mas também uma faculdade do Poder Judiciário, faculdade essa cada vez mais utilizada sob a escusa de proteger a ordem constitucional.
Em âmbito de Direito Tributário, o princípio da segurança jurídica objetiva proteger o contribuinte dos atos praticados pelo Estado no que tange a elaboração de normas fiscais e consequentemente a cobrança de tributos.
Se por um lado a ampliação do raio de atuação do Poder Judiciário através do ativismo judicial se mostra benéfica, uma vez que ele passa a ser “co-partícipe do processo de modernização do Estado brasileiro”, segundo o Ministro Celso de Mello [44], por outro lado ela pode conflitar com a própria ideia de segurança jurídica.
Quando nos referimos ao ativismo judicial no direito tributário, ou seja, o poder judiciário atuando como legislador positivo em lides de matéria tributária estamos falando de um poder judicial de tributar.
Ora, se os princípios constitucionais impõem uma limitação ao poder legislativo e executivo de tributar, eles devem analogamente ser aplicados como barreiras impostas à esse mais novo “poder”.
Ao que nos parece, conforme previamente explicitado na obra, no que concerne a segurança jurídica, o ativismo judicial em matéria tributária entraria em choque predominantemente com os princípios da não surpresa e da legalidade tributária.
Portanto, uma vez de posse dos conceitos de ambos os princípios citados, assim como de tendo analisado os mais diferenciados casos de manifestação do ativismo judicial dentro de lides tributárias, podemos então passar para as análises críticas dos conflitos entre o ativismo judicial com os Princípios da Não Surpresa e da Legalidade.
7.1 O Princípio da Não Surpresa e o Ativismo Judicial
Conforme previamente elucidado na presente obra, o princípio da não surpresa se configura como uma limitação constitucional ao poder de tributar, em favor do contribuinte, a fim de que se faça possível planejar suas atividades futuras em função da tributação, nas palavras de Sacha Calmon:
O princípio da não surpresa do contribuinte é de fundo axiológico. É valor nascido da aspiração dos povos de conhecerem com razoável antecedência o teor e o quantum dos tributos a que estariam sujeitos no futuro imediato, de modo a poderem planejar as suas atividades levando em conta os referenciais da lei. [45]
Em casos onde a modulação dos efeitos temporais decorrer de uma mudança jurisprudencial, antes favorável ao contribuinte, a aplicação do princípio da não surpresa é uma exigência imposta à nova orientação, no sentido de não se atribuir efeitos retroativos ao novo entendimento do STF, para que o contribuinte não seja surpreendido pela nova jurisprudência. [46]
Contudo, em circunstâncias onde a Fazenda é prejudicada pela aplicação do ativismo judicial no que concerne a diminuição do valor de uma dívida, não se pode alegar que o Estado esteja sendo surpreendido, já que os princípios tributários são limitações ao poder de tributar, não podendo ser invocados por quem é titular desse poder.
Adicionalmente, em casos onde o Poder Judiciário venha a suprir uma omissão legislativa em matéria tributária, deverá ser observado o princípio da não surpresa, sob pena de ferir a segurança jurídica.
Entretanto, cumpre ressaltar não há que se falar em violação ao princípio da não surpresa quando a jurisprudência alterar dispositivos de ordem processual tributária, uma vez que o respectivo princípio recai apenas sobre a instituição e majoração de tributos, e não sobre o processo judicial tributário. Analogamente o mesmo entendimento deve ser aplicado quanto às disposições referentes à prescrição do crédito tributário.
Em se tratando de súmulas vinculantes, não há espaço para a discussão da aplicação do princípio constitucional em tela, uma vez que a atribuição de efeitos vinculantes para a jurisprudência do STF não retroage, ou seja, elas passam a vigorar apenas a partir da data de publicação no Diário de Justiça e no Diário Oficial da União. Portanto, mediante a irretroatividade das súmulas vinculantes, não existe possibilidade de violação do princípio da não surpresa.
Nota-se, portanto que quando colocamos o ativismo judicial em choque unicamente com o princípio da não surpresa, existem apenas algumas situações onde ele não é tido como compatível com a ordem constitucional brasileira.
Com base na análise dos casos concretos, temos que apenas ao modular os efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade, quando em desfavor do contribuinte, deve ser observado o princípio da não surpresa, sob pena do uso do ativismo judicial constituir uma grave lesão à ordem constitucional brasileira.
No entanto, existe uma barreira constitucional ainda maior contrária ao ativismo judicial, estamos falando do princípio da legalidade, previamente elencado na presente obra. Passemos então para a análise do encontro entre o ativismo judicial com o princípio da legalidade tributária.
7.2 O Princípio da Legalidade Tributária e o Ativismo Judicial
Conforme previamente explicado, o princípio da legalidade tributária é derivado do princípio da legalidade, disposto no art. 5°, II da CRFB, o qual estipula ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Estamos diante de um princípio dotado de um peso histórico, importante conquista na luta popular contra o cometimento de abusos por parte de um Estado tido como opressor e constituído de poderes ilimitados.
O princípio da legalidade tributária impede que a administração pública crie, majore ou minore tributo, assim como submete sua cobrança à existência prévia de lei. Ora, se os Poderes Executivo e Legislativo devem sofrer tal limitação, analogamente o Poder Judiciário deve respeitar o princípio da legalidade ao abraçar o ativismo judicial.
A partir do momento em que o magistrado deixa de lado seu manto de legislador negativo, e assume a postura de legislador positivo, seus atos devem consequentemente ser balizados no princípio da legalidade tributária. Dessa forma, essa limitação ao poder judicial de tributar acaba por conflitar com a adoção do ativismo judicial.
Em casos onde o poder judiciário altera o valor de multas tidas como exorbitantes, à luz do princípio do não confisco, ainda que as multas tributárias não sejam resguardadas pelo princípio contido no art. 150, inciso I da CRFB, elas são amparadas pelo princípio da legalidade, conforme leciona Ricardo Alexandre [47]:
Já em face da amplitude do princípio da legalidade estatuído no art. 5°, inciso II, da CF, a multa tributária, por gerar uma obrigação a ser adimplida pelo infrator, somente pode ser estatuída por lei.
Analogamente, ainda que se pense na possibilidade do Poder Judiciário constituir normas de cunho meramente processual, tal atitude ainda assim não é compatível com nosso ordenamento jurídico, uma vez que o Direito Processual Civil brasileiro é regido pelo princípio contido no art. 5°, inciso II de nossa Carta Maior.
Mediante isso, é notável que muitas das decisões ativistas em lides tributáristas entram diretamente em choque com o princípio da legalidade. Ao alterar o valor de um tributo ou multa a ser pago, modificar um comando processual, ou ainda suprir uma eventual omissão legislativa, acaba por contrariar o princípio da legalidade, uma vez que nossa Carta Magna não o confere poderes para tal.
Dessa forma, nota-se que a maioria dos exemplos mencionados na presente obra configura-se como um flagrante desrespeito ao princípio da legalidade.
Por outro lado, é possível notar que a edição de súmulas de caráter vinculante e a modulação temporal dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade não se configuram como rupturas ao referido princípio.
Diante de todo o exposto, estamos aptos para elaborarmos um resultado conclusivo acerca da possibilidade da adoção do ativismo judicial em matéria tributária.
8. CONCLUSÃO
O ativismo judicial é fruto de um processo histórico ocorrido na civilização ocidental, cujo marco foi os primeiros movimentos constitucionalistas ingleses, evoluindo até as sociedades contemporâneas regidas em observância de Constituições Republicanas.
Caracteriza-se pela participação na elaboração de políticas que normalmente são feitas pelos outros Poderes, bem como de substituir as decisões feitas por esses Poderes ou suprir omissões desses poderes, por parte do Poder Judiciário, ou seja, pelo abandono do manto de um mero legislador negativo, para atuar como um legislador positivo, adquirindo um chamado “poder judicial de tributar”.
Se por um lado o poder judicial de tributar é utilizado motivado pela idéia de se fazer valer a força normativa da Constituição, por outro lado ele pode acabar por contrariar dois princípios basilares do Direito Tributário, o da legalidade e o da não surpresa (o qual por sua vez se traduz nos princípios da anterioridade, noventena e irretroatividade).
Em análise de diversos casos envolvendo manifestações de ativismo judicial em matéria tributária, não é possível estabelecer um padrão para a possibilidade de sua compatibilidade com a ordem constitucional brasileira.
Diante da existência de inúmeras manifestações distintas do ativismo judicial em matéria tributária, não há a possibilidade de elaborar uma resposta única e genérica acerca de sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro.
Ao longo da presente obra estudamos casos onde a adoção da postura ativista fere o princípio da não surpresa, assim como existem casos onde o ativismo judicial é coerente com o referido princípio.
Paralelamente temos lides onde o poder judicial de tributar fere o princípio da legalidade tributária, e por outro lado encontramos maneiras de se fazer valer do ativismo judicial sem atacar esse princípio.
Em suma, o ativismo judicial utilizado em matéria tributária não contraria nossa Constituição Federal apenas quando se encontra de acordo com os princípios da legalidade tributária e da não surpresa simultaneamente.
Portanto, há um espaço pequeno e limitado para o ativismo judicial em matéria tributária, enquanto não houver uma positivação permissiva explícita em nossa Constituição Federal.
Conclui-se que cabe ao Poder Judiciário realizar ponderações antes de adotar uma postura ativista em lides de que envolvam o Direito Tributário, uma vez que o sistema tributário nacional é composto de princípios constitucionais rígidos.
Portanto, caso não sejam respeitados esses princípios, o magistrado ao tentar fazer valer a supremacia da Carta Magna, pode vir descumprir os próprios comandos constitucionais.
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[8] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, pg. 22-23
[9] REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. Ativismo Judicial e Estado de Direito. In: Estado de Direito e Ativismo judicial. José Levi Mello do Amaral Júnior (Coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2010, pg. 73-74
[10] BARROSO, Luís Roberto, pg. 10, acesso em 16.12.2012
[11] BARROSO, Luís Roberto, pg. 14, acesso em 16.12.2012
[12] BARROSO, Luís Roberto, pg. 16, acesso em 16.12.2012
[13] BARROSO, Luís Roberto, pg. 7, acesso em 16.12.2012
[14] BARBOSA, Hélder Fábio Cabral. A efetivação e o custo dos direitos sociais: A falácia da Reserva do possível; in Estudos de direito constitucional. Fernando Gomes de Andrade (org.). Recife: Edupe, 2011, pg. 151
[15] Do espírito das Leis, São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962, v. 1, pg. 181.
[16] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ed. São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 178
[17] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado, 4ª ed. São Paulo: Método, 2010, pg. 107
[18] BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 8. ed. Atualizadora: Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010, pg. 2
[19] BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 8. ed. Atualizadora: Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010, pg. 81 - 84
[20] Art. 178 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 10 de Novembro de 1937)
[21] Art 141, § 34 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de Setembro de 1946)
[22] COELHO, Sacha Calmon Navarro. O Princípio da Legalidade. O Objeto da Tutela. In PIRES, Adilson R.; TÔRRES, Heleno T. (Org.). Princípios de Direito Financeiro e Tributário: Estudos em Homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pg.622
[23] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1997, pg. 110
[24] ALEXANDRE, 2010, pg. 111
[25] ALEXANDRE, 2010, pg. 113
[26] BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 8. ed. Atualizadora: Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010, pg. 99
[27] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado, 4ª ed. São Paulo: Método, 2010, pg. 148
[28] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 551/RJ. Relator: Min. Ilmar Galvão. Brasília, 24 de outubro de 2002, disponível em
http://www.stf.gov.br/Jurisprudencia/Jurisp.asp&Sect1=IMAGE&Sect2=THESOFF&Sect3=PLURON&Sect6=SJURN&p=1&r=1&f=G, acessado em 16.08.2012.
[29] RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 200700115185, 4ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Mário dos Santos Paulo, 03/07/2007.
[30] SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível nº 20070031958, 2ª Câmara de Direito Público, Relator: Desembargador Jaime Ramos, 29/05/2007.
[31] Alíquota 30% de ICMS, a qual representa 25% estabelecidos pelo art. 14, VI, “b” e VIII, “g”, da Lei Estadual 2.657/96 comungados com 5% referentes ao “Fundo Estadual de Combate à Pobreza e às Desigualdades Sociais”.
[32] RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Mandado de Segurança n° 2008.004.00228
[33] MANEIRA, Eduardo. “Ativismo Judicial e os Seus Reflexos em Matéria Tributária”. In: Direito Tributário e a Constituição: Homenagem ao Prof. Sacha Calmon Navarro Coêlho. São Paulo: Quartier Latin, 2012, pg. 277.
[34] Dicionário de direito público. São Paulo: MP Editora, 2ª ed., 2005, pg. 297.
[35] Cf. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Da declaração de inconstitucionalidade e seus efeitos em face das leis nºs 9.868 e 9.882/99. In: SARMENTO, Daniel (Org.) et. al. O Controle de Constitucionalidade e a Lei 9.868/99. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, pg. 48.
[36] DERZI, M. A. M. . Modificações da jurisprudência no Direito Tributário: proteção da confiança, boa fé objetiva e irretoratividade como limitações constitucionais no poder judicial de tributar. 1. ed. São Paulo: Noeses Ltda, 2009. v. 1.
[37] JARDIM, Renato César. As súmulas dos tribunais como fonte formal do direito. Uma abordagem após o advento das súmulas vinculante e impeditiva de recurso, disponível em
http://www.ejef.tjmg.jus.br/home/files/publicacoes/artigos/as_sumulas_dos_tribunais_como_fonte_formal_do_direito.pdf, acessado em 03.04.2012.
[38] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 2. ed., Coimbra: Arménio Amado Ed., 1962, v. 2
[39] Súmula Vinculante n° 28
[40] Súmula Vinculante n° 29
[41] Súmula Vinculante n° 31
[42] Súmula Vinculante n° 32
[43] Súmula n° 730 do STF
[44] Entrevista: José Celso de Mello Filho, disponível em http://www.conjur.com.br/2006-mar-15/juizes_papel_ativo_interpretacao_lei, acessado em 07.09.2012
[45] COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, pg 250
[46] MANEIRA, Eduardo. Matéria tributária não permite ativismo judicial, disponível em http://www.conjur.com.br/2012-ago-17/eduardo-maneira-nao-espaco-ativismo-judicial-materia-tributaria, acessado em 20.09.2012
[47] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado, 4ª ed. São Paulo: Método, 2010, pg. 111
Advogado. Bacharel em Direito pela UFRJ com Especialização em Direito Tributário pela EMERJ.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Diogo Vollstedt de. As limitações constitucionais ao poder judicial de tributar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 abr 2013, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34582/as-limitacoes-constitucionais-ao-poder-judicial-de-tributar. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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