Em um Estado Democrático de Direito, em que se faz presente o império da lei e não a vontade de uma minoria, ganha relevância o princípio da legalidade, o qual, de uma forma geral, encontra-se expresso no artigo 5°, inciso II da Constituição Federal, que enuncia que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".
Percebe-se, pois, que o princípio da legalidade rege todos os ramos do direito, de uma forma mais ou menos intensa, a depender da ingerência estatal em cada seara jurídica. No âmbito do direito tributário, por sua vez, deve-se destacar que, em razão de sua interferência direta no direito de propriedade, o princípio da legalidade se faz presente de uma maneira rigorosa, sendo por isso denominado de princípio da estrita legalidade tributária. Nesse sentido, a própria Constituição Federal trouxe norma expressa a esse respeito, in verbis:
"Art. 150 (...)
I - Sem prejuízo de ouras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça "
Por sua vez, o Código Tributário Nacional, em seu artigo 97, veio regulamentar o princípio da legalidade no direito tributário, esclarecendo quais os temas que só podem ser tratados mediante lei:
Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
I - a instituição de tributos, ou a sua extinção;
II - a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
III- a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3° do artigo 52, e do seu sujeito passivo;
IV- a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
V- a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas;
VI- as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.
§ 1° Equipara-se à majoração do tributo a modificação da sua base de cálculo, que importe em torná-lo mais oneroso.
§ 2° Não constitui majoração de tributo, para os fins do disposto no inciso II deste artigo, a atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo.
Dessa forma, o conteúdo do princípio da legalidade exige que a norma tributária que cria ou aumenta tributo, ainda que de uma forma reflexa, seja uma lei. Dessa forma, “as exigências do princípio da legalidade tributária são cumpridas quando a lei delimita, concreta e exaustivamente, o fato tributáve.”[1]
Entretanto, apesar de tanto a Constituição Federal quanto o CTN disciplinarem a matéria, esclarecendo quais as hipóteses em que se exige lei no âmbito do direito tributário, há situações em que surgem divergências quanto a necessidade ou não da lei, o que, em última análise, é decido pelos tribunais superiores.
Assim, o presente estudo pretende analisar como o Supremo Tribunal Federal está se posicionando a respeito do princípio da legalidade em matéria tributária, especificamente no que se refere a necessidade de lei para corrigir monetariamente o tributo.
Apesar do § 2° do art. 97 do CTN estatuir que não constitui majoração de tributo, para os fins do princípio da reserva legal, a atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo, essa questão chegou ao Supremo Tribunal Federal.
Trata-se, ademais, de um tema recorrente no dia-a-dia do contribuinte, uma vez que nao são raras as situações em que a simples correção monetária do tributo implica um aumento substancial de seu valor, gerando um sentimento de indignação no cidadão, comumente noticiado em relação ao Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU.
O Plenário da Corte Constitucional, ao julgar o Recurso Extraordinário 172.394, da Relatoria do Ministro Marco Aurélio, decidiu que não fere os princípios constitucionais da legalidade, da anterioridade e da vedação de delegação legislativa, a correção monetária do débito tributário mediante adoção de índice estadual, no caso Unidades Fiscais do Estado de São Paulo (UFESP).
O caso se referia a fixação do momento a partir de quando incide a correção monetária sobre o débito fiscal relativo ao ICMS, no Estado de São Paulo.
No referido julgamento, restou vencido o relator, o qual considerou que na hipótese analisada, acabou-se por adotar mecanismo que, em última análise, implica a majoração do ICMS, uma vez que, antes mesmo da data do vencimento, cogitou-se de atualização. Nesse ponto, esclareceu o Ministro Marco Aurélio que a correção monetária pressupõe, em relação aos débitos em geral, para que haja válida incidência, o inadimplemento da obrigação ou o financiamento de certo valor. Sob tal ótica, o dispositivo questionado teria violado o principio da legalidade tributária.
Dessa forma, o relator entendeu que a legislação discutida não ficou restrita à atualização do valor devido, porquanto, inexistente a exigibilidade, não se pode ainda falar no acessório consubstanciado na correção monetária, tal como ocorre relativamente à multa e aos juros. Assim, enquanto não ocorre o vencimento da obrigacao, o que devido pelo contribuinte há de ser fruto unicamente do valor da operação efetuada e da incidência da aliquota própria, resultando em acréscimo do tributo impor a atualização dia-a-dia, antes de ocorrido o vencimento, quando os fatores que nortearam os parâmetros a serem respeitados - no caso, o valor da transação e a aliquota - permanecem os mesmos.
Nesse sentido, o relator concluiu seu voto entendendo que a legislacao, ao fazer incidir correção monetária sobre valor de tributo antes mesmo do vencimento deste, implicou a transgressão ao teor do inciso I do artigo 150 e do inciso I, § 2°, do artigo 155, ambos da Constituição Federal.
Por sua vez, o Ministro Ilmar Galvão divergiu do entendimento do relator, por entender que a definição do prazo para vencimento do tributo e do termo inicial de incidência de correção monetária não se compreende no campo reservado à lei, seja ela complementar, seja ordinária. Afinal, não se confundem tais elementos temporais com a instituição ou aumento de exação fiscal. Aliás, não foi por outra razão que o legislador complementar não os incluiu no art. 97 do CTN, onde relacionou aquilo que somente a lei pode estabelecer em matéria tributária.
Assim sendo, o Ministro Ilmar Galvão conclui que não há espaço para falar-se em delegação de competência legislativa, diante do simples fato de o legislador haver confiado a quem se acha investido do poder de expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis, a tarefa de determinar o vencimento da obrigação fiscal e de regular-lhe o reajustamento monetário, elaborando, por esse meio, fonte complementar de direito tributário, na forma prevista no art. 100, I, do CTN.
Por sua vez, o Ministro Carlos Velloso pediu vista dos autos, e proferiu voto no sentido de acompanhar a divergência, salientando que a legislação paulista fez justamente o inverso do que defendido pelo relator, isto é, apesar de a lei autorizar a correção monetária do débito fiscal a partir de sua apuração, a mesma lei deixou expresso que poderia ser estabelecido prazo intermediário para que o recolhimento se fizesse pelo valor nominal do débito. Com base em tal disposição, o Executivo facultou o recolhimento do débito fiscal pelo seu valor nominal até o nono dia seguinte à apuração do mesmo débito fiscal, o que é perfeitamente legítimo. Em outras palavras, a correção monetária poderia incidir a partir da apuração do débito fiscal, uma vez que com a apuração do débito, tem-se o seu vencimento. Concluiu o Ministro Carlos Velloso, portanto, que a disposição legal é legítima.
O Ministro Maurício Correa se manifestou no mesmo sentido da divergência, por entender que a matéria pode ser regulada por decreto, eis que só pode implicar na redução do ônus tributário, porquanto só lhe é permitido excluir um período da incidência da correção monetária, que se estende da apuração do ICMS até um dia qualquer ou até o dia fixado para o recolhimento. E foi exatamente isto o que fez o decreto impugnado, que, ao estabelecer que a correção incide a partir do décimo dia subseqüente à apuração, na verdade excluiu nove dias da sua incidência. Assim, não houve ofensa ao art. 150, I, da Constituição, que proíbe "exigir ou aumentar tributo", não proibindo a sua "redução".
Concluiu o Ministro Mauricio Correa, quanto a essa questão, que é tão legítima a indexação do ICMS à UFESP quanto é legítima a indexação dos tributos federais à UFIR, e, em conseqüência, resta também legítima a incidência da correção antes do vencimento do prazo para pagamento do tributo.
O Ministro Celso de Mello acompanhou o relator, e entendeu que a norma paulista era inconstitucional, com os seguintes fundamentos:
“Na realidade, o preceito legal em questão deslocou para instância juridicamente inadequada o poder de regulação sobre categoria temática - a definição normativa de mecanismo de correção monetária de débitos fiscais - que se acha submetida, em razão de sua própria matéria, ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei em sentido formal. Não se pode desconhecer que a atividade tributária do Estado constitui ação necessariamente subordinada à estrita observância de modelos normativos institucionalizados, em seus aspectos essenciais e em sua configuração básica, no próprio texto da Constituição. O Poder Público, desse modo, está rigidamente sujeito, no regramento de matérias que exijam disciplinaçao mediante atos normativos primários - como ocorre na veiculação de temas de direito tributário que concernem às relações entre o Estado e o contribuinte - ao principio constitucional da reserva de lei. Este postulado, enquanto valor subordinante da atuação governamental, extrai a sua autoridade da matriz jurídica de que se origina, qualificando-se como fator condicionante da própria validade e eficácia das deliberações estatais que versem questões como aquela pertinente ao estabelecimento da sistemática de atualização monetária dos débitos fiscais.
É preciso enfatizar que a essência do direito tributário reside na integral submissão do poder estatal à rule of law, de tal modo que, respeitados os postulados fixados pela própria Constituição, a eficácia da atividade governamental em matéria tributária está sempre condicionada ao que haja o legislador estabelecido em sede jurídica adequada, vale dizer, ao que, pelo Estado, haja sido ditado em lei e nesta regrado.
Não basta, portanto, que o Poder Público tenha promulgado um ato legislativo para que se legitime, desde logo, a atividade estatal. Impõe-se, antes de mais nada, que o legislador não haja excedido os limites que condicionam, no plano constitucional, o exercício de sua indisponível prerrogativa de fazer instaurar, em caráter inaugural, a ordem jurídico-normativa. Isso significa dizer que o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado - como o Poder Executivo - produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar.
(...)
A instituição da correção monetária de débitos fiscais, sem base normativa adequada - posto que inexistente a necessária veiculação dessa matéria em lei -, vulnera, sem qualquer .dúvida, o postulado constitucional da reserva absoluta de lei formal.
A implantação no Estado de São Paulo, por via meramente administrativa, de nova sistemática jurídica pertinente à atualização monetária dos débitos tributários, por implicar o estabelecimento originário de disciplina normativa sobre tema essencialmente regulável em sede legal, transgrediu o princípio da separação de poderes, pois não se revelava lícito ao Legislativo local deferir ao Governador do Estado autorização para editar regras jurídicas novas sobre correção monetária dos créditos fiscais daquela unidade da Federação.”
Termina, então, o Ministro Celso de Mello o seu voto no sentido da inconstitucionalidade do dispositivo, por ofender o principio da reserva legal.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal, portanto, conclui o julgamento, por maioria de votos, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, no sentido da inexistência de reserva legal para estabelecimento do termo inicial de incidência de correção monetária.
No julgamento do Recurso Extraordinário 201618-7, da relatoria do Ministro Ilmar Galvão, essa questão foi novamente analisada, tendo o relator registrado que tanto a doutrina quanto a jurisprudência são unânimes em afirmar que a correção monetária não implica majoração de débito, mas simples manutenção do seu valor real. Ademais, não se poderia falar em direito adquirido de recolher o tributo sem correção.
Nesse mesmo sentido, o STF se manifestou em outras oportunidades, como nos Recursos Extraordinários 154.273, 172.197, 182.971, 195.599, 208.280, 225.061, 233.755, nos Agravos Regimentais nos Recursos Extraordinários 176.200, 196.341 e no 200.844, além do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 626.759.
3. Conclusão
Um dos princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro, considerado, inclusive, como protoprincípio, é o da legalidade, o qual ganha relevância no âmbito do direito tributário, sendo conhecido como princípio da estrita legalidade tributária.
No presente estudo foi analisado como o Supremo Tribunal Federal interpreta o princípio da legalidade no âmbito do direito tributário, especialmente em relação aos impostos de importação e exportação e quanto a necessidade de lei para alterar o prazo de vencimento ou para correção monetária de tributo.
Após a leitura dos julgamentos, pode-se afirmar que a Corte Constitucional considera que não ofende o princípio da legalidade norma infralegal que estabeleça o prazo de vencimento do tributo, bem como índice ou termo inicial de correção monetária a incidir sobre a base de cálculo. Ademais, entendeu-se compatível com o ordenamento jurídico norma infraconstitucional que autoriza órgão integrante da Administração Pública Federal a alterar, por meio de resolução, alíquotas do imposto de exportação, além da possibilidade de um decreto alterar os alíquotas dos impostos de importação e exportação, dentro dos limites estabelecidos por lei ordinária, não necessitando de lei complementar para tanto
Verificou-se da análise dos julgamentos, portanto, que não é qualquer alteração no tributo que exige lei, ainda que de uma forma reflexa interfira em seu valor.
[1] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 266.
Procuradora Federal. Graduada em Direito pela UFPE. Pós-Graduada em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques. Princípio da legalidade no direito tributário: análise a respeito da necessidade de lei para corrigir monetariamente tributo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 abr 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34584/principio-da-legalidade-no-direito-tributario-analise-a-respeito-da-necessidade-de-lei-para-corrigir-monetariamente-tributo. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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