O presente trabalho pretende analisar os requisitos legais para a contratação direta de artistas no âmbito da Administração Pública Federal. Tal análise mostra-se importante diante da grande repercussão de tais contratações na mídia, notadamente aquelas contratações de artistas consagrados que envolvem montantes vultosos, e com finalidades públicas duvidosas, tal como ocorre em determinadas inaugurações de obras públicas.
O administrador público deve ter cautela neste tipo de contratação, não apenas por se tratar de uma exceção legal ao dever de licitar, conforme admite o art. 25, III da Lei nº 8.666/93, mas também por ser alvo fácil de favorecimentos ou desvios de finalidades, além de despertar a atenção dos órgãos de controle externo, como o Tribunal de Contas da União.
Ademais, não compete ao Estado, em princípio, promover este tipo de contratação, sendo normalmente o serviço artístico uma atividade restrita ao mercado privado, devendo o administrador público redobrar a atenção na motivação do ato administrativo, bem como na finalidade, restringindo-se a eventos que atendam efetivamente ao interesse público, e não à conveniência de políticos e governantes.
Os contratos administrativos devem ser precedidos de licitação pública com vistas a escolher a melhor proposta, bem como oferecer igual oportunidade a todos os interessados em contratar com a Administração Pública, nos termos do art. 37, XXI, da Constituição Federal, que prevê (grifos nossos):
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (Regulamento)
O dispositivo constitucional consagra o princípio da licitação pública, mas ao mesmo tempo ressalva a possibilidade de exceções especificadas na legislação. A Lei de Licitações e Contratos, por sua vez, ao regulamentar o dispositivo constitucional, prevê a possibilidade de contratação direta de serviços artísticos no seu artigo 25, III da Lei nº 8.666/93, nos seguintes moldes:
Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
III - para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
Da leitura do dispositivo, pode-se depreender a existência de três pressupostos legais para a regularidade da inexigibilidade de licitação no caso de contratação de artistas, a saber:
1) Que o serviço seja de um artista profissional;
2) Que a contratação seja realizada diretamente ou mediante empresário exclusivo;
3) Que o artista seja consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
A primeira questão a ser investigada é se o artista a ser contratado é profissional, excluindo-se a possibilidade de contratação direta de artistas amadores. Somente os profissionais, estabelecidos pelos parâmetros existentes em cada atividade, podem ser contratados com base nesse dispositivo.
Para a definição de artista, bem como o requisito necessário para a demonstração de seu profissionalismo, valemo-nos da lição do ilustre mestre Jorge Ulysses Jacoby Fernandes, na obra “Contratação Direta sem Licitação”, Ed. Fórum, 6ª ed, pp. 726 (grifos nossos):
Artista, nos termos da lei, é o profissional que cria, interpreta ou executa obra de caráter cultural de qualquer natureza, para efeito de exibição ou divulgação pública, por meios de comunicação de massa ou em locais onde se realizam espetáculos de diversão pública. O profissional artista deve estar inscrito na Delegacia Regional do Trabalho, o mesmo ocorrendo com os agenciadores dessa mão-de-obra, constituindo esse registro elemento indispensável à regularidade da contratação[1].
Ademais, vale dizer que a contratação de um artista constitui obrigação de fazer, intuitu personae, ou seja, somente pode ser executada pelo próprio contratado. Sendo assim, a subcontratação será irregular, exceto aquela parcial, notadamente acessória, como, por exemplo, o instrumentista que acompanha determinado cantor.
A segunda questão diz respeito à contratação direta do artista ou por meio de empresário exclusivo. Como se vê, contratação direta somente poderá ser realizada pela Administração Pública com o próprio artista, ou através de empresário que detenha contrato de exclusividade para todo e qualquer evento por ele produzido.
Não se deve confundir a contratação direta por meio de empresário exclusivo com aquela intermediada por empresas de produção de eventos de profissionais do setor artístico, que possui regime jurídico próprio, proveniente da peculiaridade das negociações estabelecidas entre as partes.
Neste último caso, deve-se observar a regra geral da licitação aplicável para a prestação de serviços em geral para a Administração Pública, conforme prevê o art. 2º da Lei nº 8.666/93, evitando-se, assim, a contratação direta desvirtuada, por interposta pessoa.
Outros desvirtuamentos são apontados pelo Tribunal de Contas da União - TCU, tais como a exclusividade da representação por empresário atrelado a determinada data do evento; a não apresentação do contrato de exclusividade em virtude de alegado sigilo contratual; a assinatura do contrato na véspera do evento, demonstrando que houve algum tipo de direcionamento; e ainda, a cobrança de ingressos por shows cujos recursos não são revertidos ao erário.
Neste sentido, destacamos abaixo alguns trechos de Acórdãos do TCU sobre determinações e irregularidades constatadas na contratação direta de artistas:
Acórdão TCU nº 98/2008 - Plenário
9.5. determinar ao Ministério do Turismo que, em seus manuais de prestação de contas de convênios e nos termos dessas avenças, informe que:
9.5.1. quando da contratação de artistas consagrados, enquadrados na hipótese de inexigibilidade prevista no inciso III do art. 25 da Lei nº 8.666/1992, por meio de intermediários ou representantes:
9.5.1.1. deve ser apresentada cópia do contrato de exclusividade dos artistas com o empresário contratado, registrado em cartório. Deve ser ressaltado que o contrato de exclusividade difere da autorização que confere exclusividade apenas para os dias correspondentes à apresentação dos artistas e que é restrita à localidade do evento;
9.5.1.2. o contrato deve ser publicado no Diário Oficial da União, no prazo de cinco dias, previsto no art. 26 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, sob pena de glosa dos valores envolvidos;
9.5.2. os valores arrecadados com a cobrança de ingressos em shows e eventos ou com a venda de bens e serviços produzidos ou fornecidos em função dos projetos beneficiados com recursos dos convênios devem ser revertidos para a consecução do objeto conveniado ou recolhidos à conta do Tesouro Nacional. Adicionalmente, referidos valores devem integrar a prestação de contas;
Acórdão TCU nº 2070/2011 - Plenário
A segunda é o desvirtuamento da regra do art. 25, III, da Lei 8.666/93, pois a inexigibilidade da licitação se aplica à contratação do profissional de qualquer setor artístico diretamente ou através de empresário exclusivo. Como claramente define o Acórdão 96/2008 - Plenário, a exclusividade da data não se confunde com a do empresário que representa o artista.
Analisando-se as situações mencionadas pelo Assessor de Controle Interno do MTur, as duas primeiras são, basicamente, similares. Referem-se a casos em que o empresário, que detém a exclusividade do artista, celebrou contrato com terceiro, transferindo a este a posse de uma determinada data de apresentação do artista. Nos planos de trabalho das propostas de convênios foram apresentados: o contrato de exclusividade celebrado entre o artista e o empresário; e o contrato (ou declaração, no segundo caso) de data específica de apresentação entre o empresário e um terceiro. A proposta de preço contida no plano de trabalho se refere à remuneração do terceiro, que detém a data de apresentação coincidente com a da realização do evento.
Como determina o Acórdão 96/2008 - Plenário, somente deve ser aceito como válido para a contratação por inexigibilidade, o contrato de exclusividade entre o artista e seu empresário, registrado em cartório, não prestando o contrato que contém mera exclusividade de data para tal fim. Assim, o contrato e a declaração referentes à data da apresentação, celebrados com terceiros, não devem ser aceitos como elementos de suporte à contratação por inexigibilidade.
Com relação ao terceiro caso, em que o artista e o empresário alegam que o contrato não pode ser apresentado no plano de trabalho por possuir teor sigiloso, tampouco deve ser aceita a contratação por inexigibilidade, à luz do que determina o Acórdão 96/2008 - Plenário. Vale repetir, para a contratação enquadrada na hipótese prevista no art. 25, III, da Lei 8.666/93, deve ser apresentada cópia do contrato de exclusividade do artista com o empresário contratado, registrado em cartório. Além disso, como preconiza o princípio administrativo da legalidade, não há que se admitir a contratação por inexigibilidade, no caso em comento, sem que se ateste a existência dos requisitos estabelecidos em lei.
O terceiro pressuposto diz respeito à consagração pela crítica especializada ou pela opinião pública. Para a comprovação desta condição, cumpre ao administrador justificar a escolha do contratado, na forma do art. 26, § único, III da Lei nº 8.666/93, apontando as razões do seu convencimento nos autos do processo.
É preciso distinguir a consagração do artista pela crítica especializada ou pela opinião pública da mera qualificação profissional. Assim, não será suficiente a demonstração de que o artista se qualificou através de cursos na área ou a simples comprovação de experiência profissional. Para tais casos, poderá a Administração se valer da realização de um processo licitatório na modalidade “concurso”, prevista no art. 22, IV c/c § 4º da Lei nº 8.666/93, ou ainda, se for o caso, uma dispensa de licitação com base no baixo valor, nos termos do art. 24, II da Lei de Licitações.
Neste ponto, vale destacar a distinção entre as hipóteses de contratação direta de artistas e aquelas realizadas mediante processo licitatório, nas palavras do Professor Marçal Justen Filho, na obra “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, 14ª edição, Ed. Dialética, pp. 379-380:
A atividade artística consiste em uma emanação direta da personalidade e da criatividade humanas. Nessa medida, é impossível verificar-se identidade de atuações. Isso não impede, porém, eventual comparação entre as performances artísticas. O concurso consiste, muitas vezes, em competição entre artistas para seleção do melhor desempenho. Quando houver interesse de premiação da melhor performance em determinada área das artes, a Administração Pública deverá valer-se do concurso disciplinado na Lei nº 8.666/93. Assim, por exemplo, a escolha de uma composição musical para símbolo de instituições públicas poderá ser produzida através de um concurso com premiação para a melhor obra.
Mas há casos em que a necessidade estatal relaciona-se com o desempenho artístico propriamente dito. Não se tratará de selecionar o melhor para atribuir-lhe um destaque, mas de obter os préstimos de um artista para atender certa necessidade pública. Nesses casos, torna-se inviável a seleção através de licitação, eis que não haverá critério objetivo de julgamento. Será impossível identificar um ângulo único e determinado para diferenciar as diferentes performances artísticas. Daí a caracterização da inviabilidade de competição.
Para a contratação direta, é preciso demonstrar nos autos o motivo de convencimento da consagração do artista, tais como: a discografia de um cantor, premiações recebidas, participações em eventos importantes, obras de arte relevantes, convites para apresentação em locais de destaque, dentre outros, salvo nos casos de notória fama, em que o próprio nome do artista dispensa qualquer tipo de comprovação.
Ora, se a comprovação da consagração do artista pela critica especializada ou pela opinião pública pode ser subjetiva, o dever de licitar é objetivo, e deve ser utilizado sempre que a Administração puder se satisfazer com artista selecionado mediante processo licitatório na modalidade “concurso”.
Note-se ainda que este último requisito destina-se a evitar contratações desarrazoadas ou arbitrárias, em que o gestor público possa imprimir uma preferência pessoal na contratação de um amigo, um parente, ou ainda de profissional sem qualificação reconhecida. Faz-se necessário que a crítica especializada ou a opinião pública reconheçam a virtude do artista contratado.
Cumpre à Administração apresentar a justificativa do preço praticado pelo artista a ser contratado, para fins de atendimento ao artigo 26, § único, III da Lei nº 8.666/93, o que pode ser feito, em geral, através da demonstração de parâmetro do preço praticado por ele a terceiros no mercado.
Para a justificativa de preço, o TCU[2] recomenda que “quando contratar a realização de cursos, palestras, apresentações, shows, espetáculos ou eventos similares, demonstre a título de justificativa de preços, que o fornecedor cobra igual ou similar preço de outros com quem contrata para evento de mesmo porte, ou apresente as devidas justificativas, de forma a atender ao inc. III do parágrafo único do art. 26 da Lei nº 8.666/1993”.
De todo modo, com vistas a uma contratação mais econômica, é possível, e até mesmo recomendável, que a Administração faça o caminho inverso, estipulando um cachê padrão para determinados níveis de artistas consagrados pela opinião pública, que caso concordem, poderão prestar seus serviços por um valor normalmente abaixo do que cobrariam para um evento de cunho privado.
Tais ocorrências são comuns em determinados eventos públicos, como festas de réveillon promovidas por Municípios que possuem um teto máximo para pagamento de artistas consagrados.
Face ao exposto, pode-se constatar que a contratação direta de artistas no âmbito da Administração Pública Federal é um tema delicado, diante da existência de certo subjetivismo na escolha do artista consagrado pela opinião pública ou pela crítica especializada, além dos valores vultosos envolvidos, e o olhar atento dos órgãos de controle sobre tais contratações.
Ademais, como todo contrato administrativo, deve o mesmo ser devidamente motivado, bem como indicada a expressa finalidade pública a ser atendida, de modo a evitar desvios de finalidades, e eventual promoção pessoal de agentes políticos.
Para assegurar um procedimento regular, o administrador deve ter cautela para o cumprimento dos requisitos legais da contratação direta, previstos no art. 25, III da Lei 8.666/93, quais sejam: que o serviço seja de um artista profissional; que a contratação seja realizada diretamente ou mediante empresário exclusivo; e que o artista seja consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
A Administração deve ter uma motivação especial para contratar determinado artista, caso contrário, em havendo atendimento do interesse público por uma obra de arte qualquer, o procedimento correto será recorrer à modalidade licitatória do concurso, ou, a depender do valor da contratação, à dispensa de licitação com fulcro no art. 24, II da Lei nº 8.666/93.
Também vimos que certos desvirtuamentos devem ser evitados, tais como: apresentação de contratos de exclusividade de empresários atrelados a determinada data do evento, alegação de sigilo contratual, bem como intermediação de empresas produtoras de evento.
Por fim, considerando-se que a contratação de artistas não á atividade típica do Estado, deve a mesma ser usada em caráter excepcional, tão somente quando restar demonstrado de forma cristalina o interesse público. Aliás, em razão do princípio da economicidade, o preço deve ser justificado, de acordo com aquele praticado no mercado, podendo a Administração ofertar valores de cachê padrão, com vistas a reduzir os gastos públicos.
5. Bibliografia
BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 jun. 1993. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm.> Acesso em: 05 fev. 2013.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 96/2008. Plenário. Relator: Ministro Benjamin Zymler. Sessão de 30/01/2008. Disponível em: http://contas.tcu.gov.br/pt/MostraDocumento?qn=1. Acesso em: 11 abr. 2013.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 2070/2011. Plenário. Relator: Ministro Augusto Nardes. Sessão de 10/08/2011. Disponível em: < http://contas.tcu.gov.br/pt/MostraDocumento?qn=2>. Acesso em: 11 abr. 2013.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 819/2005. Plenário. Relator: Ministro Marcos Bemquerer. Sessão de 22/06/2005. Disponível em: < http://contas.tcu.gov.br/pt/MostraDocumento?qn=3>. Acesso em: 11 abr. 2013.
FERNANDES, Jorge Ulysses Jacoby. Contratação Direta sem Licitação. 6. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14. ed. São Paulo: Dialética, 2010.
JUNIOR, Jessé Torres Pereira. Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública. 6. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2003.
[1] Conforme a Lei nº 6.533/78, que dispõe sobre a regulamentação das profissões de Artistas e de técnico em Espetáculos de Diversões, e dá outras providências. Arts. 1º, 4º e 6º.
[2] Processo nº 019.378/2003-9. Acórdão nº 819/2005 – Plenário. Relator: Ministro Marcos Bemquerer. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 jun. 2005.
Procuradora Federal. Procuradora-Chefe da Fundação Biblioteca Nacional. Graduada em Direito pela UERJ. Pós-graduada em Direito do Estado e da Regulação pela FGV-RIO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Fernanda Mesquita. A contratação direta de artistas no âmbito da Administração Pública Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 abr 2013, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34687/a-contratacao-direta-de-artistas-no-ambito-da-administracao-publica-federal. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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