Resumo: O Tribunal de Contas da União possui jurisprudência reiterada no sentido de que o tratamento privilegiado para as microempresas, cooperativas e empresas de pequeno porte (ME, COOP e EPP), nas licitações processadas por meio do sistema de registro de preços, cujo valor estimado seja igual ou inferior a R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), devem ser destinadas à contratação exclusiva daquelas, devendo tal limite ser aferido para cada item da licitação, já que tal Corte de Contas entende que cada item licitado corresponde, na verdade, a uma licitação distinta, só sendo agrupado em uma mesma licitação por motivo de economia processual. Conforme se demonstrará a seguir, tal entendimento destoa de uma interpretação sistemática da LC 123/2006 e do Decreto n. 6.204, de 2007, encontrando-se em oposição ao entendimento adotado pela Advocacia Geral da União e pela Secretaria de Comércio Exterior.
Palavras-chave: Jurisprudência do TCU. Interpretação sistemática. Licitação Exclusiva.
Sumário: Introdução. 1 – Jurisprudência do TCU. 2 – Contrapontos à Jurisprudência do TCU. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente trabalho tem por escopo trazer contrapontos à jurisprudência do TCU no que tange ao limite para a realização de licitação exclusiva para as microempresas, cooperativas e empresas de pequeno porte (ME, COOP e EPP), demonstrando, através de uma interpretação sistemática da legislação (LC 123/2006 e Decreto n. 6.204/2007), que o limite de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) adotado para cada item licitado (e não para cada lote) não merece prosperar, pois uma análise mais detalhada de todo o contexto normativo indica que o tal limite dessa ser feito pela soma do lote de itens, conforme se demonstrará a seguir.
Para tanto, é preciso considerar que a interpretação do dispositivo legal, pela qual é o valor do item que serve de referência para restringir o certame, tem sido determinante para que a imensa maioria dos processos licitatórios sejam destinados exclusivamente a microempresas e empresas de pequeno porte, pois raramente os itens da licitação ultrapassam R$ 80.000,00.
No campo prático, nota-se que contratações milionárias têm sido repartidas entre microempresas e empresas de pequeno porte, propiciando muitas vezes que sejam catapultadas de uma categoria tributária para outra por consequência da assinatura de um único contrato ou ata de registro de preços, revelando certa distorção da política estatal.
1- Jurisprudência do TCU
Recentemente, o TCU publicou dois Acórdãos estabelecendo que o limite máximo de R$ 80.000,00 a que se refere o art. 48, inciso I, da Lei nº 8.443/1993 deve ser aferido para cada item, já que tal Corte de Contas entende que cada item licitado corresponde, na verdade, a uma licitação distinta, só sendo agrupado em uma mesma licitação por motivo de economia processual. Desta forma, tal teto, parâmetro para adoção de licitação de licitação exclusiva para as microempresas, cooperativas e empresas de pequeno porte, deve ser feito para cada item isoladamente, in verbis:
Tratamento dispensado a microempresas e a empresas de pequeno porte em licitações: 2 - As licitações processadas por meio do sistema de registro de preços, cujo valor estimado seja igual ou inferior a R$ 80.000,00, podem ser destinadas à contratação exclusiva de Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, competindo ao órgão que gerencia a ata de registro de preços autorizar a adesão à referida ata, desde que cumpridas as condições estabelecidas no art. 8º do Decreto nº 3.931, de 2001, e respeitado, no somatório de todas as contratações, aí incluídas tanto as realizadas pelos patrocinadores da ata quanto as promovidas pelos aderentes, o limite máximo de R$ 80.000,00 em cada item da licitação.
Na mesma consulta formulada pelo Presidente TST, o Tribunal foi chamado a responder as seguintes indagações: “2.2. As licitações processadas mediante o Sistema de Registro de Preços (SRP), cujo valor estimado seja igual ou menor a R$ 80.000,00, devem ser destinadas à contratação exclusiva de ME e EPP? 2.3. No caso de resposta afirmativa à questão anterior, nas licitações processadas por meio do SRP, que forem destinadas à contratação exclusiva de ME e EPP, podem-se definir regras para os órgãos interessados na adesão, segundo as quais a quantidade de itens/valores a ser adquirida deverá ser somada às quantidades das contratações já efetivadas, de forma que a soma não supere a R$ 80.000,00?”. O relator, ao enfrentar tais questões, observou que a utilização do Sistema de Registro de Preços foi regulamentada pelo Decreto nº 3.931, de 2001. Acrescentou que “os preços e condições de contratação passam a constar da Ata de Registro de Preços (v. art. 1º, inciso II, do Decreto nº 3.931/2001), ficando disponíveis para qualquer órgão ou entidade da Administração, ainda que não tenha participado do certame licitatório, mediante consulta prévia ao órgão gerenciador da referida ata, desde que devidamente comprovada a vantagem (cf. art. 8º do Decreto nº 3.931/2001), e contanto que as aquisições ou contratações adicionais não excedam, por órgão ou entidade, a cem por cento dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços, nos termos do § 3º desse artigo 8º”. Anotou, entretanto, que o Tribunal, por meio do Acórdão 1.487/2007-TCU-Plenário, cujo Voto condutor foi proferido pelo Valmir Campelo, sinalizou, no subitem 9.2.2., a necessidade de que o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão adotasse providências “com vistas à reavaliação das regras atualmente estabelecidas para o registro de preços no Decreto nº 3.931/2001, de forma a estabelecer limites para a adesão a registros de preços realizados por outros órgãos e entidades, visando a preservar os princípios da competição, da igualdade de condições entre os licitantes e da busca da maior vantagem para a Administração Pública, tendo em vista que as regras atuais permitem a indesejável situação de adesão ilimitada a atas em vigor, desvirtuando as finalidades buscadas por essa sistemática”. Acrescentou, ainda, que o limite máximo de R$ 80.000,00 a que se refere o art. 48, inciso I, da Lei nº 8.443/1993 deve ser aferido para cada item que passará a ter seu preço registrado. Tudo se passa como se fossem realizadas “várias licitações distintas e independentes” para cada um dos itens. Destacou o relator, ainda, que o art. 6º do Decreto nº 6.204, de 2007, ao impor à administração o dever de realizar procedimento licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), “teria ido além do previsto no art. 48, inciso I, da Lei nº 123, de 2006”. Concluiu, por isso, que essas licitações não necessariamente devem, mas sim “podem ser destinadas à contratação exclusiva de Microempresas e Empresas de Pequeno Porte”. Em face dessas conclusões, ao acatar proposta do relator, o Plenário decidiu aprovar, em resposta aos quesitos acima formulados, a seguinte resposta: “9.2.2. as licitações processadas por meio do Sistema de Registro de Preços, cujo valor estimado seja igual ou inferior a R$ 80.000,00, podem ser destinadas à contratação exclusiva de Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, competindo ao órgão que gerencia a Ata de Registro de Preços autorizar a adesão à referida ata, desde que cumpridas as condições estabelecidas no art. 8º do Decreto nº 3.931, de 2001, e respeitado, no somatório de todas as contratações, aí incluídas tanto as realizadas pelos patrocinadores da ata quanto as promovidas pelos aderentes, o limite máximo de R$ 80.000,00 em cada item da licitação;”. Acórdão n.º 2957/2011-Plenário, TCU-017.752/2011-6, rel. Min. André Luís de Carvalho, 9.11.2011. (grifo nosso)
Reiterando o seu entendimento, o Tribunal de Contas da União, no Acórdão 3.771/2011 – Primeira Câmara, por ocasião da Representação contra regra restritiva estabelecida do pregão eletrônico nº 10/2011, realizado pelo Parque de Material Aeronáutico de Lagoa Santa - PAMA-LS, órgão integrante do Comando da Aeronática situado no Estado de Minas Gerais, assentou que:
“Apesar de o valor global exceder o limite de R$ 80.000,00 previstos no art. 48, I, da LC nº 123/2006 e no art. 6º do Decreto nº 6.204/2007 para a realização de processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte, o certame estava dividido em 52 itens de concorrência autônomos entre si, sendo, assim, cada item disputado de maneira independente dos demais.”
2) Contrapontos à Jurisprudência do TCU
Prefacialmente, insta salientar que a Advocacia-Geral da União, por meio do recente Parecer DECOR/CGU/AGU n.º 59/2011, destaca a supremacia da seleção da melhor proposta para a Administração sobre a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, in verbis:
“15. [...] O fracionamento não pode ser utilizado como instrumento de deturpação da regra do artigo 6º do Decreto 6.204/2007 e, neste sentido, o montante de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) deve tomar por base a soma total dos lotes licitados. A promoção do desenvolvimento nacional sustentável, caso ultrapassado tal teto, deve ceder em favor da isonomia e da maior vantajosidade para a Administração.
[...]
17. Em outras palavras, aquilo que possa ser considerado parcela de um todo não poderá ser considerado isoladamente para fins da escolha da modalidade licitatória. No caso dos autos, da mesma forma, a fragmentação do objeto licitável não deve reduzir o objeto de possíveis licitantes, sob pena de extrapolar a finalidade da norma e excluir, de forma irrestrita, todos os interessados que não se enquadrem nos termos de Lei Complementar 123/2006.” (grifo nosso)
Lado outro, avulta destacar que são 3 (três) as finalidades precípuas da licitação, nos termos do art. 3º, caput, da Lei 8.666/93, in verbis:
Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. (Redação dada pela Lei nº 12.349, de 2010)
Portanto, a licitação destina-se a garantir a isonomia, a vantajosidade e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Tais valores devem ser harmonizados no processo de licitação, de modo, em determinadas hipóteses permitidas pela Lei, não haja sacrifício de uma finalidade em detrimento da outra, mas a preservação de todas, não obstante uma ou outra possa prevalecer em determinado caso concreto.
Nesse passo, a Advocacia-Geral da União estabeleceu que a vantajosidade deve prevalecer sobre a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, e isto quer dizer que é possível estabelecer tratamento diferenciado para microempresas e empresas de pequeno porte, mas o Estado está disposto a suportar eventuais contratações menos vantajosas até o valor de R$ 80.000,00 para o objeto licitado.
Conforme se dessume do item 5.15 do Acórdão TCU 3.771/2011 – Primeira Câmara, cujo valor global estimado é de R$ 1.722.156,00, parcelado em 52 itens, apenas 3 (três) empresas sagraram-se vencedoras. Com efeito, não é possível inferir qual a categoria tributária das empresas, mas se se tratar de microempresas, é preciso ter presente que caracteriza-se como microempresa aquelas cuja receita bruta não ultrapasse o valor de R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais), nos termos do art. 3º, inc. I, da Lei Complementar 123/2006. Portanto, tais empresas estariam assumindo compromissos muito maiores que em tese poderia suportar no momento da contratação.
Tal circunstância caracteriza realmente uma distorção do sistema, pois a promoção do desenvolvimento nacional sustentável como diretriz do Estado Brasileiro não pode submeter à Administração Pública ao risco de firmar contratações de porte muito superiores à capacidade real da empresa vencedora. A sustentabilidade, neste caso, pressupõe que haja um equilíbrio entre a demanda e o potencial logístico da empresa.
Outro ponto que merece ser discutido é a possibilidade de o Estado estimular empresas de maior porte a criarem empresas menores para o fim exclusivo de participar de licitações, haja vista que, em se tratando de licitações milionárias, sabe-se que o maior potencial financeiro de empresas maiores possibilitam às mesmas arcarem com preços de mercado mais vantajosos. Tal situação propicia também uma realidade indesejada pelo Estado.
Tecnicamente, o Tribunal de Contas da União, tanto no Acórdão TCU 2957/2011 – Plenário (9.11.2011), como no Acórdão TCU 3.771/2011- Primeira Câmara (07.06.2011), parte da premissa de que cada item consiste em uma licitação em separado. Isto pode ser verificado no texto de ambas as decisões. Assim o é, com efeito. Mas este entendimento abre possibilidade para algumas ponderações. Por exemplo, o mesmo Tribunal de Contas da União considera que é a soma do valor dos itens constituídos como parcela de um mesmo objeto (mesma natureza de despesa), e não o valor do item isolado, o parâmetro para a escolha da modalidade licitatória e a verificação da hipótese de dispensa de licitação em razão do valor (art. 24, I e II, da Lei 8.66/93), sob pena de fracionamento de despesa. Esta, inclusive, é a analogia que se faz no Parecer DECOR/CGU/AGU 059/2011.
É interessante notar que a própria 3ª SECEX (Secretaria de Comércio Exterior) entende diferentemente da posição firmada pelo TCU, conforme consignado no item 5.8 do Acórdão 3.771/2011:
A 3ª Secex, após examinar a documentação encaminhada, concluiu que (peça 2):
"(...)
5.8 Entendemos descabida a interpretação do gestor que o limite de R$ 80 mil reais deve ser considerado isoladamente para cada item previsto no certame, sendo mais razoável adotar o mesmo critério que a lei de licitações e contratos estabelece para definição da modalidade licitatória em uma licitação com vários itens ou lotes. Muito embora a regra para definição da modalidade licitatória seja o valor da contratação, quando a licitação é por itens e/ou lotes a definição da modalidade é com base no valor resultante da soma de todos os itens e/ou lotes, não considerando o fato de que se trata de uma contratação de diferentes objetos em único certame. Dessa forma, para aplicar o previsto no art. 6º do Decreto 6204/07, no caso do objeto licitado ser dividido em itens ou lotes, entendemos que deve o gestor efetuar a soma do valor estimado para cada item ou lote e apenas quando o resultado não for superior a R$ 80 mil estará autorizado a restringir a participação no processo licitatório a microempresas e empresas de pequeno porte. (grifo nosso)
No caso em apreço, entretanto, o TCU não sopesou outras implicações daquele conceito. Elegeu que o valor máximo de R$ 80.000 deve ter por parâmetro o valor de cada item, sendo cada item corresponde a uma licitação.
Tal entendimento parece destoar do contexto em que está inserido o art. 48, inc. I da Lei Complementar n. 123/2006. Vejamos o que prevê todo o art. 48:
Art. 48. Para o cumprimento do disposto no art. 47 desta Lei Complementar, a administração pública poderá realizar processo licitatório:
I – destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais);
II – em que seja exigida dos licitantes a subcontratação de microempresa ou de empresa de pequeno porte, desde que o percentual máximo do objeto a ser subcontratado não exceda a 30% (trinta por cento) do total licitado;
III – em que se estabeleça cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte, em certames para a aquisição de bens e serviços de natureza divisível.
§ 1o O valor licitado por meio do disposto neste artigo não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) do total licitado em cada ano civil.
§ 2o Na hipótese do inciso II do caput deste artigo, os empenhos e pagamentos do órgão ou entidade da administração pública poderão ser destinados diretamente às microempresas e empresas de pequeno porte subcontratadas.
Veja-se que o caput utiliza a expressão “processo licitatório”; o inc. I do art. 48 fala em “contratações”; já nos inciso II e III aparece a expressão “objeto”, referindo-se o legislador ao valor do “objeto”. Em momento algum aparece a expressão item. É questionável, então, a razão pela qual o legislador não utilizara a expressão “valor do objeto” apenas no inc. I do art. 48. Numa interpretação sistêmica, não faz sentido tal omissão no inc. I. da expressão que resolveria todo a celeuma, pois é consabido que o objeto da licitação é seu gênero, jamais os itens isolados.
Assim, os preceitos normativos supracitados não podem ser avaliados isoladamente, visto que carecem de uma percepção harmônica, objetiva e imparcial; de modo que o intérprete, ao invés de atentar para regras apartadas, deve se voltar para o sistema jurídico em que estão incluídas.
Sobre a interpretação sistemática, encontra-se registrada, no magistério de LUÍS ROBERTO BARROSO, a seguinte passagem:
O direito objetivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente. A interpretação sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas.
Ademais, o art. 49 da LC 123/2006 assim dispõe, in verbis:
Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar quando:
III - o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado.
Infere-se, portanto, que o legislador não abriu mão das finalidades últimas da licitação, que é a isonomia e a busca da melhor proposta.
É razoável entender, portanto, que R$ 80.000,00 é o valor do objeto da licitação que o legislador quis referir-se ao determinar ao administrador público que limitasse a concorrência a microempresas e empresas de pequeno porte. Fora isso, tais empresas concorrerão em pé de igualdade com demais empresas, ressalvada a vantagem daquelas em caso de empate ficto de preços. Assim, o objeto da licitação para compra de frutas e verduras não é a laranja e a batata, mas gêneros alimentícios ou hortifrutigranjeiros. O objeto da licitação para carnes não é o filé mignon, mas carnes e derivados.
De todo modo, deve o Estado definir, tendo presente todos os contornos jurídicos da situação posta, qual a interpretação deve ser conferida ao art. 48, inc. I, da Lei Complementar n. 123/2006, haja vista que notadamente há um lapso entre a intelecção do legislador e a redação da Lei; quer dizer, o legislador não manifestou claramente a sua intenção.
Noutro giro, insta salientar que o art. 6º do Decreto n. 6.204, de 2007 (regulamenta a LC 123/2006) não estabeleceu que o teto ali disciplinado deveria ser avaliado por item.
Desta feita, se cada item for considerado separadamente, isto poderia levar ao fracionamento para evitar uma licitação, em que um órgão poderia fazer várias compras diretas de material de expediente, bastando comprar separadamente cada material (canetas, lápis, borrachas, etc.), que provavelmente teriam valor inferior a R$ 8.000,00. O mesmo artifício poderia ser utilizado para fugir da modalidade de licitação definida na Lei nº 8.666, de 1993, que prevê valores máximos para cada modalidade (ex. R$ 80.000,00 para o Convite).
Para solucionar tal problema, o TCU, por meio do acórdão nº 216/2002 – Plenário, passou a considerar que, para efeitos de enquadramento nos valores limites de dispensa de licitação, ou nos valores para definição da modalidade de licitação, o órgão deve considerar os itens de mesma família de despesa (elemento e subelemento de despesa) no mesmo exercício financeiro.
Portanto, por analogia, o mesmo raciocínio deve ser aplicado para interpretar o art. 6º do Decreto, que assim como o artigo 24, incisos I e II, estabelece um valor determinado a ser obedecido pelos órgãos e entidades públicas na licitação.
Lembramos ainda os ensinamentos do mestre Marçal Justen Filho, que esclarece ainda que o órgão deve considerar não só os bens de mesma natureza, mas também a execução no mesmo local, in verbis:
“O problema não está em avaliar se é proibido somar todas as despesas de um exercício para escolher a modalidade de licitação em face do valor global. O núcleo da controvérsia reside em determinar se tal é obrigatório. Sempre será possível realizar concorrência em hipóteses em que é obrigatório o convite (ou, mesmo, em casos de dispensa em virtude do valor irrisório da contratação...). O que se afirma é que a solução preconizada nas interpretações ora combatidas transforma uma faculdade em um dever. Tais interpretações levadas às últimas conseqüências, conduziriam à quase inutilidade de caracterização de hipóteses de dispensa previstas no art. 24, incs. I e (especialmente) II. Mais ainda, todos os casos acabariam sendo enquadrados como de concorrência. Ora, essa não é a vontade legislativa. Em suma, deve excluir-se a alternativa que conduza à institucionalização da concorrência e que possa impossibilitar em termos absolutos a dispensa, o convite ou a tomada de preços. Se a vontade da Lei fosse submeter todas as contratações ao regime de concorrência, o sistema legal seria outro. Ao contrário, a lei admite contratações com dispensa de licitação e prevê casos de convite e tomadas de preço. Logo, essas alternativas devem ser prestigiadas tanto quanto a concorrência.
(...)
Observe-se que os requisitos legais são cumulativos. A Lei não se refere a parcelas de mesma natureza ou que devam ser executadas no mesmo local. A preposição utilizada foi outra (“e”). Portanto, não basta a mesma natureza das prestações para produzir-se o somatório. É imperiosa a presença de ambos os requisitos: mesma natureza e execução no mesmo local.
(...)
Então, se for impossível, por qualquer motivo, a execução conjunta e concomitante, no mesmo local, não haverá o dever de considerar globalmente as contratações de objetos semelhantes, mas não idênticos. Mas essa ressalva não se aplica quando se tratar da primeira hipótese (parcelas de um mesmo objeto), eis que quanto a essas o §2º do mesmo art. 23 estabelece o dever de respeitar a modalidade pertinente ao valor global.
Em síntese, a segunda alternativa prevista no §5º, exige a presença cumulativa de três requisitos distintos, a saber: a) obras, serviços e compras da mesma natureza, mas que não sejam parcelas de um todo único; b) a serem executadas no mesmo local; c) que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente.”
No mesmo sentido o entendimento do mestre Diógenes Gasparini:
“Está também proibida a dispensa de licitação quando se tratar de obras e serviços da mesma natureza (uma escola e um hospital, serviço de vigilância em escola e serviço de vigilância em hospital) executados no mesmo local, desde que possam ser realizados conjunta e concomitantemente, ainda que separadamente fossem, em termo de valor, enquadráveis há hipótese de dispensa que se examina. Para essas obras e serviços pode-se realizar uma só licitação ou duas. Na primeira hipótese tem-se execução conjunta, na segunda diz-se realização concomitante. Mesmo local, para nós, é o Município, dado ser essa a única unidade territorial definida objetivamente. Confuso restaria o atendimento da prescrição se considerássemos a vila, o bairro ou a cidade que não apresentam limites e conceitos precisos. Sempre haveria a dúvida: as obras estão no mesmo local? Mesmo local, portanto, não se refere ao mesmo endereço”
Neste caso, pensa-se que deve o Estado definir como devem harmonizar-se os valores em que se encerra o processo de licitação. Para tanto, é preciso considerar que a interpretação do dispositivo legal, pela qual é o valor do item que serve de referência para restringir o certame, tem sido determinante para que a maioria dos processos licitatórios sejam destinados exclusivamente a microempresas e empresas de pequeno porte, pois raramente os itens da licitação ultrapassam R$ 80.000,00.
Este parece ser um caso em que o legislador não pôde prevenir o dano potencial que a redação deficiente da Lei pode gerar para o Estado, pois, uma vez submetida ao intérprete, há certa margem de liberdade para a interpretação, proporcionando decisões indesejadas e disparatadas no contexto dos inúmeros órgãos públicos da Federação.
Todavia, caso o Estado entenda que arcará com prejuízos no campo das licitações, como forma de privilegiar o desenvolvimento das microempresas e empresas de pequeno porte, cumpre ter em conta a dimensão de tais custos, como ora se pretende discutir. Afinal, não se desconhece que, ao cabo, o Governo tem a prerrogativa de definir determinada política governamental como prioridade, observados os contornos da constituição e das leis.
A prevalecer este entendimento do TCU, deveríamos considerá-la também para as hipóteses de dispensa pelo valor. Assim, no exemplo dado, a Administração estaria autorizada a gastar até R$ 8.000,00 para lápis, R$ 8.000,00 para borracha e etc., o que seria totalmente desarrazoado.
Conclusão
Desta feita, tendo por espeque uma intepretação sistemática da legislação vigente sobre o tema, bem como para se evitar tentativas de fraudes a ampla participação no certame licitatório por meio de fracionamento ardiloso do objeto, deve o teto de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) tomar por base a soma total dos itens licitados, em raciocínio análogo ao previsto para o art. 23 § 5º da Lei 8666/1993.
Referências:
BRASIL. Lei 8666.21/06/1993. Regulamenta o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Rio de Janeiro: RT. 8ª ed. pp. 593-636.
BRASIL. Lei n.º 123, de 14 de dezembro de 2006. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 1 de abril de 2013.
BRASIL. Decreto n.º 6.204, de 5 de setembro de 2007. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 1 de abril de 2013.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. TCU 2957/2011 – Plenário (9.11.2011). Acesso em: 1 de abril de 2013.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão TCU 3.771/2011- Primeira Câmara (07.06.2011). Acesso em: 1 de abril de 2013.
Parecer DECOR/CGU/AGU n.º 059/2011. Acesso em: 1 de abril de 2013.
BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O conceito da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Crise e desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
GASPARINI, Diógenes, Direito Administrativo, 10º edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2005.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos / Marçal Justen Filho. – 14 ed. São Paulo: Dialética, 2010.
Advogado da União. Coordenador-Geral da Consultoria Jurídica da União no Estado do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIVAS, Rodrigo Cesar Aguiar. Contrapontos à Jurisprudência do TCU no que tange ao limite para adoção de licitação exclusiva para as microempresas, cooperativas e empresas de pequeno porte Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 abr 2013, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34738/contrapontos-a-jurisprudencia-do-tcu-no-que-tange-ao-limite-para-adocao-de-licitacao-exclusiva-para-as-microempresas-cooperativas-e-empresas-de-pequeno-porte. Acesso em: 23 dez 2024.
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