INTRODUÇÃO
Visa o presente trabalho apresentar uma breve disposição entorno da possibilidade ou não de se executar uma tutela antecipada concedida em face da Fazenda Pública.
Propõe-se uma análise voltada para o resguardo de direitos fundamentais daquele que litiga em face do Poder Público, por meio de uma interpretação sistemática, a fim de compatibilizar os interesses público e particular.
Almeja-se demonstrar que, contemporaneamente, nos casos postos em juízo não deve o julgador interpretar o "direito em tiras", segundo palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.° 144, mas sim como um complexo uno e indivisível.
Para isso, será apresentada uma conclusão com a roupagem defendida pelo princípio da juridicidade, pois, não basta hoje se exigir uma aplicação literal da Lei, tem-se que observar na análise de cada caso o direito como um todo, de modo a resguardar garantias e direitos fundamentais.
1 - É POSSÍVEL EXECUTAR UMA TUTELA ANTECIPADA EM FACE DA FAZENDA PÚBLICA?
A fim de respaldar a presente resposta, imprescindível se faz realizar alguns contornos acerca da forma de constrição sobre os bens de propriedade da Fazenda Pública, bem como a possibilidade de concessão da antecipação dos efeitos da tutela definitiva nos feitos em que for parte.
Quando se pretende executar condenação imposta à Fazenda Pública, apresenta-se como óbice a impenhorabilidade, que é um dos predicados do patrimônio estatal. Diante disso, como falar em execução contra pessoa cujo patrimônio está, em tese, imune à constrição judicial?
O Código de Processo Civil, ao cuidar do processo de execução, reserva um capítulo denominado de "Execução contra a Fazenda Pública", disposto nos artigos 730 e seguintes. Nessa execução não existe substituição de vontade, tudo se resume em orientar-se a classificação de gastos, envolvendo verbas comprometidas pelo devedor ao pagamento de créditos judiciais.
Não se inaugura um processo jurisdicional. Forma-se um mero procedimento administrativo, que ganhou compostura constitucional prevista no art. 100 da Constituição da República, destinado ao pagamento dos credores por sentença judicial.
A regra de vinculação dos pagamentos à ordem de apresentação dos precatórios constitui conquista democrática, em favor da moralidade pública e da igualdade entre os credores do Estado. Contudo, a forma pela qual foi consagrada tem desviado o sistema de sua verdadeira finalidade, porquanto os pagamentos ocorrem na primorosa medida das verbas previstas no orçamento e, não havendo verba, não ocorrerá liquidação.
Com efeito, hodiernamente, substancial maioria da doutrina admite a concessão de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, desde que respeitados os limites impostos pela 9.494/97 que, recentemente, teve sua constitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC nº 4.
Nesse sentido já se proclamava o Superior Tribunal de Justiça:
"ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDADE. HIPÓTESE NÃO PREVISTA NO ART. 1º DA LEI N.º 9.494/97. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA ART. 273 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. REEXAME DA MATÉRIA FÁTICA. IMPOSSIBILIDADE. 1. A jurisprudência desta Corte se consolidou no sentido da possibilidade de concessão de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública, nos casos não vedados pelo art. 1º da Lei n.º 9.494/97. Assim, não versando os autos sobre reclassificação, equiparação, aumento ou extensão de vantagens pecuniárias de servidor público ou concessão de pagamento de vencimentos, a antecipação de tutela deve ser deferida. 2. É oportuno salientar que, por analogia, incide na espécie o entendimento da Súmula n.º 729 da Suprema Corte, que permite a execução provisória contra a Fazenda Pública nas hipótese de benefícios previdenciários. 3. Tendo a Corte de origem constatado, diante do contexto probatório dos autos, a presença dos requisitos autorizadores da concessão da tutela antecipada, a análise da suposta ofensa ao art. 273 do Estatuto Processual esbarraria no óbice contido na Súmula n.º 07 desta Corte. 4. Não existindo qualquer fundamento apto a afastar as razões consideradas no julgado ora agravado, deve ser a decisão mantida por seus próprios fundamentos. 5. Agravo regimental desprovido." (destaquei) (Superior Tribunal de Justiça STJ; AgRg-Ag 802.016; Proc. 2006/0151016-0; PE; Quinta Turma; Relª Min. Laurita Hilário Vaz; Julg. 21/11/2006; DJU 05/02/2007; Pág. 350)
Da adoção desse sistema surge um intrigante questionamento: não existindo execução de sentença contra a Fazenda Pública, como executar o adiantamento dos efeitos da tutela definitiva?
Indubitável que tutela inexeqüível é tutela inexistente. Denegar execução aos efeitos da tutela adiantada contra o Estado equivale a dizer que contra ele não existe antecipação de tutela, por conseguinte, negar aplicação à norma inserta no artigo 5º, LXXVIII, da CRFB.
Registra-se que essa norma visa a assegurar um direito fundamental do administrado/jurisdicionado de se ter a tutela jurisdicional mais adequada, efetiva e célere, ou seja, capaz de atender em tempo hábil o direito material pleiteado.
Luiz Guilherme Marinoni [1], ao explanar sobre o tema, verberou:
"Dizer que não há direito à tutela antecipatória contra a Fazenda Pública em caso de 'fundado receio de dano' é o mesmo que dizer que o direito do cidadão pode ser lesado quando a Fazenda Pública for ré (...) Por outro lado, não admitir a tutela antecipatória fundada em abuso de direito de defesa contra a Fazenda Pública significa aceitar que a Fazenda Pública pode abusar do seu direito de defesa e que o autor da demanda contra ela é obrigado a suportar, além da conta, o tempo de demora do processo."
No que tange à forma de execução da antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional definitiva, tem-se abrigado grande divergência. Reforça-se a ocorrência de dois bons posicionamentos.
Para o primeiro, deve-se levar em conta a natureza da ação para distinguir a forma de execução. A antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional definitiva nas ações declaratórias, constitutivas e mandamentais dispensam processo autônomo de execução, hipóteses em que é possível cogitar em "atuação da tutela". Contudo, em se tratando de ação condenatória a execução requisitará autos apartados [2].
Solução que se reputa mais adequada, e que é defendida por Marinoni [3], é a de que, de fato, não há olvidar-se da assertiva de que nos processos de natureza constitutiva ou mandamental a efetivação resulte de simples cumprimento de mandado. Todavia, não persiste a exigência de processo autônomo para dar eficácia à antecipação ocorrida no processo condenatório, pois, submeter à antecipação dos efeitos da tutela definitiva aos percalços de um processo seria reduzi-la à inutilidade.
O provimento antecipatório tem natureza mandamental, pouco importando a natureza da lide em que ele foi adotado. Se assim ocorre, deve o julgador emitir mandado determinando a efetivação do provimento antecipatório, utilizando-se dos meios específicos para a satisfação efetiva da tutela antecipada.
Nessa levada, parafraseando Marinoni [4], não se pode olvidar que o cumprimento da ordem judicial terá como limite o ponto de não retorno (art. 273, § 2º, CPC).
Mesmo em se tratando de causa contra a Fazenda Pública, o limite é a inserção do precatório na linha de espera, ou seja, o juiz emite o precatório, que é inscrito. Se, antes de ocorrer o trânsito em julgado da decisão condenatória, chegar o momento de o precatório antecipado ser pago, o dinheiro respectivo ficará à disposição do juízo, até a solução final do processo, evitando-se, com isso, o desrespeito ao sistema de precatórios e assegurando o credor de danos resultantes da demora.
Caminhando-se para o fim, não é demais registrar que o Superior Tribunal de Justiça tem admitido a aplicação de astreinte como meio coercitivo para impor o cumprimento de medida antecipatória de obrigação de fazer ou entregar coisa, nos termos dos artigos 461 e 461-A do CPC. In verbis:
"PROCESSUAL CIVIL. OFENSA AO ART. 535. INOCORRÊNCIA. TUTELA ANTECIPADA. MEIOS DE COERÇÃO AO DEVEDOR (CPC, ARTS. 273, §3º E 461, §5º). FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO. BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS. CONFLITO ENTRE A URGÊNCIA NA AQUISIÇÃO DO MEDICAMENTO E O SISTEMA DE PAGAMENTO DAS CONDENAÇÕES JUDICIAIS PELA FAZENDA. PREVALÊNCIA DA ESSENCIALIDADE DO DIREITO À SAÚDE SOBRE OS INTERESSES FINANCEIROS DO ESTADO. 1. Não viola o artigo 535 do CPC, nem importa em negativa de prestação jurisdicional o acórdão que adota fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia posta. 2. É cabível, inclusive contra a Fazenda Pública, a aplicação de multa diária (astreintes) como meio coercitivo para impor o cumprimento de medida antecipatória ou de sentença definitiva de obrigação de fazer ou entregar coisa, nos termos dos artigos 461 e 461A do CPC. Precedentes. 3. Em se tratando da Fazenda Pública, qualquer obrigação de pagar quantia, ainda que decorrente da conversão de obrigação de fazer ou de entregar coisa, está sujeita a rito próprio (CPC, art. 730 do CPC e CF, art. 100 da CF), que não prevê, salvo excepcionalmente (V.g., desrespeito à ordem de pagamento dos precatórios judiciários), a possibilidade de execução direta por expropriação mediante seqüestro de dinheiro ou de qualquer outro bem público, que são impenhoráveis. 4. Todavia, em situações de inconciliável conflito entre o direito fundamental à saúde e o regime de impenhorabilidade dos bens públicos, prevalece o primeiro sobre o segundo. Sendo urgente e impostergável a aquisição do medicamento, sob pena de grave comprometimento da saúde do demandante, não se pode ter por ilegítima, ante a omissão do agente estatal responsável, a determinação judicial do bloqueio de verbas públicas como meio de efetivação do direito prevalente. 5. Recurso Especial parcialmente provido." (Superior Tribunal de Justiça STJ; REsp 840.912; Proc. 2006/0080862-0; RS; Primeira Turma; Rel. Min. Teori Albino Zavascki; Julg. 15/02/2007; DJU 23/04/2007; Pág. 236)
Tais entendimentos visam a resguardar direitos fundamentais assegurados pela Constituição da República, tais como o direito de ação (art. 5º, XXXV, CRFB) e a garantia de tutela jurisdicional mais adequada (art. 5º, LXXVIII) para todas as situações que sejam deduzidas perante o Estado-Juiz, de maneira a efetivar o direito material almejado.
CONCLUSÃO
Verificou-se, portanto, que não há mais como conceber a hipótese de impossibilidade de se executar a antecipação dos efeitos de uma tutela concedida em face da Fazenda Pública, pois de nada adiantaria o Judiciário atender aos reclamos do jurisdicionado após o perecimento do direito.
Não convive em harmonia uma interpretação literal da lei em detrimento da análise sistemática do conjunto de normas.
Em um Estado de Direito o que se ambiciona é a conjugação harmônica do complexo jurídico para resguardar a proteção dos direito fundamentais, ainda que parte deles seja mitigada para a aplicação de ambos, isto é, empregando o critério de ponderação. Conclui-se, conforme Marinoni (Curso de Processo Civil, 2006, pag. 65) ao parafrasear Alexy:
"Segundo Alexy, as teorias dos direitos fundamentais podem ser formuladas, em vez de como teorias dos princípios, como teorias dos valores ou como teorias gerais dos fins dos direitos fundamentais."
REFERÊNCIAS
1. MARINONI, Luiz Guilherme. A Antecipação da Tutela. 4 edição, São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 211.
2. SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva. Execução Contra a Fazenda Pública. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 149.
3. MARINONI, Luiz Guilherme. A Antecipação da Tutela.p. 213.
4. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil - Processo de Conhecimento. 6° edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 225-226.
FONTE DE PESQUISA
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, AgRg-Ag 802.016, Rel. Min. Laurita Hilário Vaz, DJU 05/02/2007. Disponível em http://www.stj.gov.br.
BRASIL. Constituição Federativa da República do Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, REsp 840.912, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJU 23/04/2007. Disponível em http://www.stj.gov.br.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal, ADPF 144, Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em http://www.stj.gov.br.
BRASIL. Lei n.º 5.869/1973. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em http://www.planalto.gov.br.
BRASIL. Lei n.º 9494/1997. Disciplina a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda Pública. Disponível em http://www.planalto.gov.br.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADC n.º 4/DF, Rel. Min. Celso de Mello, 1°/10/2008. Disponível em http://www.stf.gov.br.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil - Teoria Geral do Processo. São Paulo: RT, v. 1, 2006.
MARINONI, Luiz Guilherme. A Antecipação da Tutela. 4 edição, São Paulo: Malheiro, 1998.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil - Processo de Conhecimento. 6° edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva. Execução Contra a Fazenda Pública. São Paulo: Malheiros Editores, 1999.
Advogada da União, lotada na Procuradoria da União em MT, (ex-procuradora do município de Natal).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAIVA, Marianne Cury. Da execução da tutela antecipada contra a Fazenda Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 maio 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34994/da-execucao-da-tutela-antecipada-contra-a-fazenda-publica. Acesso em: 23 dez 2024.
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