Introdução
Uma das grandes conseqüências da personificação das sociedades empresárias e conseqüente atribuição de personalidade jurídica própria é a autonomia patrimonial. Em razão da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, o patrimônio desta não se confunde, nem mesmo se comunica, com o patrimônio pessoal dos sócios da sociedade. Essa autonomia patrimonial é fundamental do ponto de vista da preservação do patrimônio pessoal e, portanto, incentivo para que mais pessoas assumam o risco da atividade empresarial, atividade esta que é fundamental na medida em que dela são extraídos os bens e os serviços que todas as pessoas precisam para sobreviver.
Ocorre que alguns exercentes da atividade empresarial acabam utilizando esta autonomia como artifício para encobrir seu comportamento irregular ou fraudulento. Utilizam-se dessa autonomia para prejudicar os interesses dos credores das sociedades, praticando fraudes, atos em franco abuso de direito ou provocando confusão patrimonial intencional. Nessa última situação, identifica-se o esvaziamento preordenado do patrimônio da sociedade para frustrar os interesses dos credores.
Para coibir a má utilização da pessoa jurídica sem extirpar da pessoa jurídica a autônima patrimonial que é fundamental para a atividade empresária, a doutrina jurídica elaborou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Sem o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, a qual objetiva desconsiderar a existência da personalidade própria para poder atingir o patrimônio pessoal dos sócios para saldar dívidas da sociedade, a única forma que existiria para a coibição de fraudes seria a dissolução da sociedade.
A dissolução, como meio de coibição do mau uso da pessoa jurídica pode até ser eficaz, no entanto, provoca a extinção da pessoa jurídica. Já a desconsideração da personalidade jurídica, como gera efeitos apenas para a situação em discussão, preserva a empresa, a qual poderá continuar sendo exercida pela sociedade.
A preservação da empresa com a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica é também uma forma de atendimento da função social da empresa. Só é possível o atendimento da função social da empresa quando estas existem, assim, todos os instrumentos que possuem o escopo de preservar a entidade empresarial legitimam aquele princípio.
Diante da atitude de empresários que se valem do manto da autonomia patrimonial a atividade empresarial acaba por ser colocada em risco. É de ser levado em consideração que uma empresa não tem apenas a finalidade de obter lucratividade, apresenta conjuntamente uma função social, eis que este organismo é gerador de riquezas, de empregos, bem como é responsável pela circulação de bens e serviços. Assim, mostra-se fundamental a aplicação da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica como meio de coibir o atuar de má-fé dos sócios de sociedades empresárias punir apenas àquele sócio ou administrador que agiu de má-fé, não colocando em risco toda a atividade empresarial, pois conforme bem ilustra Carlos Eduardo Palermo a “função social da empresa é prioritária em relação aos dividendos.[1]”
Tendo em vista que a atividade empresarial possui importante função na economia do país, já que é responsável primordialmente pelo abastecimento do mercado de consumo, atendendo as necessidades, desde as mais básicas, de todos os cidadãos, bem como está diretamente ligada ao crescimento econômico do país, exercem uma fundamental função social.
A função social da empresa realça-se com a valorização de seus projetos e iniciativas na comunidade em que atua e pode ser considerada em diversas perspectivas como, por exemplo, o fornecimento de condições adequadas de trabalho para seus empregados, preservação dos interesses dos consumidores, preservação dos interesses dos concorrentes e preservação ecológica urbano-ambiental.
Assim, para que as empresas possam cumprir sua função social precisam existir, bem como é necessário um incentivo para a ampliação desta atividade, o que se atinge com a regra da autonomia patrimonial e limitação da responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais.
Essa necessidade, todavia, não pode ser motivo para que se releve a utilização fraudulenta da pessoa jurídica para burlar os credores, até porque tal atual desvia da finalidade que se propõe quando se estabelece a necessidade de atendimento a uma função social. É nessa situação que se faz presente o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, através do qual se coíbe o mau uso da pessoa jurídica, mas ao mesmo tempo preserva a empresa em atendimento ao princípio da função social, uma vez que as atividades empresarias não são encerradas, tampouco extinta a personalidade jurídica.
Portanto, a escolha deste tema se justifica justamente porque a teoria da desconsideração da personalidade jurídica mostra-se como meio de impedir ou punir o agir fraudulento acobertado pelo manto da autonomia patrimonial e na mesma medida preserva a empresa e, neste ponto, se mostra como uma forma de atendimento ao princípio da função social da empresa.
Desenvolvimento
As pessoas, na busca de realização profissional, muitas vezes acabam desenvolvendo projetos e negócios que, não raro, tomam grandes proporções, o que inviabiliza a sua a consecução individualmente. Cientes de sua fragilidade enquanto atuantes isolados, as pessoas acabam buscando a união com outras para que o esforço de todos seja potencializado e, fortalecidos enquanto grupo, se alcance a finalidade desejada mais tranquilamente.
Com o escopo de limitar os riscos inerentes às relações comerciais e assim favorecer o desenvolvimento das atividades econômicas produtivas, bem como auxiliar no desenvolvimento econômico e social das comunidades, é que a lei atribuiu personalidade às pessoas jurídicas. Com a atribuição da personalidade jurídica, cria-se um ente autônomo em relação às figuras dos sócios, com direitos e obrigações próprios, que não se confunde os direitos e obrigações individuais dos membros que a compõem.
As obrigações assumidas pela pessoa jurídica são obrigação que atingem tão mente ela, assim como o patrimônio da pessoa jurídica é titularizado por ela. Além disso, a responsabilidade patrimonial, ou seja, a responsabilidade da pessoa jurídica pelas obrigações contraídas no exercício do negócio é restrita, limitada ao patrimônio da sociedade. Isso significa dizer que, em regra, os sócios não respondem com seu patrimônio pessoal por obrigações sociais, mesmo que depois de esgotados os bens do patrimônio da pessoa jurídica, remanesçam dívidas.
Silvio Rodrigues define as pessoas jurídicas como entidades abstratas que a lei empresta personalidade, isto é são seres que atuam na vida jurídica, com personalidade jurídica diversa da dos indivíduos que a compõem, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil. O autor ainda esclarece que é justamente com o intuito de proteger os interesses individuais que a lei atribui personalidade a estes entes.[2]
A personalidade jurídica atribuída às pessoas jurídicas por lei somente se concretiza após o devido arquivamento do ato constitutivo perante o registro competente, como exemplo, o registro do contrato social da sociedade limitada ou o registro do estatuto social da sociedade anônima no registro mercantil à cargo das Juntas Comerciais de cada Estado. A vinculação tão somente fática entre os indivíduos que pretendem se unir para a execução de um determinado fim comum, muito embora já denote a existência da sociedade, não é o bastante para que passe a gozar das prerrogativas inerentes a estes entes incorpóreos. Neste caso, serão sociedades irregulares, cujo tratamento jurídico dispensado pelo Código Civil é de sociedade em comum, diferindo principalmente no que toca à responsabilidade patrimonial, a qual será ilimitada e solidária, podendo sim, atingir o patrimônio individual dos sócios para saldar as dívidas contraídas no exercício do negócio.
É indispensável o registro do ato constitutivo da sociedade para que, regularizada, seja personalizada e, assim, passe a receber o tratamento dispensado pela lei para o tipo societário de opção quando da redação do ato constitutivo. É o ato registral que reconhece à sociedade como pessoa jurídica regularmente constituída e, a partir daí, se atribui a elas algumas prerrogativas, já que adquirem personalidade e capacidade para ser sujeito de direitos e obrigações, podendo, desta feita, praticar atos em nome próprio e assumir responsabilidades.
A doutrina clássica de direito empresarial assim se manifesta. Fran Martins afirma que é a partir do arquivamento dos atos constitutivos no registro competente que “a sociedade separa-se dos sócios, passando a constituir uma pessoa capaz de, em seu próprio nome, exercer direitos e assumir obrigações”.[3]
Adquirida a personalidade jurídica, através do cumprimento da obrigação de registro, ocorre uma mutação jurídica que impõe a separação da sociedade em relação aos sócios que a compõem. Com esta separação, o ente autônomo que “nasce” passa a ter, dentre outros efeitos, autonomia patrimonial. A autonomia que é conferida, nada mais é do que a separação dos patrimônios pessoais dos sócios do patrimônio da sociedade.
A autonomia patrimonial é um dos princípios basilares do direito societário, já que é através dele que se confere proteção tanto aos sócios quanto à sociedade. Dessa forma, esta autonomia é uma das responsáveis pelo impulso na economia moderna, já que, caso inexistisse esta separação, poucas pessoas assumiriam os riscos inerentes à atividade empresarial. A autonomia patrimonial funciona como redutor de risco e estimula a economia do país justamente porque a proteção do patrimônio pessoa dos sócios incentiva a assunção dos riscos da atividade empresarial.
Rubens Requião afirma que a autonomia patrimonial é, inclusive, responsável pela conservação do ente empresarial, com o que se atinge a sua finalidade social. Nessa medida, afirma o autor que
a sociedade garante a determinadas pessoas as suas prerrogativas, não é para ser-lhes agradável, mas para assegurar-lhes a própria conservação. Esse, é na verdade, o mais alto atributo do Direito: a sua finalidade social.[4]
O Código Civil de 2002 consagrou o princípio da autonomia patrimonial através no artigo 596[5] que define que os bens dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, exceto nos casos previstos em lei, além de que sempre deve ser respeitado o princípio da subsidiariedade, através do qual, o benefício de ordem é garantido, qual seja: o patrimônio particular do sócio apenas poderá ser atingido depois de exauridos os bens da sociedade.
O problema que se apresentou na prática foi o de que, sob o escudo desse princípio, os sócios passaram a utilizar a pessoa jurídica e sua autonomia patrimonial para praticar fraudes e atos em franco abuso de direito. O princípio que é fundamental para o direito societário acabou permitindo que algumas pessoas desonestas fizessem um mau uso da pessoa jurídica. Fran Martins afirma que
A admissão pelas sociedades da personalidade jurídica deu lugar a indivíduos desonestos que, utilizando-se da mesma, praticassem, em seu proveito próprio, atos fraudulentos ou com abuso de direito, fazendo com que as pessoas jurídicas respondessem pelos mesmos.[6]
No intuito de coibir os abusos e fraudes praticados pelas pessoas que compõem as sociedades empresárias, justamente praticados em sob o manto da autonomia patrimonial, construiu-se a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Maria Helena Diniz afirma tranquilamente que a desconsideração da personalidade jurídica é doutrina que nasceu justamente para coibir o mau uso da pessoa jurídica e, nesse sentido, afirma que
ante a sua grande independência e autonomia devido ao fato da exclusão da responsabilidade dos sócios, a pessoa jurídica, às vezes tem-se desviado de seus princípios e fins, cometendo fraudes e desonestidades, provocando reações doutrinárias e jurisprudenciais que visam coibir tais abusos: surge a figura da desconsideração da pessoa jurídica.[7]
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica originou-se nos países de sistema jurídico da Common Law, através dos judiciais e foi chamada de disregar of legal entity. O caso originário da aplicação deste fenômeno o caso Bank of Unitedes States versus Deveaux, em 1809, no qual se verificou pela primeira vez a extensão da responsabilidade patrimonial que acabou por estender aos sócios os efeitos patrimoniais que em regra deveriam ter atingido tão somente a entidade da qual faziam parte.
No entanto, foi o célebre caso Salomon versus Salomon e Company, na Inglaterra, em 1897, que permitiu o desenvolvimento da teoria, pois, até então, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica era vista com restrições, chegando mesmo a ser repudiada pela doutrina.[8]
Os casos de abusos e fraudes contra credores, como, por exemplo, a confusão patrimonial, passaram a ser comuns na prática e, muitas destas situações foram levadas aos Tribunais americanos e ingleses,foi assim que a doutrina se desenvolveu. Cunharam-se, inclusive, termos para explicitação desta doutrina. Nos Estados Unidos utilizou-se a expressão lifitng the veil, que significa levantar o véu da pessoa jurídica para atingir diretamente o patrimônio dos sócios.
No Brasil, após o desenvolvimento da teoria na jurisprudência estrangeira, iniciaram-se vozes no sentido de aplicação da doutrina. Estudo pioneiro e responsável por trazer o tema para o debate no Direito brasileiro foi de Rubens Requião, que publicou em 1969 um artigo intitulado “Abuso de Direito e Fraude de Pessoa Jurídica”.[9]
Claro que a discussão no plano teórico acabou influenciando o plano judicial, mesmo não havendo qualquer norma expressa no ordenamento acolhendo a doutrina. Mas os Tribunais acabaram solucionando a questão utilizando a analogia. Carlos Roberto Gonçalves explica que
como no Brasil não havia nenhuma lei que expressamente autorizasse a aplicação de tal teoria entre nós, valiam-se os tribunais, para aplicá-la, analogicamente, da regra do artigo 135 do Código Tributário Nacional, que responsabiliza pessoalmente os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado por créditos correspondentes á obrigações tributárias resultantes de atos praticados com ‘ excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.[10]
A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica desenvolveu-se no Brasil e, quando verificada a ocorrência de fraude ou abuso de direito, com o intento de eximir-se do cumprimento de obrigações assumidas, o credor da sociedade pode buscar através do Poder Judiciário a desconsideração da personalidade jurídica para, ignorando a regra da autonomia patrimonial, avançar sobre o patrimônio pessoal dos sócios para satisfação de seu crédito. Isso é o que fica claro através dos ensinamentos de Carlos Roberto Gonçalves que afirma que
permite tal teoria que o juiz, em casos de fraude e de má fé, desconsidere o princípio de que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros e os efeitos dessa autonomia, para atingir e vincular os bens particulares dos sócios à satisfação das dívidas da sociedade.[11]
Como dito, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica se deu inicialmente através da jurisprudência. Isso porque o acolhimento legal foi tardio, já que somente em 1990, com a edição do Código de Defesa do Consumidor[12], a teoria foi acolhida expressamente em norma legal. Depois, apenas em 1998, com a lei 9.605 que trata das atividades lesivas ao meio ambiente consagrou-se nova previsão legal de que “sempre que a sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”.
Veja-se que o acolhimento vinha sendo feito através de leis especiais, já que a primeira lei geral que previu expressamente a desconsideração foi o Código Civil de 2002, no seu artigo 50[13], bem como no artigo 1011[14] define o dever de diligência que o administrador tem a obrigação de empregar na condução dos negócios, aplicando, inclusive, sanções quando este dever não for cumprido, conforme o artigo 1016[15] do mesmo diploma, que determina a responsabilidade solidária dos administradores com a sociedade perante os terceiros prejudicados, quando evidenciada a culpa no desempenho de suas funções[16].
Convém destacar que a empresa tem obrigação de valer-se de todos os meios legais que possui para que possa atingir a finalidade a qual se destina. Ao praticarem atos fraudulentos, lesando credores à custa da empresa, os sócios infratores estão atacando frontalmente a função social da empresa, que não se trata apenas da obtenção do lucro, mas também a satisfação do seu objetivo, das necessidades da população, bem como do Estado. O cumprimento da função social da propriedade dos meios de produção, por óbvio, que importa no agir leal por parte dos sócios que administram as pessoas jurídicas.
Essa função social é evidenciada por Modesto Cravalhosa quando afirma que
tem a empresa uma óbvia função social, nela sendo interessados os empregados, os fornecedores, a comunidade em que atua e o próprio Estado, que dela retira contribuições fiscais e parafiscais. Considerando-se principalmente três as modernas funções sociais da empresa. A primeira refere-se às condições de trabalho e as relações com seus empregados, a segunda volta-se ao interesse dos consumidores, a terceira volta-se ao interesse dos concorrentes. E ainda mais atual é a preocupação com os interesses de preservação ecológica, urbano e ambiental da comunidade em que a empresa atua.[17]
Ademais, os administradores de sociedades empresárias não podem somente se preocupar com os interesses econômicos da empresa. Claro que estes interesses são fundamentais, não há como negar. No entanto, agregado a isso é necessário também ter em vista o interesse de toda uma coletividade. Esta é a forma de atender a função social, o que não vai de encontro a intenção lucrativa.
Ao lado da finalidade lucrativa devem estar os interesses constitucionalmente previstos, já que
a função social é alcançada quando, a empresa observa a solidariedade (CF/88, art. 3°, inc. I), promove a justiça social (CF/88, art. 170, caput), livre iniciativa (CF/88, art. 170, caput e art. 1°, inc. IV), busca de pleno emprego (CF/88, art. 170, inc. VIII), redução das desigualdades sociais (CF/88, art. 170, inc. VII), valor social do trabalho (CF/88, art. 1°, inc. IV), dignidade da pessoa humana (CF/88, art. 1°, inc. III), observe os valores ambientais (CDC, art. 51, inc. XIV), dentre outros princípios constitucionais e infraconstitucionais.[18]
Quando os administradores de sociedades empresárias praticavam atos abusivos e fraudulentos para frustrar os interesses dos credores, além de violar a função social na perspectiva já narrada, não havia outro meio que não a dissolução das sociedades como forma de coibir o mau uso da pessoa jurídica. A dissolução de empresas não é a melhor solução, já que se deve ter em mente que são elas que abastecem o mercado de consumo e aquecem a economia do país.
Nesse ponto é que se verifica a principal vantagem da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. A desconsideração não importa na negação ou supressão da pessoa jurídica, não desfaz seu ato constitutivo, apenas atinge temporariamente os efeitos da personalização para a solução de um determinado caso específico. Dessa forma, a pessoa jurídica continua intacta para todas as demais relações jurídicas em que figurar, sendo a desconsideração da personalidade levada a efeito apenas para resolver aquelas situação em que ficar evidenciada a fraude ou o agir abusivo.
Isso significa dizer que, preservando a pessoa jurídica preserva-se a empresa, não sendo mais necessária a sua dissolução quando evidenciada a fraude ou o abuso de direito. A desconsideração funciona como uma punição para aquele caso em específico o que pode ter, inclusive, uma finalidade educativa e corretiva do comportamento.
Fabio Ulhoa Coelho é pontual nesse sentido e afirma que
a desconsideração da pessoa jurídica não atinge a validade do ato constitutivo, mas a sua eficácia episódica. Uma sociedade que tenha autonomia patrimonial desconsiderada continua válida, assim como válidos são todos os demais atos que praticou, a separação patrimonial em relação aos seus sócios é que não produzirá nenhum efeito na decisão judicial referente àquele específico ato objeto da fraude.[19]
Em outras palavras, mas concluindo no mesmo sentido, Francisco Amaral para quem com a desconsideração
o que se defende, com efeito, é que o juiz, perante o caso concreto em que fique comprovada a prática de atos fraudulentos, de descumprimento de obrigações, de atos ilícitos por pessoas que aproveitam a vantagem da limitação da responsabilidade da pessoa jurídica, embora permaneça íntegra para os seus legítimos objetivos. [20]
Assim, não há como negar que com a desconsideração da personalidade jurídica se atinge duas finalidades: coíbe-se o agir fraudulento e abusivo, mas preserva-se a empresa. Na medida em que se trata de instituto que permite a preservação da empresa funciona como instrumento de atendimento à função social da empresa.
Um dos aspectos positivos da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica é a sua efemeridade, porque, sem desconstituir, sem dissolver, tampouco liquidar a pessoa jurídica, uma vez identificado o fim ilícito do ato de seus sócios, ou ainda, quando a vontade do sócio vier a se sobrepor à vontade social, permite a normal continuidade das atividades da pessoa jurídica. É nessa medida em que não é adequado utilizar o termo despersonalização, mas sim desconsideração da personalidade jurídica. Os termos não podem ser utilizados como sinônimos. Assim,
cumpre distinguir, pois, despersonalização de desconsideração da personalidade jurídica. A primeira acarreta a dissolução da pessoa jurídica ou a cassação da autorização para seu funcionamento, enquanto na segunda ‘subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios ou componentes, mas essa distinção é afastada, provisoriamente tão só para o caso concreto’.[21]
Conclusão
A desconsideração da personalidade jurídica nada mais é do que uma forma especial de reação do Direito ao mau uso da sociedade empresarial personalizada, que surge com o intuito de coibir atos fraudulentos ou abusivos através da personalidade jurídica, sem, no entanto, anular ou tornar nula a personificação existente.
Resta claro que, através da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, haverá a adequação da pessoa jurídica aos fins para os quais ela foi criada, bem como reconhecer a relatividade da personalidade jurídica das sociedades em caso de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial. Só este instituto, pelo menos daqueles que estão a disposição no sistema jurídico brasileiro, é capaz de coibir a fraude e o abuso de direito e, ao mesmo tempo, preservar a empresa. Preservando a empresa, preserva-se a atividade econômica organizada para a produção e circulação de bens e serviços. Com isso, todos ganham: ganha a economia do país, ganham os sócios da sociedade, ganham os credores e também a comunidade. Trata-se, pois, de evidente instrumento jurídico que, ao fim e ao cabo, atende a função social da empresa. Assim, atende as diretrizes constitucionais definidas para a ordem econômica brasileira.
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[1] PALERMO, Carlos Eduardo de Castro. A função Social da Empresa e o Novo Código Civil. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3756, acesso em 05 de outubro de 2008
[2] RODRIGUES, Silvio. Curso de Direito Civil: Parte Geral. 25.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 64.
[3] MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. 19.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 212.
[4] REQUIÃO, Rubens. Abuso de Direito e Fraude através da Personalidade Jurídica, vol. 58, n. 410, dez/69. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 58.
[6] MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial, p. 215.
[7] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 13.ed. v.1. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 467.
[8] ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de Bens dos Sócios. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 189.
[9] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 6.ed. v.1. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 215.
[10] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 6.ed. v.1. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 215.
[11] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, p. 214.
[12] Art. 28, Lei 8078/90: O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
[13] Art. 50, CCB/02: Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares
dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
[14] Art. 1011, CCB/02: O administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios.
[15] Art. 1016, CCB/02: Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções.
[16] Ressalte-se que os sócios e administradores em geral devem obediência aos preceitos de boa administração e lisura nos negócios e atos praticados. Tal dever também fica evidenciado pela Lei das Sociedades por Ações, Lei 6404/76, nos seus artigos 117, 153, 158 e 165.
[17] CARVALHOSA, Modesto. CARVALHOSA, M. Comentários à lei de sociedades anônimas. São Paulo: Saraiva, 1977. v. 3., p. 237. apud PALERMO, Carlos Eduardo de Castro. A função Social da Empresa e o Novo Código Civil. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3763, acesso em 05 de outubro de 2008.
[18] PEREIRA, Rafael Vasconcelos de Araújo. A Função Social da Empresa. Disponível em http://www.direitonet.com.br/artigos/x/19/88/1988, acesso em 23 de outubro de 2008.
[19] COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 127.
[20] AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 5ed Rio de Janeiro: Renovat, 2003, p. 302
[21] COMPARATO, Fábio Konder apud GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 6.ed. v. I. São Paulo: Saraiva. 2008. p. 214.
Empresário, estudante de direito, técnico em contabilidade.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Eduardo Carvalho dos. A desconsideração da personalidade jurídica como instrumento de atendimento à função social da empresa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35014/a-desconsideracao-da-personalidade-juridica-como-instrumento-de-atendimento-a-funcao-social-da-empresa. Acesso em: 23 dez 2024.
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