Toda despesa pública precede da realização de licitação ou suas exceções ao dever de licitar, para que, ao final, seja cumprido o rito com a consequente liquidação e o respectivo pagamento. A legislação, como se sabe, determina que no procedimento sejam sempre atendidos os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, probidade administrativa, publicidade e eficiência.
Diuturnamente, no seio da administração pública, tem-se notícia da ocorrência de despesa pública sem o devido cumprimento do rito acima especificado, em especial sem cobertura contratual. Nesses casos, havendo contrato administrativo ou não, mas existindo a realização do serviço, presume-se que o faz com o assentimento, tácito que seja, não formalizado, da Administração Pública.
Constata-se, então, que os serviços foram prestados sem cobertura contratual válida, pois, se há consentimento, há contrato, que, entretanto, será nulo, seja por vício de forma (contrato oral ou tácito), seja pela não precedência de licitação. Os serviços que geram dívidas sem a respectiva cobertura contratual são denominados pela doutrina de serviços extracontratuais ou extraordinários.
Dispõe o parágrafo único do art. 60 da Lei nº 8.666/93 ser “nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea “a” desta Lei, feitas em regime de adiantamento”.
Diante de um contrato nulo, o art. 59, parágrafo único da Lei nº 8.666/93, contemplando, no âmbito dos contratos administrativos, o princípio da vedação do enriquecimento sem causa, dispôs que “a nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada, e por outros prejuízos regularmente comprovados (...)”.
Assim, na hipótese de contrato nulo, pode-se admitir o pagamento pelo uso de determinado bem ou serviço pela Administração, mas não sob a fundamentação de obrigação contratual, e sim sob o dever moral de indenizar toda obra, serviço ou material recebido e auferido pelo Poder Público, porque o Estado não pode tirar proveito da atividade do particular sem a correspondente contraprestação pecuniária.
Os professores Sérgio Ferraz e Lucia Valle Figueiredo, ao dissertarem sobre a hipótese de um particular desenvolver atividade de proveito coletivo sem que tenham sido cumpridas as formalidades contratuais anotam:
“... o problema só adquire relevância se presentes os seguintes dados: a) enriquecimento ou proveito para a coletividade; b) empobrecimento ou depreciação patrimonial para o prestador de serviços; c) relação de nexo entre um e outro dos fenômenos acima apontado; d) ausência de causa para a concretização dos aludidos fenômenos”.[1]
Referidos doutrinadores expõem que se a Administração não se opôs a tal atividade e, dessarte, consentiu tacitamente em sua realização, ficará obrigada a indenizar seu autor, se impossível ou inconveniente a restauração ao statu quo ante. Fundamentam tal obrigação na responsabilidade do Estado prevista no art. 37, §6º, da Constituição da República, vez que aquele que presta um serviço à coletividade fará jus à reparação, mesmo sem regularidade formal da relação jurídica, pois, em virtude da ação ou omissão do Estado, restou desprivilegiado frente aos demais administrados, quanto à repartição das cargas públicas genéricas.
O Tribunal de Contas da União, em manifestação acerca do tema, inclinou-se sobre o devido pagamento de serviço extraordinário efetivamente prestado, sob pena de enriquecimento ilícito da Administração. Veja-se:
VISTOS, relatados e discutidos estes autos acerca de consulta formulada pelo ex-Procurador-Geral da República, Claudio Lemos Fonteles, acerca da possibilidade de pagamento de horas extras excedentes aos limites legais, em caso de comprovado serviço extraordinário decorrente de fato imprevisto.
ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão Plenária, ante as razões expostas pelo Relator, em: [...]
9.2.2. é devido o pagamento de serviço extraordinário efetivamente prestado, sob pena de enriquecimento ilícito da Administração, observando-se o disposto na Lei nº 8.112/1990 e demais legislações pertinentes, quanto à possibilidade de punição do responsável e/ou do servidor pela execução indevida;
9.2.3. as situações excepcionais devem ser devidamente justificadas, com a demonstração da imprevisibilidade da situação, da imprescindibilidade dos serviços, bem como da ausência de servidores, no quadro do órgão, em número suficiente para atender aos limites de horas extras legalmente estipulados;
(Ata 04/2007 – Plenário. Acórdão 43/2007)
Registra-se novamente que toda contratação precede de um rito formal de licitação ou de exceção ao dever de licitar, cumprindo-se o procedimento da despesa pública (empenho, liquidação e pagamento). Todavia, havendo serviços prestados extraordinariamente, deve-se remeter ao previsto no art. 37 da Lei nº 4.320/64[2] para instrumentalizar o reconhecimento, conforme orientado pelo Ilustre Professor Túlio Belchior Mano da Silveira no artigo “O reconhecimento de Dívida na Administração Pública por Serviços Prestados sem a Respectiva Cobertura Contratual ou Serviços Extraordinários e Extracontratuais”[3].
De todo o modo, depois de reconhecida a dívida positiva, com a correta classificação contábil da despesa, o administrador deverá levar em consideração os preceitos legais da despesa pública, no tocante à emissão do competente empenho, com a consequente liquidação e pagamento, o qual terá natureza indenizatória, sob pena de ser a ele atribuído o enriquecimento ilícito em detrimento de outrem.
Porém, o reconhecimento da dívida demonstra a ocorrência de irregularidade, que pode ser justificável ou não, tendo em vista ser obrigação do setor competente prever a necessidade da Administração e tomar as providências pertinentes para a formalização do respectivo contrato.
Em consulta às decisões do TCU, verifica-se que, embora admita, excepcionalmente, o pagamento de despesas sem cobertura contratual, a fim de evitar o enriquecimento sem causa da Administração, há preocupação com a reiteração da conduta administrativa, bem como é cobrada a responsabilização dos causadores da irregularidade. Por exemplo, na Decisão nº 1.521/2002 (Plenário), determinou-se ao INSS que evitasse a prática de reconhecimento de dívida, mantendo-se devidamente formalizadas todas as suas relações contratuais.
No mesmo sentido, a Orientação Normativa nº 4 da AGU dispõe que a despesa sem cobertura contratual deverá ser objeto de reconhecimento de obrigação de indenizar, sem prejuízo da apuração da responsabilidade de quem lhe deu causa, in verbis:
ORIENTAÇÃO NORMATIVA Nº 4, DE 1º DE ABRIL DE 2009
O ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO, no uso das atribuições que lhe conferem os incisos I, X, XI e XIII, do art. 4º da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, considerando o que consta do Processo nº 00400.015975/2008-95, resolve expedir a presente orientação normativa, de caráter obrigatório a todos os órgãos jurídicos enumerados nos arts. 2º e 17 da Lei Complementar nº 73, de 1993:
A DESPESA SEM COBERTURA CONTRATUAL DEVERÁ SER OBJETO DE RECONHECIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR NOS TERMOS DO ART. 59, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 8.666, DE 1993, SEM PREJUÍZO DA APURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DE QUEM LHE DER CAUSA.
INDEXAÇÃO: INDENIZAÇÃO. DESPESA SEM COBERTURA CONTRATUAL. CONTRATO NULO. CONTRATO VERBAL. RECONHECIMENTO. RESPONSABILIDADE.
REFERÊNCIA: arts. 59, parágrafo único, 60, parágrafo único, da Lei nº 8.666, de 1993; Art. 63, Lei nº 4.320, de 1964; Acórdão TCU 375/1999-Segunda Câmara.
JOSÉ ANTONIO DIAS TOFFOLI
Ademais, o doutrinador Ronny Charles explicita que caso haja dúvida acerca da boa-fé do particular deverá ser realizado procedimento administrativo, ouvindo os interessados e, sendo-lhe imputada alguma irregularidade, indenização integral não será devida, veja-se:
Caso haja dúvida acerca da boa-fé do particular, deve ser realizado procedimento administrativo, ouvindo os interessados. Em caso de comprovada má-fé ou sendo-lhe imputável o motivo da irregularidade, conforme indica a leitura do parágrafo único do art. 59, a indenização integral não é devida. Deve ser justificada pelo setor competente a realização da contratação sem a submissão ao procedimento contratual formal, sob pena de responsabilização administrativa. Como elementos dessa justificativa, o setor competente pela despesa deve indicar a necessidade da contratação (que apontará o interesse público envolvido) e a essencialidade de sua realização imediata (demonstrando o motivo pelo qual a despesa foi contraída sem a respectiva formalização) [...] Isso porque cabe à autoridade competente, responsável pela despesa, aferir se a irregularidade decorreu de situações justificáveis ou não.[4]
Portanto, a despesa sem cobertura contratual deverá ser objeto de reconhecimento da obrigação de indenizar nos termos do art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93, sem prejuízo da apuração da responsabilidade de quem lhe der causa acaso não demonstrada razoabilidade na necessidade de contratação fundada na essencialidade de sua realização imediata.
FONTE DE PESQUISA
FERRAZ, Sérgio; FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Dispensa e Inexigibilidade de Licitação. São Paulo: Malheiros, 3ª Ed. Rev. dos Trib., 1980.
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2012.
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de licitações e contratos administrativos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012.
FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialética, 2009.
SOUTO, Marcos Juruena Vilela. Licitações e contratos administrativos. Rio de Janeiro: Esplanada, 2000.
SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos. Temas Polêmicos sobre licitações e contratos. São Paulo: Malheiros, 1995.
CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de direito administrativo. Salvador: Editora Juspodivm, 2009.
TORRES, Ronny Charles Lopes de. Lei de Licitações Públicas Comentadas. Bahia: Editora Jus Podivm, 2009.
BRASIL. Disponível em http://ibmap.org/Artigos.
BRASIL. Pesquisa de jurisprudência por assuntos. Disponível em https://contas.tcu.gov.br/pls/apex/f?p=175:6.
BRASIL. Pesquisa de orientação normativa. Disponível em http://www.agu.gov.br/sistemas/site/PaginasInternas/NormasInternas/ListarAtos.aspx?TIPO_FILTRO=Orientacao
[1] Dispensa de Licitação, pags. 95-96, Malheiros Editores, 3ª Ed. Rev. dos Trib., 1980.
[2] Art. 37. As despesas de exercícios encerrados, para as quais o orçamento respectivo consignava crédito próprio, com saldo suficiente para atendê-las, que não se tenham processado na época própria, bem como os Restos a Pagar com prescrição interrompida e os compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício correspondente poderão ser pagos à conta de dotação específica consignada no orçamento, discriminada por elementos, obedecida, sempre que possível, a ordem cronológica. [...]
[3] In http://ibmap.org/Artigos.
[4] Lei de Licitações Públicas Comentadas. Bahia: Jus Podivm. 2009. P. 280.
Advogada da União, lotada na Procuradoria da União em MT, (ex-procuradora do município de Natal).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAIVA, Marianne Cury. Contrato verbal realizado pela administração pública e o dever de indenizar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 maio 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35019/contrato-verbal-realizado-pela-administracao-publica-e-o-dever-de-indenizar. Acesso em: 23 dez 2024.
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