1. Introdução
Em diversas situações, a Administração Pública é flagrada com contratos administrativos verbais, seja porque o contrato de um serviço essencial venceu e por algum motivo não foi possível realizar nova licitação a tempo, seja porque a autoridade administrativa assumiu de boa-fé algum compromisso com terceiros sem observar o devido procedimento licitatório.
No presente artigo, pretende-se analisar os efeitos jurídicos da nulidade do contrato verbal no âmbito da Administração Pública, o dever de indenizar, bem como a possível repercussão de responsabilidade civil e administrativa para a autoridade responsável.
2. Requisitos legais dos contratos administrativos. Repercussão dos contratos verbais.
Os contratos administrativos devem necessariamente ser precedidos de licitação pública, com vistas a escolher a melhor proposta, bem como oferecer igual oportunidade a todos os interessados em contratar com a Administração Pública, nos termos do art. 37, XXI da Constituição Federal:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Por sua vez, o artigo 60 da Lei nº 8.666/93 estabelece que os contratos e aditamentos administrativos devem ser reduzidos a termo e subscritos pelo agente público responsável. O parágrafo único do dispositivo legal rege que o descumprimento dessa norma torna o contrato nulo e ineficaz (grifos nossos):
Art. 60. Os contratos e seus aditamentos serão lavrados nas repartições interessadas, as quais manterão arquivo cronológico dos seus autógrafos e registro sistemático do seu extrato, salvo os relativos a direitos reais sobre imóveis, que se formalizam por instrumento lavrado em cartório de notas, de tudo juntando-se cópia no processo que lhe deu origem.
Parágrafo único. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea "a" desta Lei, feitas em regime de adiantamento.
No entanto, ainda que o contrato verbal realizado com a Administração Pública seja nulo, implicando a desconstituição de seus efeitos jurídicos de forma retroativa, o ente público não poderá deixar de efetuar o pagamento pelos serviços prestados e pelos prejuízos decorrentes, desde que comprovados, ressalvadas as hipóteses de má-fé ou de ter o contratado concorrido para a nulidade.
Na hipótese do não pagamento, haveria enriquecimento ilícito da Administração Pública. Essa é a regra contida no artigo 59 e seu parágrafo único, da Lei nº 8.666/93:
Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.
Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.
Sobre o assunto, o Professor Marçal Justen Filho[1], comenta:
[...] o legislador brasileiro efetivou opção clara pelas soluções compatíveis com um Estado Democrático de Direito. Além de todas as determinações atinentes à responsabilização civil do Estado, consagrou-se a disciplina específica do parágrafo único do art. 59 para a contratação administrativa inválida. Daí se segue que a invalidação, por nulidade absoluta, de qualquer ajuste de vontades entre a Administração e o particular gerará efeitos retroativos, mas isso não significará o puro e simples desfazimento de atos. Será imperioso produzir a compensação patrimonial para o particular, sendo-lhe garantido o direito de haver tudo aquilo que pelo ajuste lhe fora assegurado e, ainda mais, a indenização por todos os prejuízos que houver sofrido.
Hely Lopes Meirelles[2] assevera que:
Mesmo no caso do contrato nulo, pode tornar-se devido o pagamento dos trabalhos realizados ou dos fornecimentos feitos à Administração, uma vez que tal pagamento não se funda em obrigação contratual, e sim no dever moral de indenizar toda a obra, serviço ou material recebido e auferido pelo Poder Público, ainda que sem contrato ou com contrato nulo, porque o Estado não pode tirar proveito da atividade do particular sem a correspondente indenização.
Também este é o entendimento consagrado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, através do REsp 545471 PR, Processo nº 2003/0078413-5, Relatora Ministra Denise Arruda, julgado em 23/082/2005 (grifos nossos):
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. CHEQUE PRESCRITO. CONTRATO VERBAL DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. TRANSPORTE. AUSÊNCIA DE LICITAÇÃO E PRÉVIO EMPENHO. ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 59, § 4º, DA LEI 4.320/64, 59 E 60, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 8.666/93. OCORRÊNCIA. OBRIGATORIEDADE DA LICITAÇÃO. PRINCÍPIO DE ORDEM CONSTITUCIONAL (CF/88, ART. 37, XXI). FINALIDADE (LEI 8.666/93, ART. 3º). FORMALIZAÇÃO DOS CONTRATOS PARÁGRAFO ÚNICO). INOBSERVÂNCIA DA FORMA LEGAL. EFEITOS. NULIDADE. EFICÁCIA RETROATIVA (LEI 8.666/93, ART. 59, PARÁGRAFO ÚNICO). APLICAÇÃO DAS NORMAS DE DIREITO FINANCEIRO. PROVIMENTO.
1. Da análise do acórdão recorrido, verifica-se que não há dúvidas quanto à existência do contrato verbal de prestação de serviços celebrado entre o Município de Morretes/PR e a Viação Estrela de Ouro Ltda, bem como do cheque emitido e não-pago pela municipalidade a título de contraprestação pelo arrendamento de três ônibus efetivamente utilizados no transporte coletivo. Nesse contexto, a questão controvertida consiste em saber se, à luz das normas e princípios que norteiam a atuação da Administração Pública, é válido e eficaz o contrato administrativo verbal de prestação de serviço firmado.
2. No ordenamento jurídico em vigor, a contratação de obras, serviços, compras e alienações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e entidades da administração pública indireta, está subordinada ao princípio constitucional da obrigatoriedade da licitação pública, no escopo de assegurar a igualdade de condições a todos os concorrentes e a seleção da proposta mais vantajosa (CF/88, art. 37, XXI; Lei 8.666/93, arts. 1º, 2º e 3º).
3. Além disso, a Lei 8.666/93, na seção que trata da formalização dos contratos administrativos, prevê, no seu art. 60, parágrafo único, a regra geral de que o contrato será formalizado por escrito, qualificando como nulo e ineficaz o contrato verbal celebrado com o Poder Público, ressalvadas as pequenas compras de pronto pagamento,exceção que não alcança o caso concreto.
4. Por outro lado, o contrato em exame não atende às normas de Direito Financeiro previstas na Lei 4.320/64, especificamente a exigência de prévio empenho para realização de despesa pública (art. 60) e a emissão da 'nota de empenho' que indicará o nome do credor, a importância da despesa e a dedução desta do saldo da dotação própria (art. 61). A inobservância dessa forma legal gera a nulidade do ato (art. 59, § 4º).
5. Por todas essas razões, o contrato administrativo verbal de prestação de serviços de transporte não-precedido de licitação e prévio empenho é nulo, pois vai de encontro às regras e princípios constitucionais, notadamente a legalidade, a moralidade, a impessoalidade, a publicidade, além de macular a finalidade da licitação, deixando de concretizar, em última análise, o interesse público.
6. No regime jurídico dos contratos administrativos nulos, a declaração de nulidade opera eficácia ex tunc, ou seja, retroativamente, não exonerando, porém, a Administração do dever de indenizar o contratado (Lei 8.666/93, art. 59, parágrafo único), o que, todavia, deve ser buscado na via judicial adequada. 7. Recurso especial provido.
Por tal motivo, a Administração Pública deve ter a cautela de observar o procedimento licitatório, ou as hipóteses legais de contratação direta, e zelar para que a relação contratual esteja respaldada no instrumento formalizado até o esgotamento do objeto pactuado.
Muitas vezes, os órgãos públicos são flagrados com relações extracontratuais, decorrentes de contratos vencidos, que não foram ou não podiam mais ser prorrogados, e que, em função da permanência da necessidade do serviço, são consentidos pelo gestor em busca do atendimento do interesse público.
Note-se que a única exceção aberta pelo legislador ao contrato verbal é o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea “a” da Lei nº 8.666/93, feitas em regime de adiantamento, conforme prevê a parte final do parágrafo único do art. 60 do Estatuto das Licitações.
De acordo com o citado art. 59, § 4º da Lei nº 8.666/93, os efeitos da declaração nulidade são ex tunc, ou seja, retroagem à data de sua celebração, mas não exoneram a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que houver executado até o momento da declaração, sem prejuízo da apuração de responsabilidade.
Como obrigação de todo e qualquer gestor público, diante da ciência da necessidade contínua de determinados serviços, e do limite máximo da vigência contratual de 60 (sessenta) meses previsto no art. 57, II da Lei nº 8.666/93, deve ter a cautela de iniciar o processo de licitação com antecedência necessária para a celebração de um novo contrato, sem solução de continuidade dos serviços.
Neste sentido, caso a Administração tenha deixado vencer o contrato e anuído com a prestação dos serviços extracontratuais, ainda que pelo mesmo valor anteriormente praticado, deverá, de acordo com o Princípio da Vedação ao Enriquecimento Sem Causa, efetuar os respectivos pagamentos devidos, com base no dever de indenizar, sem prejuízo da imediata abertura de sindicância para apuração de responsabilidade do agente que deu causa à tal irregularidade.
Este é o entendimento esposado pela Orientação Normativa AGU nº 04/2009, a saber:
A DESPESA SEM COBERTURA CONTRATUAL DEVERÁ SER OBJETO DE RECONHECIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR NOS TERMOS DO ART. 59, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 8.666, DE 1993, SEM PREJUÍZO DA APURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DE QUEM LHE DER CAUSA.
3. Possíveis soluções
Questiona-se, portanto, como deve o administrador agir caso detecte a existência de um contrato verbal, e não possa, a seu entendimento, prescindir do objeto “contratado”. Neste caso, poderá o gestor cogitar de uma contratação direta por emergência, prevista no art. 24, IV da Lei nº 8.666/93, a depender da natureza do objeto, que prevê:
Art. 24. É dispensável a licitação:
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;
Não obstante, analisando com mais cautela os requisitos legais para a configuração da hipótese excepcional de contratação direta por emergência, deparamo-nos com os seguintes, apontados por balizada doutrina[3]:
a) Demonstração concreta e efetiva da potencialidade do dano;
b) Demonstração de que a contratação é a via adequada e efetiva para eliminar o risco.
Desta forma, caso se esteja diante de um serviço de natureza essencial cuja interrupção acarrete concreta e efetiva potencialidade do dano, e desde que a contratação pretendida elimine tal risco, como por exemplo, no caso de serviços de limpeza e de vigilância, parece-nos que a solução adequada será realizar a contratação direta, até que haja tempo hábil para uma nova contratação por licitação.
Ainda neste caso, dever-se-á apurar a responsabilidade pela contratação emergencial, já que a mesma foi impulsionada por um ato de negligência da Administração. Neste sentido, destaca-se a Orientação Normativa AGU nº 11/2009:
A CONTRATAÇÃO DIRETA COM FUNDAMENTO NO INC. IV DO ART. 24 DA LEI Nº 8.666, DE 1993, EXIGE QUE, CONCOMITANTEMENTE, SEJA APURADO SE A SITUAÇÃO EMERGENCIAL FOI GERADA POR FALTA DE PLANEJAMENTO, DESÍDIA OU MÁ GESTÃO, HIPÓTESE QUE, QUEM LHE DEU CAUSA SERÁ RESPONSABILIZADO NA FORMA DA LEI.
Outra hipótese legal que deve ser aventada é a dispensa de licitação com base no baixo valor contratual, até R$ 8.000,00, prevista no art. 24, II da Lei nº 8.666/93. No entanto, caso estejamos diante de serviço de natureza continuada, o eventual fracionamento do objeto para enquadrá-lo no valor limite, implicará infração ao dispositivo legal e à Orientação Normativa AGU nº 10/2011:
Vale apontar, todavia, a possibilidade de a Administração aderir à Ata de Registro de Preços, decorrente de Pregão realizado por outros órgãos da Administração Pública Federal, notadamente quando se tratar de um serviço comum e correntemente utilizado pelas repartições públicas em geral.
Com a nova regulamentação do Sistema de Registro de Preços dada pelo Decreto nº 7.892/2013, há possibilidade de órgãos não participantes do processo licitatório aderirem à Ata de Registro de Preços, desde que não exceda, por órgão ou entidade, a cem por cento dos quantitativos dos itens registrados, e, na totalidade, ao quíntuplo do quantitativo registrado.
4. Da conclusão
A Administração Pública deve observar o devido processo licitatório em suas contratações, ressalvadas as hipóteses legais de contratação direta, e formalizar o instrumento contratual ou equivalente, sendo regida pelo princípio da legalidade e do formalismo moderado.
A Lei nº 8.666/93 prevê expressamente que os contratos verbais são nulos de pleno direito, e portanto, devem ser desconstituídos com efeitos ex tunc. No entanto, o ente público não poderá deixar de efetuar o pagamento pelos serviços prestados e pelos prejuízos decorrentes, desde que comprovados, ressalvadas as hipóteses de má-fé ou de ter o contratado concorrido para a nulidade, sob pena de infração ao princípio da vedação ao enriquecimento ilícito.
Em razão disso, cumpre ao gestor público adotar todas as cautelas possíveis para evitar a manutenção de uma relação extracontratual, realizando a licitação de forma tempestiva, evitando-se irregularidade administrativa, e a consequente apuração de responsabilidade.
A eventual contratação emergencial de serviços essenciais à Administração Pública decorrente de ato de negligência do gestor, em que pese ser admitida pelo Tribunal de Contas da União, em prol do interesse público, exigirá a imediata apuração de responsabilidade.
5. Bibliografia
BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 jun. 1993. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm.> Acesso em: 18 abr. 2013.
FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14. ed. São Paulo: Dialética, 2010.
JUNIOR, Jessé Torres Pereira. Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública. 6. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2003.
MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
[1] Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Dialética, 11ª edição, p. 519
[2] Licitação e Contrato Administrativo, 11ª edição, Malheiros, p. 199
[3] Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 14ª edição, Ed. Dialética, pp. 306-307;
Procuradora Federal. Procuradora-Chefe da Fundação Biblioteca Nacional. Graduada em Direito pela UERJ. Pós-graduada em Direito do Estado e da Regulação pela FGV-RIO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Fernanda Mesquita. A nulidade do contrato verbal na administração pública e o dever de indenizar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 maio 2013, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35286/a-nulidade-do-contrato-verbal-na-administracao-publica-e-o-dever-de-indenizar. Acesso em: 23 dez 2024.
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