RESUMO: O comportamento contraditório representa uma via de mão dupla. Assim se diz, na medida em que pode vir a representar um comportamento a ser recriminado ao mesmo tempo em que representa a eterna busca humana pela evolução. De toda forma, a temática vem ganhando importância mais pelo seu aspecto nocivo, representando doutrina que vem ganhando força em nosso ordenamento. O aforismo objeto deste estudo, nemo potest venire contra factum proprium, como oportunamente se verá, guarda proximidade com institutos que há tempos fazem parte do núcleo de fundamentos de um Estado Democrático de Direito, no que se cita a lealdade, a confiança e a boa-fé. Transplantar esta essência para o Direito Administrativo não é tarefa das mais capciosas na medida em que princípios outros deste ramo do direito já cumprem bem este papel, fazendo parte da realidade do Direito Público, as máximas da boa-fé objetiva e da segurança jurídica.
PALAVRAS-CHAVE: Repressão ao comportamento contraditório – Nemo potest venire contra factum proprium – Aplicação do instituto no Direito Administrativo.
ABSTRACT: A contraditory behavior can be compaired to a two-way road. This comparison is inevitable as far as it can represent a not desirable behavior or its an eternal search for human sense of evolution. In a way or another, this article represents a topic that is gaining relevance in brazilian juridical environment. The aforism that lays in nemo potest venire contra factum proprium, as will be proved along the development of its study, has its own similarities with other instruments that make part of the fundaments of an Democratic State of Law, such as loyalty, trust and bone fide. Bring all that essence to Administrative Law is not such a complicated issue, as far as there are other principles, usual in Administrative reality that executes perfectly that role, like a so called ‘objective’ bone fide and legal safety.
KEYWORD: Repression against contraditory behavior – Nemo potest venire contra factum proprium – Administrative Law.
As mudanças de paradigmas, ideais e até mesmo de ideologia, a impulsionar constantes alterações da realidade, caracterizam os períodos de grande evolução e o dinamismo presente na própria condição humana.
O ritmo frenético das transformações e um cenário de inconstâncias (tão típicos da sociedade hipercomplexa da atualidade) facilmente podem gerar comportamentos incoerentes, que, invariavelmente, suscitam insegurança.
Não há como negar que a mudança de opinião frente à revolução dos pensamentos se apresenta como uma faceta irremediável da criação. O que se traz à reflexão neste estudo, e o que, como se verá, se buscou reprimir ao longo dos tempos, é o comportamento incoerente, que se transmuta na medida da conveniência de uma das partes, a ponto de gerar consequências danosas.
É exatamente neste quadro que surge o instituto do venire contra factum proprium, cuja evolução e desenvolvimento (a partir da ideia de coerência x incoerência) serão abordados nas primeiras linhas desse estudo.
Nesta ordem, feitos os primeiros apontamentos acerca do comportamento incoerente e do cenário que se prestou ao nascimento do nemo potest venire contra factum proprium, passa-se, ato sequente, ao enfrentamento das reais bases deste instituto (que como se verá, possui, em essência, natureza privatística) no Direito Brasileiro, momento em que se empreenderá análise acerca de seus requisitos e fundamentos tanto na legislação infraconstitucional quanto em bases constitucionais.
Finalmente, passar-se-á à reflexão acerca de sua aplicação no âmbito do Direito Administrativo, como expressão e relevante instrumento na realização dos princípios da segurança jurídica, da igualdade e da própria moralidade, na estreita e frágil relação Administração Pública - Administrados.
A própria intenção de delimitar o tema (coerência x incoerência), como se verá, representa uma incoerência em si mesma.
A repugnância à incoerência na cultura universal é tão natural quanto a própria incoerência da natureza humana. Homero (século IX a.C.) inaugura sua Odisséia com as palavras de um Zeus surpreso com a inconstância dos mortais: “Caso curioso que os homens nos culpem dos males que sofrem! Pois, dizem eles, de nós lhes vão todos os danos, conquanto contra o Destino, por próprias loucuras, as dores provoquem[1]”.
Outro caso, por demais célebre, a exteriorizar a condenável incoerência, é a do Imperador Romano Júlio César, ao reconhecer entre os seus algozes aquele que sempre tratara como filho, proclamando a por demais conhecida – Tu quoque, Brutus? (Até tu, Brutus? – sendo o próprio Tu quoque uma modalidade específica de venire).
E não faltam na literatura universal obras que venham reprovar a incoerência. Em o Mercador de Veneza de William Shakespeare, o agiota Shylock pede o pagamento do seu crédito em dinheiro, mas o pedido é rejeitado sob o fundamento de que o próprio Shylock o havia expressamente recusado momentos antes[2].
Nesta ordem de fatos, tudo indica que a coerência (como próprio antônimo da incoerência) seria uma virtude buscada e por demais desejada, não fosse tal afirmação, como já tivemos oportunidade de antecipar, uma contradição em si mesma.
Assim se afirma, uma vez que a incoerência, muitas vezes representada pela mudança de comportamento, se mostra como uma antítese à estabilidade, à estagnação. E é nesse ponto que a incoerência ganha tons de virtude, a reverenciar o espírito revolucionário, a ponto de colher elogios, senão vejamos:
Se há fato estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentada sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo própria. A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro conseqüentemente. Como então, senão por doença, cair e reincidir na anormalidade de querer pensar hoje a mesma coisa que se pensou ontem, quando não só o cérebro de hoje já não é o de ontem, mas nem sequer o dia de hoje é o de ontem[3]?
Nota-se, portanto, que essas linhas iniciais se prestam a demonstrar que a questão da incoerência em si mesma não é o único cerne do instituto em estudo (venire contra factum proprium). Tanto a coerência quanto a incoerência conforme o ângulo em que se as observe se prestam a representar virtudes. O que se pode notar, a princípio, é que a proibição de comportamento contraditório vai além da pura incoerência, a envolver a tutela da confiança, a boa fé e outros institutos que modernamente fazem parte da evolução do tema, especialmente na seara jurídica.
Foi no século XII, com a retomada do estudo sistemático do Direito e a partir do reexame de textos do direito romano, com a influência dos glosadores, que surgiu, pela primeira vez, a menção ao instituto em estudo.
Com Azo, em sua obra Brocardica, exatamente uma compilação de brocardos jurídicos extraídos a partir da interpretação de fontes romanas, tem-se o primeiro registro expresso do princípio da proibição do comportamento contraditório, onde se lê, no título X, o aforismo: venire contra factum proprium nulli conceditur, ou seja, “a ninguém é concedido vir contra o próprio ato”.
Acontece que o próprio Azo foi o primeiro a admitir que a máxima proposta já representava uma contradição na medida em que o direito romano permitia, de forma expressa, em outras hipóteses a contradição.
Apesar da tentativa de alguns autores de desenvolver um critério de validação do citado aforismo, os próprios textos romanos pareciam não oferecer solução para a questão do comportamento contraditório. E não foi diferente nos períodos históricos posteriores.
O movimento renascentista (que lançara as bases para o surgimento do Iluminismo) consagrou o uso da razão como única fonte da verdade e do conhecimento. Com o racionalismo, a doutrina do poder divino dos reis, a justificar a autoridade absoluta do Estado monárquico desmorona. Este quadro inspirava, portanto, a valorização da vontade e do consentimento do homem.
Todos esses aspectos repercutiram sobre o Direito, produzindo o chamado jusracionalismo ou jusnaturalismo racionalista. Fundado na liberdade individual e no poder da vontade o homem, fácil prever que não havia muito espaço para o desenvolvimento de construções como o nemo potest venire contra factum proprium, que representa, no fim das contas (e como oportunamente se poderá concluir), verdadeiro controle da legitimidade da atuação privada.
Com a consagração do liberalismo, espaço, por excelência, da liberdade individual e de atuação exclusiva da autonomia privada, onde o Estado não podia intervir, o venire contra factum proprium – o ir contra os próprios atos – representava verdadeira antinomia desta autonomia, uma vez que o indivíduo se encontrava livre para contrariar seu próprio comportamento, para alterar suas posições, independentemente das expectativas eventualmente despertadas pela sua conduta.
Esse verdadeiro culto à liberdade individual, como direito absoluto, estava fadado ao insucesso já em suas bases, como a própria história tratou de assimilar. Entre os próprios teóricos do iluminismo, já se admitia que a liberdade entre sujeitos desiguais seria uma falsa liberdade e onde “há situações infelizes em que não se pode conservar a liberdade senão à custa da de outrem, e em que o cidadão só pode ser perfeitamente livre se o escravo for extremamente escravo[4]”.
Nesta ótica, a autonomia privada converte-se em opressão, entre os próprios indivíduos, reflexo de relações desequilibradas, onde os mais fortes submetem os seus interesses aos mais vulneráveis. Passa-se a experimentar um período de extrema fragilidade da humanidade e seu resgate ocorre nas bases do reconhecimento da dignidade humana, como valor-fundamento da sociedade contemporânea, faceta estrutural da chamada solidariedade social.
O Estado (a partir da dinâmica do chamado Welfare State) passa a intervir em defesa dos mais vulneráveis, limitando e redimensionado a atuação privada, criando um novo entendimento para o que venha a se entender por autonomia privada, em consonância com toda a sistemática constitucional respectiva.
Pietro Perlingieri, apresenta, de forma bastante contundente, os novos meandros da autonomia privada na contemporaneidade, nos seguintes termos:
A autonomia privada não é um valor em si, e, sobretudo, não representa um princípio subtraído ao controle de sua correspondência e funcionalização ao sistema das normas constitucionais. Também o poder de autonomia, nas suas heterogêneas manifestações, é submetido aos juízos de licitude e de valor, através dos quais se determina a compatibilidade entre ato e atividade de um lado, e o ordenamento globalmente considerado, do outro[5].
Neste contexto, onde a legitimidade dos atos afetos à esfera privada se encontram condicionados ao atendimento de valores constitucionais postos, há campo fértil para o desenvolvimento de uma proibição ao venire contra factum proprium., o que realmente acontece, mais especificamente em 1912, com o advento da obra Venire contra factum proprium – Studien in Romischen, Englischen und Deutschen Civilrecht, do professor da Universidade de Friburgo, Erwin Riezler, que lança a matéria no debate acadêmico da Alemanha.
Apesar de ser admitido nos principais sistemas jurídicos da Europa, bem como naqueles que foram influenciados pela matiz jurídica européia, o princípio do nemo potest venire contra factum proprium vem sendo tratado como um princípio implícito, uma teoria geral, ou mesmo, uma doutrina de repressão à incoerência, faltando a citado princípio o tratamento legal merecido.
A afirmação anterior, pautada em bases estritamente positivistas, não serve para desmerecer o instituto em questão que, como teremos a oportunidade de enfrentar na sequência, serve de instrumento para a concretização do Estado Democrático de Direito, firmado em bases sólidas de garantia da realização da dignidade humana.
De fato, nem o Código Civil Vigente nem a Constituição Federal de 1988 trataram de forma explícita do instituto do venire contra factum proprium. Todavia, tal fato não afasta o reconhecimento da importância do tema que tem, reiteradamente, ganhado reconhecimento e importância, principalmente, nos tribunais pátrios.
Mesmo não havendo um único artigo em nosso ordenamento jurídico que venha embasar citado instituto, seu espírito se encontra vivo tanto na legislação constitucional quanto infraconstitucional.
Em sendo um instituto tipicamente privado (relações entre particulares, principalmente afeto a questões contratuais) e ao se ter por referência a base do nosso direito privatístico – o Código Civil Brasileiro – e, como já tivemos a oportunidade de antecipar, o venire ali não encontrou morada. Todavia, é possível encontrar instituto que evidencia a alma do objeto deste estudo: a boa fé objetiva (exemplificativamente: artigos 113 e 422 do Código Civil Brasileiro).
É fato que a construção inicial do que se entenda por boa-fé objetiva se deu desprovida de fundamentações axiológicas precisas, no entanto, seu ideal, pautado na conduta leal e confiável (Treu und Glauben), a exteriorizar a solidariedade social no campo das relações privadas[6], vem se consolidando nas codificações mais modernas ao redor do mundo.
Nesta dinâmica, desponta o conceito proposto por Cláudia Lima Marques, que ao reforçar o aspecto da solidariedade social presente neste instituto, pontifica:
Boa-fé objetiva, significa, portanto, uma atuação refletida, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes[7].
Feita esta conceituação inicial, vale pontuar, sob o ponto de vista dogmático, a tripartição funcional dada à boa-fé objetiva por Gustav Boehmer, tendo atribuído a mesma as seguintes funções: (i) a função de cânone interpretativo dos negócios jurídicos; (ii) a função criadora de deveres anexos ou acessórios à prestação principal; e (iii) a função restritiva do exercício de direitos[8].
Esta terceira função atribuída à boa-fé objetiva guarda especial relação com o venire contra factum proprium, uma vez que visa a impedir o exercício de direitos em contrariedade à recíproca lealdade e confiança. É uma faceta negativa deste instituto, a reprimir atitudes aparentemente lícitas que venham a contrariar a boa-fé, a configurar, finalmente, o abuso de direito, igualmente reprimido por nosso ordenamento (art. 187 do Código Civil Brasileiro).
Outra importante faceta da boa-fé objetiva a merecer menção (vez que contribuirá para a estruturação das reais bases do venire) é a noção de confiança que dela provem. Menezes Cordeiro nos apresenta a exata medida deste liame ao pontuar que “nas suas manifestações subjectiva e objectiva, a boa-fé está ligada à confiança: a primeira dá, desta, o momento essencial; a segunda confere-lhe a base juspositiva necessária quando, para tanto, falte uma disposição legal específica. Ambas, por fim, carreiam as razões sistemáticas que se realizam na confiança e justificam, explicando, a sua dignidade jurídica e cuja projecção transcende o campo civil[9]”.
Nesta perspectiva, a valorização contemporânea da confiança reforça o amplo movimento pela solidarização do direito, reforçando a dimensão social do exercício dos direitos, ou melhor, o reflexo das condutas individuais sobre terceiros. A tutela da confiança retira o foco exclusivo das condutas para se voltar aos efeitos fáticos destas condutas. Desta feita, o que acontece no âmbito privado importa sobremaneira à esfera do coletivo.
Nesta ordem, “ao impor sobre todos um dever de não se comportar de forma lesiva aos interesses e expectativas legítimas despertadas no outro, a tutela da confiança revela-se, em um plano axiológico-normativo, não apenas como principal integrante do conteúdo da boa-fé objetiva, mas também como forte expressão da solidariedade social, e importante instrumento de reação ao voluntarismo e ao liberalismo ainda amalgamados ao direito privado como um todo”[10].
Desta forma, forçoso identificar, tanto na boa-fé objetiva como na tutela da confiança, fundamentos do venire contra factum proprium, a reforçar a relevância do tema tanto no âmbito doutrinário como parâmetro na legislação infraconstitucional.
Constitucionalmente falando, o instituto em estudo ganha fundamento com o princípio da solidariedade social, alçado à condição de objetivo da República brasileira no artigo 3º de nossa Carta Constitucional.
Feitas estas considerações gerais, finalmente adentra-se na reflexão que impulsionou o presente estudo, passando-se a ponderar, no tópico subsequente, acerca do instituto do venire contra factum proprium na esfera do Direito Administrativo.
Diante de instituto tão complexo e, a princípio, essencialmente de direito privado, surge o questionamento se o venire contra factum proprium teria alguma valia ao se ter por base as relações de direito público. Tal questão se mostra afirmativa, na medida em que, como tivemos a oportunidade de verificar, seu fundamento normativo se encontra inserido no âmbito da cláusula geral da boa-fé objetiva, como expressão de valores constitucionais.
Além do mais, ao se falar em boa-fé objetiva propriamente dita, é possível transmutar seu espírito para institutos verdadeiramente publicísticos, como a moralidade administrativa e a igualdade/impessoalidade dos administrados perante a Administração Pública. Além do mais, é possível reconhecer a missão da Administração Pública como realizadora do valor constitucional da solidariedade social, o que facilmente poderá ser concretizado tendo o venire contra factum proprium como instrumento.
E como já tivemos oportunidade de ressaltar, o venire ganha cada vez mais força e reconhecimento em nosso tribunais. O Superior Tribunal de Justiça, em mais de uma oportunidade, já fez incidir o nemo potestat venire contra factum proprium nas relações entre particulares e Administração Pública.
O leading case ocorreu em 17 de março de 1998, no julgamento do Recurso Especial 141.879/SP, interposto no âmbito de ação anulatória de compromisso de compra e venda de um imóvel alienado pelo Município de Limeira/SP a um particular. A ação se deu ante a conduta do Município em questão de, a princípio, realizar a celebração de diversas promessas de compra e venda de lotes integrantes de uma gleba de sua propriedade e, a posteriori, promover a anulação daqueles contratos sob o argumento de que o parcelamento não estaria regularizado, faltando-lhe, portanto, o necessário registro.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, como o juízo de primeira instância, julgou improcedente a ação anulatória, firmando que a regularização do loteamento era tarefa do próprio Município, conforme inteligência do artigo 40 da Lei 6.766/79.
O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o recurso, ressaltou o caráter contraditório dos atos praticados pelo Município de Limeira/SP e, com base na boa-fé objetiva e na tutela da confiança (bases do venire contra factum proprium), negou provimento ao pedido, recriminando o comportamento incoerente, o que vale o traslado:
Tendo o Município celebrado contrato de promessa de compra e venda de lote localizado em imóvel de sua propriedade, descabe o pedido de anulação dos atos, se possível a regularização do loteamento que ele mesmo está promovendo (...) A teoria dos atos próprios impede que a administração pública retorne sobre os próprios passos, prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade de seu procedimento.
E conclui o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, relator do acórdão, com preciosa lição:
Sabe-se que o princípio da boa-fé deve ser atendido também pela administração pública, e até com mais razão por ela, e o seu comportamento nas relações com os cidadãos pode ser controlado pela teoria dos atos próprios, que não lhe permite voltar sobre os próprios passos depois de estabelecer relações em cuja seriedade os cidadãos confiaram.
Outro julgamento que também reflete o reconhecimento e aplicação do nemo potest venire contra factum proprium à Administração Pública é a do Recurso Especial 47.015/SP (16 de outubro de 1997). Neste caso, a controvérsia se deu em razão da transferência de dois lotes de terras devolutas realizada, em 1956, pela Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo, a um particular. Anos mais tarde, o próprio Estado de São Paulo declarou de utilidade pública citados imóveis, para fins de implantação do Parque Estadual da Serra do Mar. Ao invés de ter ajuizado a competente ação de desapropriação, o Poder Público estadual passou a praticar atos em prejuízo da posse exercida pelo espólio do proprietário, que, por sua vez, propôs a respectiva ação de desapropriação indireta contra a Fazenda do Estado de São Paulo, visando obter a devida indenização
A Fazenda paulista pugnou pela nulidade dos títulos aquisitivos, sob a alegação de que os mesmos haviam sido expedidos irregularmente pelo então Secretário de Agricultura, em desacordo com a legislação vigente à época. O argumento foi prontamente rejeitado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, principalmente quanto ao comportamento do Poder Público que, por décadas, não se opusera à transferência do imóvel, havendo reconhecido a qualidade de proprietário do particular por meio de decreto de utilidade pública e outros atos correlatos.
O Superior Tribunal de Justiça, mais uma vez, reconheceu a incidência do nemo potest venire contra factum proprium à Administração Pública, merecendo traslado o voto do Ministro relator Adhemar Maciel:
Ora, pelo que se apreende do acórdão recorrido, o Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou – a meu ver, acertadamente – o princípio de que nemo potest venire contra factum proprium (ninguém pode se opor a fato a que ele próprio deu causa) (...) Realmente, não pode a Fazenda Pública, décadas após a venda do imóvel realizada por funcionário de alto escalão em nome da Administração, vir a juízo pleitear a nulidade dos títulos. Ora, se há mácula no título, essa foi causada pelo próprio poder público, o qual não pode invocar o suposto equívoco do seu secretário de Estado, para prejudicar aquele que legitimamente adquiriu a propriedade, pagando para tanto. Em suma, Senhor Presidente, se o suposto equívoco no título da propriedade foi causado pela própria Administração, não há que se alegar o vício com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço para fins de aquisição. (...)
É possível notar, portanto, que a prática revela a grande utilidade do venire contra factum proprium na solução de conflitos em todos os ramos da Ciência Jurídica. Na esfera do Direito Administrativo, verifica-se um aspecto ainda mais atraente, uma vez que se venha entender que citado instituto se presta à concretização do princípio da segurança jurídica.
É possível antecipar, como na sequência se terá a oportunidade de verificar, que o aforismo em estudo nada mais representa senão a derivação de máximas como a certeza e a estabilidade mínima que se esperam do ordenamento.
Os professores Luiz Carlos Figueira de Melo e Anderson Rosa Vaz, ao tratarem da segurança jurídica no Estado Democrático de Direito, invocam a doutrina segundo a qual somente a certeza jurídica seria capaz de proteger a confiança do cidadão, concluindo:
O conceito de segurança jurídica assume, assim, noção de certeza jurídica. A vida requer estabilidade, o que somente será possível se se eliminar do sistema a possibilidade de improvisação por parte, principalmente, do detentor do poder[11].
Hely Lopes Meirelles, a fim de demonstrar a relevância do princípio da segurança jurídica (e citando o entendimento de Almiro do Couto e Silva), o confronta com o ato nulo, ensinando:
No Direito Público não constitui uma excrescência ou aberração adminitir-se a sanatória ou o convalescimento do nulo. Ao contrário, em muitas hipóteses o interesse público prevalecente estará precisamente na conservação do ato que nasceu viciado mas que, após, pela omissão do Poder Público em invalidá-lo, por prolongado período de tempo, consolidou nos destinatários a crença firme da legitimidade do ato. Alterar esse estado de coisas, sobre o pretexto de restabelecer a legalidade, causará mau maior do que preservar o statu quo. Ou seja, em tais circunstâncias, no cotejo dos dois subprincípios do Estado de Direito, o da legalidade e o da segurança jurídica, este último prevalece sobre o outro, como imposição da justiça material[12].
Finalmente, dignas de nota, as reflexões de Raquel Melo Urbano de Carvalho, que em obra que proporciona extensa reflexão acerca dos princípios do Direito Administrativo, traz de volta à própria incongruência existente na ideia de segurança, pontuando:
Independentemente de se fazer inserir, ou não, no princípio da segurança jurídica a ideia de certeza, é sabido que todos reconhecem ao referido princípio o objetivo de subtrair a atividade pública das áleas do arbítrio, assegurando-se a estabilidade mínima possível em um dado sistema jurídico, embora impossível a estabilidade absoluta nas relações sociais. Se no mundo moderno não se pode esperar o imobilismo, igualmente rejeitada é a instabilidade desagregadora do sistema jurídico. Os interesses individuais e coletivos não podem ser expostos à imprevisibilidade acentuada, nem mesmo a mudanças bruscas e irrefletidas, sendo imperioso proteger a boa-fé dos integrantes da sociedade. Em outras palavras, embora seja inerente ao direito ser um sistema mutante, porquanto relativo a uma sociedade em permanente transformação, deve-se buscar um mínimo de equilíbrio e estabilidade necessários ao futuro das relações sociais[13].
E não é só o princípio da segurança jurídica que empresta elementos para o reconhecimento do venire dentro da esfera do Direito Administrativo. A cláusula geral da boa-fé objetiva (elemento indissociável do venire) tem sido uma constante na relação que se estabelece entre os cidadãos e a Administração Pública.
Mais uma vez, Raquel Melo Urbano de Carvalho, imprime a tônica da matéria, refletindo:
Especificamente no Direito Administrativo, o exame eminentemente doutrinário e, no Brasil, ainda incipiente sobre o tema, invoca como justificativa à proteção da boa-fé na seara pública a impossibilidade de o Estado violar a confiança que a própria presunção de legitimidade dos atos administrativos traz, agindo contra factum proprium. Não há dúvida que a confiança que os cidadãos têm nas ações estatais, decorrentes do seu presumido acerto do ponto de vista fático e jurídico, justifica sejam os mesmos protegidos do automatismo na incidência do ordenamento jurídico. Não se pode admitir um comportamento público que crie expectativas e que, posteriormente, frustre, de modo desarrazoado, o estado de confiança decorrente até mesmo da presunção de legitimidade reconhecida ao Estado[14].
Ainda que segundo citada autora a matéria em questão se desenvolva de forma incipiente em nossa realidade, é fato que sua essência – a boa-fé - já se faz presente no âmbito do Direito Administrativo, servindo como referência a lição do mestre Celso Antônio Bandeira de Mello, nas seguintes linhas:
O que é, pois, agir de boa fé?
É agir sem malícia, sem intenção de fraudar a outrem. É atuar na suposição de que a conduta tomada é correta, é permitida ou devida nas circunstâncias em que ocorre. É, então, o oposto da atuação de má fé, a qual se caracteriza como o comportamento consciente e deliberado produzido com o intento de captar uma vantagem indevida (que pode ou não ser ilícita) ou de causar a alguém um detrimento, um gravame, um prejuízo, injustos.
O princípio da boa fé também deve ser considerado para fins de exclusão da responsabilidade do administrador e dos administrados, uma vez que a má-fé não se presume[15].
Não há como ignorar, diante de toda a matéria posta à reflexão, que, na medida em que se reduz a verticalidade nas relações entre o Poder Público e o cidadão, bem como se experimenta um incremento nas relações de coordenação entre os mesmos, por certo verificar um crescimento no campo de incidência da boa-fé.
E não é só. O professor baiano Paulo Modesto, ao refletir sobre a boa-fé, conclui que a mesma se presta a realizar a moralidade administrativa, arrematando:
A moralidade administrativa, porém, exige do administrador uma atuação ética tanto em suas relações externas com os administrados, tomados estes como particulares ou com uma coletividade total e inespecífica de homens, quanto nas relações internas relativas ao funcionamento e estruturação do aparato administrativo.
Nas relações com os administrados a boa fé assegura a proteção da confiança , valor fundamental no Estado de Direito, uma vez que oferece vedação a toda atuação contrária à conduta reta, normal e honesta que cabe desejar tráfego jurídico, assegurando também os efeitos jurídicos esperados justificadamente pelo sujeito que atuou de boa fé[16].
É possível notar, finalmente, neste concatenar de ideias, que o venire contra factum proprium dentro da esfera do Direito Administrativo se mostra uma variante, uma terminologia a mais na busca pela realização dos primados da boa-fé e da segurança jurídica nas relações Administração – Administrados.
Ulpiano[17], diante da famigerada trilogia honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere, qualificou o alterum non laedere (princípio de que não se deve prejudicar ninguém) como o princípio mais importante de todo o ordenamento jurídico. De fato, pode-se dizer, de uma forma ou de outra, que o objeto deste estudo parte desta premissa.
O nemo potest venire contra factum proprium surge ao lado de outras figuras, como um modelo concreto e específico a refutar todo comportamento contrário à boa-fé, à confiança e, logicamente, à segurança das relações, valores fundamentais no Estado Democrático de Direito.
Tendo se mostrado como uma importante face da lealdade e da confiança, os fundamentos abalizadores do nemo potest venire contra factum proprium se revelam como verdadeiros primados, servindo não só à esfera do direito privado quanto do direito público (ainda que esta dicotomia hoje não tenha mais qualquer relevância).
Não existem motivos para desconsiderar os fundamentos do instituto em estudo da esfera do chamado direito público, quanto mais pelo fato de que o mesmo se mostra como um outro enfoque de institutos por demais conhecidos: a segurança jurídica e a boa-fé objetiva.
Nesta ordem, há de se concluir que, ademais a terminologia venire contra factum proprium ter se mostrado o grande atrativo deste estudo (pela própria fascinação que de tempos em tempos se tem por determinado instituto), o mesmo nada mais é do que mais um instituto a serviço da tão fragilizada relação Administração-Administrados, na constante busca pela realização da lealdade, confiança e moralidade.
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[2] William Shakespeare, The merchant of Venice, ato 4, cena 1, New York: Oxford University Press, 1998, p. 446.
[3] PESSOA, Fernando. Do contraditório como terapêutica de libertação. Obras em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 581.
[4] ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 116.
[5] PERLINGIERI, Pietro. Nuovi profili del contratto. In: Rassegna di Diritto Civile, 2002, III, pp. 545-571.
[6] BIANCA, Massimo. La nozione di buona fede quele regola di comportamento contrattuale. In: Rivista di diritto civile, anno XXIX, 1983, parte prima, p. 209.
[7] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor – O novo regime das relações contratuais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1998. p. 107.
[8] Gustav Boehmer, Grundlagen der bürgerlichen Rechtsordnung, apud Franz Wieacker, El principio general de la buena fe, Madrid: Civitas, 1986, p. 50.
[9] CORDEIRO, Antônio Menezes. Da boa fé no Direito Civil. Lisboa: Almedina, 2007, p. 336.
[10] SCHREIBER. Anderson. A proibição de comportamento contraditório – Tutela da confiança e venire contra factum proprium, 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 95.
[11] MELO, Luiz Carlos Figueira de; VAZ, Anderson Rosa. Princípio da segurança jurídica e o fato consumado no Direito administrativo: art. 54 da Lei federal n. 9784/99 e o prazo decadencial. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, NDJ, v. 19, n. 1, p. 37, jan. 2003.
[12] MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 95.
[13] CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Salvador: Editora JusPodium, 2009. p. 83/84.
[14] Ob. cit. p. 111/112.
[15] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O princípio do enriquecimento sem causa em direito administrativo. RDA, n. 210, p. 33.
[16] MODESTO, Paulo. Controle jurídico do comportamento ético da Administração Pública no Brasil. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ, Centro de Atualização Jurídica, n. 13, abril-maio 2002.
[17] * Viver honradamente, não prejudicar ninguém, dar a cada um o que é seu – Digesta 1.1.10.1; Institutiones 1.1.3 apud GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo – Parte general. 7ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. X-25.
Advogada. Mestranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista CAPES.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Daniela Juliano. O venire contra factum proprium no Direito Administrativo - a repressão ao comportamento contraditório na relação Administração Pública x Administrados Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jun 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35349/o-venire-contra-factum-proprium-no-direito-administrativo-a-repressao-ao-comportamento-contraditorio-na-relacao-administracao-publica-x-administrados. Acesso em: 23 dez 2024.
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