O sistema jurídico moderno foi estruturado sob a égide das idéias liberais propagadas pela Revolução Francesa. As declarações de direitos proclamadas nos séculos XVII e XVIII inseriram os valores individuais no centro do ordenamento e afirmaram a figura do indivíduo frente ao poder do Estado.
Aos órgãos estatais restou a tarefa de assegurar aos homens livres o pleno exercício de seus direitos e manter a ordem pública, com uma intervenção mínima na sociedade liberal.
Este alicerce, contudo, foi rompido com as mutações econômicas, políticas e culturais ocorridas nos séculos XIX e XX. As relações deixaram de ser, de forma predominante, intersubjetivas para, de maneira gradual, atingir um inúmero incalculável de pessoas.
A Revolução Industrial associada ao desenvolvimento do capitalismo liberal, à progressiva concentração do capital e ao adensamento populacional nas cidades revelaram novos atores sociais (a classe, o grupo, o sindicato, a associação) que possuíam perspectivas diferentes a depender da posição em que ocupavam na sociedade pautada em contradições (empregado/empregador, capital/trabalho), propiciando a eclosão dos inevitáveis conflitos de massa (LENZA, 2005).
A nova dinâmica social, conforme lição de Alexandre Amaral Gavronski (2005), resultou na positivação de normas que incidiam nas relações trabalhistas – limitação da jornada de trabalho, proibição de trabalho infantil, repouso semanal – e no reconhecimento de direitos que requeriam a intervenção direta do Estado para sua implementação – direito à saúde, à educação, à previdência social –, caracterizando os direitos econômicos, culturais e sociais. Sobre a natureza destes direitos o autor comenta:
Tais direitos, embora passíveis de titularidade individual, como demonstram as inúmeras demandas trabalhistas clássicas, foram assumindo, com a evolução da sociedade, um nítido contorno coletivo, sendo ora titularizado por um grupo, categoria ou classe de pessoas (salubridade nos locais de trabalho), ora de maneira difusa por toda a sociedade (direito à manutenção de escolas e hospitais públicos que assegurem saúde e educação à população em geral). (GAVRONSKI, 2005; p. 25).
Por sua vez, o processo de globalização econômica, no século XX, acarretou a massificação da produção, da comercialização, do crédito, da comunicação, pois os bens envolvidos nas relações podiam ser usufruídos por toda sociedade. Portanto, um só ato passou a poder acarretar consequências a um número incalculável de pessoas. Assim, interesses até então excluídos de qualquer espécie de proteção estatal, como a preservação do meio ambiente, a proteção do consumidor, o direito à correta e completa informação foram incorporados ao ordenamento jurídico.
As necessidades sociais, reveladas nos séculos XIX e XX, não integram o patrimônio de um indivíduo determinado, ao contrário, ultrapassam a esfera do homem isolado e atingem grupos de pessoas ou sujeitos indetermináveis, ligados por uma situação jurídica ou fática comum, por isso são denominados de direitos metaindividuais[1], transindividuais ou supraindividuais.
Os direitos metaindividuais não integram o patrimônio de indivíduos determinados, bem como não estão sujeitos aos princípios do direito privado, como a disponibilidade e a autonomia da vontade (LEONEL, 2002; LENZA, 2005).
As teorias processuais clássicas não poderiam prestar uma tutela adequada aos direitos metaindividuais, em virtude das peculiaridades destes em relação aos valores tradicionais tutelados. A incorporação dos interesses supraindividuais ao direito material foi acompanhada de mudanças no direito processual.
A ação popular, arrolada entre as garantias constitucionais desde 1934 por todas as constituições, com exceção da Carta de 1937, e regulamentada pela Lei 4717/65, é apontada por Leonel como “primeiro instrumento sistemático, com regulamentação autônoma e praticamente completa, voltada à tutela de alguns interesses metaindividuais em juízo” (2002; 115).
Esta ação constitucional legitimou de forma exclusiva o cidadão a postular, inicialmente, a anulação de ato lesivo ao patrimônio Público. Com o advento da Constituição Federal (CF) de 1988 (art. 5º, LXXIII), também pode ser pleiteada a anulação de ato lesivo a bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico, do Estado ou de entidade que o mesmo participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
A ação de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente foi prevista na lei 6938/81, que disciplinou a Política Nacional do Meio Ambiente, a qual concedeu legitimidade exclusiva ao Ministério Público para propô-la em face do agente que exercesse alguma atividade considerada poluente e causasse dano ambiental.
Verifica-se que estes dois diplomas conferiram uma proteção tímida na defesa dos direitos metaindividuais. A ação popular possuía um campo inicial de tutela limitado ao patrimônio público e autorizou somente o cidadão a manejá-la, o qual poderia ficar desencorajado ante a complexidade das questões, o vulto das despesas e a força política e econômica dos adversários. Já a ação de responsabilidade tinha o meio ambiente como objeto específico e um único ente como legitimado.
Diante de tais limitações o ordenamento jurídico brasileiro precisava de um instituto com um objeto mais amplo, de modo a tutelar os direitos supra-individuais em sua totalidade, e com a legitimação atribuída a outras pessoas ou órgãos (BARROSO, 2000).
O desenvolvimento no Brasil de estudos sobre os direitos metaindividuais decorreu, segundo Eliane Botelho (1996), do processo de abertura política, da emergência do movimento social e da necessidade de se tentar expandir os direitos sociais para a população. A autora pontua que o sistema jurídico não estava conseguindo lidar com os conflitos que eclodiram na década de 80 (oitenta), em decorrência dos direitos sociais revelados.
Aproveitando o ambiente propício, Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Junior, apresentaram um projeto de lei, fruto de estudos em conjunto, no I Congresso Nacional de Direito Processual em Porto Alegre, no ano de 1983.
Em paralelo, os então Promotores de Justiça do Estado de São Paulo Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Edis Milaré e Nelson Nery Junior, com base no anteprojeto original, elaboraram um segundo, o qual ampliou o campo de incidência da ação e regulamentou a atuação do Ministério Público. O projeto foi apresentado pelo Ministério Público de São Paulo ao governo federal, que encaminhou ao Congresso Nacional a proposta.
Em decorrência da preferência de tramitação dos projetos encaminhados pelo Poder Executivo, o segundo projeto recebeu trâmite mais célere, sendo aprovado e sancionado pelo Presidente da República, resultando na Lei 7347/85 (LACP), que regulamentou a ação civil pública no ordenamento jurídico.
Ainda sob a influência da reabertura política e da consolidação dos movimentos sociais, a Carta Magna de 1988 recepcionou a tutela coletiva prevista nas leis ordinárias. O texto constitucional ampliou o objeto da ação popular, como já visto, fez menção expressa a ação civil pública e trouxe novos instrumentos hábeis à tutela dos direitos transindividuais como o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX) e o mandado de injunção (art. 5º, LXXI).
2. Controle judicial da omissão administrativa
Na sociedade massificada o Estado brasileiro assumiu o dever de realizar políticas públicas com a finalidade de assegurar a efetividade dos novos direitos consagrados.
Dallari Bucci (2002) e Comparato (2001), baseando-se na lição de José Joaquim Gomes Canotilho, apontam que a Carta Política Pátria tem um caráter dirigente, pois impõe à Administração Pública a obrigação de desenvolver ações, por meio das políticas públicas, que visem concretizar os objetivos nela colimados.
Sedimentada a ideia de que o Estado possui o dever de realizar prestações positivas para garantir a eficácia dos direitos sociais tutelados, caso o administrador mantenha uma postura inerte, o Poder Judiciário pode, quando acionado, determinar uma obrigação de fazer, para restaurar a ordem violada?
O não desenvolvimento de programas governamentais destinados a atingir os objetivos previstos no ordenamento jurídico autoriza, para Mancuso (2002), o controle jurisdicional das políticas públicas e a responsabilização dos agentes públicos, com “aplicação das sanções pertinentes, de natureza ressarcitória, administrativa e política (v.g, CF, § 2º, do art. 100; §3º do art. 225; Lei 8429/92, art. 11, § 1º; art. 12, III; e art. 17, § 2º)” (2002; 633).
De igual modo, Frischeisen (2000) ensina que o administrador pode ser responsabilizado, juridicamente por omissão, se não realizar ações que visem assegurar a efetividade dos direitos previstos na Carta Constitucional, descumprindo com seu dever.
Deve ser ressaltado, contudo, que não é qualquer omissão estatal que é suscetível de controle. Somente a postura “ilícita, isto é, a omissão que contrarie a ordem jurídica preestabelecida”, nas palavras de Gomes (2003; 108), pode sofrer interferência jurisdicional.
A análise do caso concreto é que irá demonstrar se a omissão do administrador importa em uma lesão às disposições legais, com o desvio das diretrizes impostas pelo ordenamento para que sejam atingidos os objetivos sociais. Por tal motivo, não se pode negar em abstrato o controle judicial das políticas públicas.
Pode-se acrescentar ainda que o posicionamento em contrário desta questão fere o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, com a exclusão da possibilidade do Poder Judiciário restaurar a ordem violada pelo não desenvolvimento da atividade.
Se o processo coletivo é meio adequado para corrigir a omissão injustificada do administrador, a ação civil pública é instrumento hábil a pleitear perante o Poder Judiciário a condenação do Estado em cumprir uma obrigação de fazer com a finalidade de que seja efetivado algum direito transindividual?
Humberto Teodoro Júnior responde este questionamento de forma categórica:
Completamente injurídico é o manejo da ACP para remanejo de verbas orçamentárias ou para alterar as prioridades administrativas quanto à aplicação das disponibilidades do tesouro, dando preferência a um investimento em lugar de outro ou simplesmente impondo à Administração o dever de realizar uma obra pelo só fato de ser de interesse coletivo. (2001; 151-152).
Conforme o ensinamento do autor, para que a ACP possa ser usada é necessário, além de interesse supraindividiual, que exista uma norma legal a contemplar o pedido pleiteado. Na sua lição, os serviços “as obras e serviços públicos em geral não correspondem, só pela utilidade, a direitos da comunidade que possam ser impositivamente exigidos da Administração” (2001; 151), pois estes dependem de uma série de atos para serem executados como o necessário planejamento, verbas orçamentárias, estar inserida na escala de prioridades realizada pelo agente, conveniência e oportunidade do empreendimento. Tais requisitos estariam ligados ao mérito do ato administrativo, seara em que o Poder Judiciário não poderia intervir por caber exclusivamente ao agente político, salvo se houver violação ao princípio da legalidade.
Por sua vez, Meireles (2001) afirma que a ACP não criou uma permissão para o julgador substituir os critérios de oportunidade e conveniência inerentes ao administrador pelos seus critérios pessoais. Logo, o ordenamento jurídico vedaria, para o autor, a possibilidade de ingerência nas questões administrativas que impliquem determinação de prioridades, realização de obras ou destinação de recursos.
José dos Santos Carvalho Filho ao analisar a possibilidade jurídica de uma ACP que postule o cumprimento de uma obrigação de fazer pontua que este instrumento processual não pode ser um “remédio para todos os males encontrados na coletividade” (2001; 81). Nesta linha, o autor admite o uso da ACP para pleitear uma conduta positiva do Estado, mas específica as situações nas quais seria possível juridicamente o uso da ação.
Segundo a lição de Carvalho Filho, quando o pedido “estiver preordenado a determinada situação concreta, comissiva ou omissiva, causada pelo Estado” (2001; 81) este pode ser considerado como juridicamente possível. Como exemplo, o autor cita uma ACP que poderia pleitear a realização de obras pelo Município em uma escola, que estaria com sua estrutura física ameaçada, colocando em risco a integridade e a vida dos alunos. A postulação de uma conduta “genérica, abstrata, inespecífica e indiscriminada” (2001; 81), está qualificada por Carvalho Filho como impossível juridicamente.
Em posição oposta, Freitas de Barros (2006b) afirma que o pedido genérico em uma ACP que postula a implementação de uma política pública não a torna juridicamente impossível. Conforme o autor, quando o Estado não desenvolve ações visando concretizar algum objetivo assegurado no texto constitucional, o Poder Judiciário deve reconhecer a violação ao ordenamento, estabelecendo prazos e parâmetros para que a Administração Pública realize a atividade em questão.
Hamilton Alonso Jr. (2005) pondera que a ACP deve ser usada para pleitear tutela de direitos que estejam previstos em normas com aplicabilidade imediata. Logo, ela seria perfeitamente possível nas situações que envolvam os direitos fundamentais assegurados no art. 5º da Carta Magna, pois o Estado só precisaria praticar ou deixar de praticar um ato, para não violar o comando legal.
No mesmo sentido, Comparato (2001) acrescenta que a ACP é um remédio judicial adequado para pleitear a inclusão, nos orçamentos, das verbas necessárias para a realização das políticas públicas bem como para garantir que a previsão orçamentária seja devidamente executada.
Ao analisar esta questão especificamente na área do direito ambiental, Álvaro Luiz Valery Miira (1995) assegura que em virtude da obrigação imposta pelo ordenamento jurídico à Administração Pública de atuar em defesa do meio ambiente, o Poder Judiciário tem o dever de controlar as omissões estatais, impondo, quando pleiteado em uma ACP, obrigações de fazer.
O uso da ACP como instrumento para controlar a omissão da Administração Pública, postulando o cumprimento de prestações positivas pelo Estado, segundo João Batista de Almeida (2001), permite que se exija do administrador o cumprimento das normas constitucionais e dispositivas legais, inclusive orçamentárias.
A omissão injustificável do administrador no desenvolvimento de políticas públicas necessárias ao efetivo exercício dos direitos metaindividuais possibilita o controle judicial através da ACP, conforme Gomes (2003), pois esta prevê a tutela específica de fazer. Nestas situações, a desobediência ao ordenamento só será corrigida quando a atividade administrativa for ajustada à situação hipotética prevista nos diplomas legais, proporcionando efetividade ao direito material lesado, tornando a indenização pecuniária em um provimento inútil. O autor conclui o assunto com a seguinte afirmação:
Enfim, pode-se dizer que a ação civil pública é o instrumento processual da cidadania com maior adequação e eficácia para o controle jurisdicional da omissão ilícita da Administração Pública, mediante a participação do titular do poder político, através do ente legitimado, na pretensão de exigir a concretização de prestações estatais positivas por meio do fazer ou do não-fazer, forte na efetividade do processo, no amplo acesso à ordem jurídica justa e na luta pela realização das aspirações sociais (GOMES, 2003, p. 65).
3. Conclusão
É incontestável que o Estado, na atual sociedade massificada, possui deveres positivos com os cidadãos, o que implica na obrigatoriedade de desenvolver políticas públicas para a promoção dos valores sociais. A Carta Política pátria normatizou diversos direitos que necessitam da intervenção estatal para que sejam efetivados e devidamente usufruídos por todos os indivíduos.
O texto constitucional será violado quando o administrador não realizar as medidas necessárias para o cumprimento das diretrizes legais, por uma abstenção que não se ampara em motivos razoáveis. A possibilidade de controle da omissão administrativa não pode ser afastada aprioristicamente, pois somente na análise da situação fática definida é que será possível avaliar se é caso ou não de interferência jurisdicional.
Sem desmerecer a complexidade da matéria, em virtude do envolvimento de postulados clássicos como a teoria da separação dos poderes, a discricionariedade administrativa e limitação orçamentária, o Poder Judiciário não pode se eximir de seu dever de apreciar toda lesão, ou ameaça de lesão, a um direito tutelado pela ordem jurídica.
Não restam dúvidas que cabe ao Poder Executivo formular e implementar as políticas públicas. Contudo, se os agentes públicos descumprirem a obrigação a eles imposta, lesando a efetividade de um direito metaindividual, o Poder Judiciário deverá intervir para restaurar a ordem violada.
O controle jurisdicional das políticas públicas é uma exigência do Estado contemporâneo em virtude deste ter recebido o dever de realizar prestações positivas para a concretização da ordem social. O descumprimento de qualquer dever, seja quem for o agente, possibilita levar a situação fática para o conhecimento do Estado-juiz.
Em princípio, cabe de forma exclusiva ao administrador, sob seus critérios de conveniência e oportunidade, elaborar as ações que irá desenvolver, diante da conhecida limitação orçamentária do Estado que impossibilita um programa universal que albergue todos os setores que necessitam de sua intervenção. O Poder Judiciário só poderá intervir quando houver uma violação evidente e arbitrária.
A omissão ilícita do administrador e lesiva aos interesses sociais, ainda que excepcionalmente, pode ser corrigida por meio da ação civil pública, em virtude da natureza transindividual dos direitos envolvidos, e em virtude desta possibilitar a imposição de uma obrigação de fazer a qualquer sujeito que viole um direito por ela tutelado.
Deve ser ressaltado, contudo, que tanto o pedido formulado quanto a sentença prolatada, se favorável, devem observar um prazo para o cumprimento da obrigação, em virtude dos recursos a serem gastos, e o modo de execução, que deve estar sujeito à apreciação de conveniência e oportunidade pelo administrador, salvo as hipóteses em que só existe uma alternativa viável capaz de atingir o determinado, sob pena de se ter um comando inexequível.
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[1] Os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos são espécies do gênero transindividuais, possuindo definição legal conferida pelo art. 81, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90).
Bacharel em direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Cintia Campos da. Ação civil pública e o controle da omissão em políticas públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jun 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35488/acao-civil-publica-e-o-controle-da-omissao-em-politicas-publicas. Acesso em: 23 dez 2024.
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