Escreveu Nilo Batista que a execução penal é uma espécie de “hora da verdade” do exercício do poder punitivo, e trata-se de uma verdade que convém seja completamente ocultada em nome da preservação das teorias legitimantes da pena[1].
A frase acima transcrita revela um pouco do espírito desde artigo sobre o conceito e teorias justificadoras da pena privativa de liberdade, pena-rainha dentre as várias modalidades previstas nos códigos penais dos países ocidentais.
O discurso dominante da mídia e da sociedade é que as polícias devem prender mais, os magistrados devem condenar mais e a penas cada vez mais longas, mas esse discurso pára justamente na condenação, pois é como se, após a prolação da sentença condenatória, o condenado não merecesse mais o status de sujeitos de direitos e seu destino não fosse do interesse de mais ninguém.
E, é nesse ponto, que percebemos o descompasso entre a função da pena declarada na Lei de Execuções Penais, de ressocialização dos criminosos, e a realidade carcerária, onde não vislumbramos ações concretas para atingir tal finalidade, pois a falta de recursos e o excesso de presos são comumente apontados, pelo menos no Brasil, como os responsáveis pelo fracasso do programa ressocializador.
Todavia, a pena não possui uma única função justificadora. Várias são as teorias que objetivam explicar a função da pena e sobre essas teorias é que pretendemos discorrer.
1. Conceito e Teorias da Pena
A palavra pena vem do grego poine que significa vingança, ódio. A pena, como ressaltado por alguns autores, seria um mal a serviço de um bem, uma expiação ou emenda moral do delinquente. A pena significaria a reeducação ou reinserção social do criminoso e o restabelecimento da ordem social danificada pelo seu comportamento.
Para Durkheim, segundo Maria José e Fernando Falcón y Tella, a paixão é o grande motor dos castigos. Nas sociedades menos desenvolvidas, o castigo é aplicado pelo prazer que provoca, é uma reação passional, uma manifestação de vingança. Nas sociedades modernas, a aplicação do castigo está subordinada à ciência jurídica, o que não significaria dizer que a emoção desapareceu, pois ainda estaria na essência da reação contra o ato delitivo, contida em certos limites, e a vingança irracional seria a alma de cada sanção penal. Assim, em sua visão, a função do castigo em qualquer tipo de sociedade, seja moderna ou menos desenvolvida, não é algo racional que busque o controle do crime, mas uma força irracional que emerge quando se atenta contra os sentimentos sociais violados[2].
Evidentemente, a vingança não pode ser aceita como finalidade do castigo em Estados Democráticos. Punir o infrator da norma social é, atualmente, uma atividade estatal desprovida de emoção ou consideração moral, de práticas ou rituais. É um processo técnico, burocratizado, profissionalizado e racionalizado.
Assim, retratando este caráter técnico e racionalizado da pena, e, portanto desprovido de qualquer carga emocional, Guilherme de Souza Nucci define a pena como "a sanção imposta pelo Estado, valendo-se do devido processo legal, ao autor da infração penal, como retribuição ao delito perpetrado e prevenção a novos crimes"[3].
Nucci, em sua definição de pena, apresenta como funções da sanção a retribuição e a prevenção, teorias tradicionais justificadoras do castigo.
As teorias retribucionistas são as mais antigas tentativas de elaboração de uma justificação para o castigo imposto pelos homens aos seus semelhantes. A Lei de Talião, expressão mais conhecida da teoria retributiva, atravessou os séculos influenciando as mais diversas correntes doutrinárias. Com o advento da Escola Clássica houve um significativo desenvolvimento da doutrina retribucionista — os pensamentos de Beccaria, Kant, Hegel e Carrara são pontos de referência até hoje utilizados pelos teóricos.
A teoria retributiva defende que a função da pena estaria em infligir um mal ao infrator através do castigo, com a finalidade de expiar e compensar o mal causado pelo ato delituoso. A punição ora se justifica por motivos éticos, de ordem moral, ora por motivos jurídicos, de ordem social, de acordo com a divisão da teoria retribucionista em retribuição-expiação ou retribuição-compensação.
No âmbito da retribuição-expiação, o condenado deveria se reconciliar consigo mesmo, através do livre arrependimento, que seria visto pela comunidade como a redenção religiosa de sua culpa. Havia uma proximidade entre os conceitos de crime e pecado, visto que o objetivo da aplicação da pena seria a salvação do condenado para a vida eterna, não se admitindo qualquer utilidade da pena estranha ao próprio apenado.
No âmbito da retribuição-compensação, a pena deveria proteger a ordem jurídica, cabendo a ela a missão de fazer justiça através da aplicação de um mal como resposta a um outro mal antes cometido. As grandes teorias justificadoras do caráter retributivo-compensatório da pena foram formuladas por Kant e Hegel.
Os estudos de Kant giraram em torno do respeito à dignidade humana, nos quais defendeu que o homem nunca poderia servir como meio, somente como fim. Assim, Kant rechaçava as teorias que defendiam que a aplicação da sanção penal poderia ter outra finalidade que não o próprio homem.
Segundo Claudio Guimarães, Hegel, defensor do caráter retributivo da pena, acreditava que o delito significava a negação do direito e que seria essencial para a reafirmação do mesmo, a aplicação de uma pena para o restabelecimento do império da vontade geral, o ordenamento jurídico, negada pelo infrator quando do cometimento do ilícito penal. Afirmou, igualmente, que a pena seria um direito do culpado, pois o sofrimento lhe traria um efeito curativo[4].
Importante ressaltar que se contrapondo às críticas que tentam aproximar o caráter retributivo da ideia de vingança, a aplicação de uma pena, de acordo com a escola retributiva, não tem por fim atender a exigências de caráter individual e sim coletivas, estatais, fundadas na ideia de lei ou moral.
A teoria retributiva foi superada pela concepção de que a pena deveria se voltar para o futuro, com enfoque no indivíduo delinquente ou na sociedade.
A teoria da prevenção, por sua vez, desdobra-se em prevenção geral, dirigida à generalidade dos cidadãos, e em prevenção especial, que visa ao delinquente em particular. Para a teoria da prevenção geral, a sanção objetiva reafirmar à sociedade a existência e força do direito penal (teoria preventiva geral positiva) ou fortalecer o poder intimidativo estatal, como um alerta a toda a sociedade, destinatária da norma penal (teoria preventiva geral negativa).
A teoria da prevenção geral baseia-se na ideia do poder dissuasório da pena. A possibilidade de sua aplicação atua sobre o indivíduo, intimidando-o, ou infunde na coletividade um sentimento de respeito às normas. Tal concepção não foi muito bem recepcionada, pois se considerou inconcebível que um indivíduo se posicionasse como instrumento de exemplo para que outros tivessem bom comportamento.
Já a teoria da prevenção especial defende que a finalidade da sanção penal é atingir o homem delinquente e, assim, a sanção se revestiria de um caráter reeducativo e ressocializador (teoria da prevenção especial positiva), ou teria por finalidade impedir temporária ou definitivamente o infrator da ação penal de novamente delinquir (teoria da prevenção especial negativa).
No âmbito da prevenção especial positiva, são frequentes as críticas quanto à interferência do Estado na vida privada da pessoa, pois seria um direito de qualquer indivíduo, inclusive dos criminosos, continuarem fiéis aos valores em que acreditam. Nucci discordando de tal afirmação, assim escreveu:
"Essa posição, em nosso entender, se adotada de modo radical, é insustentável na medida em que a vida em comunidade demanda obrigações, deveres e impõe restrições naturais, justamente a fim de preservar a liberdade de cada um. Não se pode almejar 'ser diferente' se essa atitude implicar em lesão a direito alheio, especialmente, no que toca a direito fundamental da pessoa humana, motivo pelo qual o processo de reeducação objetivado pelo cumprimento da pena é legítimo e visa à formação (ou reforma) de quem infringiu a norma penal, ferindo bem jurídico tutelado. A liberdade deve ser, sem dúvida, garantida, mas sem afastar a possibilidade de o Estado intervir para resgatar a ordem abalada, mormente quando ocorre a prática de um crime. O direito à diferença é salutar enquanto não prejudique terceiros, do contrário, é preciso impor limites. Se o condenado não os conheceu nem assimilou, por isso delinquiu, cumprindo a pena deve ser reeducado, preparando-se para o reingresso na sociedade, recuperando sua liberdade" [5]
Doutrinadores estabelecem a crise econômica de 1929 como o marco da passagem das ideias de prevenção especial negativa para as ideias moderadas do correcionalismo, as quais veem o criminoso como alguém que precisa de ajuda e tratamento, ideias posteriormente desenvolvidas pelos partidários das teses da nova defesa social. É uma época na qual o princípio ressocializador da sanção penal viveu seu esplendor, pois diversas teorias foram desenvolvidas com o objetivo principal de demonstrar a possibilidade de recuperação dos delinquentes de forma humanitária.
O correcionalismo foi uma das vertentes teóricas que mais aprofundou o estudo sobre a transformação qualitativa do sentenciado através do cumprimento da pena, cujo objetivo final seria apontar meios através dos quais se lograsse modificar a atitude interna e a própria vontade do delinquente, reincorporando-o à comunidade.
Outras teorias que primam pela reforma total do infrator, tanto externa como interna, foram sendo desenvolvidas até que a prevenção especial positiva foi sintetizada e consolidada na segunda metade do século XX pelo movimento denominado defesa social e posteriormente nova defesa social. A defesa social postula proteger a sociedade e o delinquente, assegurando ao mesmo, através das condições e vias legais, um tratamento apropriado ao seu caso individual.
A teoria ressocializadora da pena dirige-se exclusivamente ao delinquente com o escopo de que não volte a delinquir. A finalidade da pena está na reeducação do delinquente desde que não atente contra o desenvolvimento da livre personalidade, pois a autonomia da pessoa deve ser respeitada inclusive na execução da pena.
As críticas à ressocialização estão situadas na forma como são executados os programas ressocializadores e nas condições em que a sociedade recebe o egresso quando de sua volta ao convívio social.
A crise do Estado do Bem Estar Social levou ao abandono da ideologia ressocializadora. A ascensão do estado neoliberal foi acompanhada pelas novas ideias da prevenção geral positiva, a qual defendia a indispensabilidade da sanção criminal para a sobrevivência da sociedade. A violação à norma corresponderia a um abalo no sistema e a impunidade traria como efeito imediato o descrédito no sistema penal.
A função da pena, nesta teoria, se caracteriza pelo valor simbólico conferido à sanção penal, refletido no efeito positivo que a efetiva aplicação da lei penal gera sobre os não- delinquentes, pois reforça a confiança dos mesmos no sistema penal e a sua fidelidade à lei.
Claudio Guimarães afirma que a integração e a estabilização social, buscadas pela prevenção geral positiva, pressupõem a estigmatização do infrator e seu isolamento do meio social, o qual é formado pelos que agem baseados na total fidelidade ao direito, e dependem da opinião pública, pois a criminalização do indivíduo se daria pela obtenção do consenso que sustenta o sistema social[6].
Zygmunt Bauman, citado por Claudio Guimarães, aprofunda a discussão acerca da teoria da prevenção geral positiva, ao afirmar que atualmente o crime não é considerado como uma ruptura da norma, mas como uma ameaça à segurança. O autor afirma também que há uma tendência para deslocar todas as questões públicas para a área do direito penal e para criminalizar os problemas sociais, especialmente os considerados capazes de afetar a segurança da pessoa, do corpo ou da propriedade[7].
Com o argumento de combater a sensação de insegurança causada pela criminalidade, grande parte da doutrina jurídica, da população, da mídia, dos legisladores exige urna maior severidade das punições como forma de reduzir a impunidade e assim reforçar o aspecto simbólico das sanções.
Devemos, por fim, ressaltar a existência de teorias ecléticas ou mistas, que ora dão uma ênfase maior à prevenção, ora à retribuição, e que reúnem como justificação da pena as duas teorias acima citadas.
Nucci, inclusive, defende que a teoria da pena é multifacetada ou muitlfatorial que não vê incompatibilidade em:
"unir esforços para visualizar a finalidade da pena sob todos os aspectos que ela, necessariamente, transmite: é — e sempre será —retribuição; funciona — e sempre funcionará — como prevenção positiva e negativa, abrangendo, ainda, a ressocialização do condenado."[8]
Apesar de tudo que já foi escrito pela doutrina jurídica acerca das teorias e das funções da pena, autores afirmam que as mesmas não foram verificadas na prática ou são impossíveis de serem verificadas, como a função ressocializadora da pena, prevista na Lei de Execuções Penais, e afirmam também que as penas ao longo da história foram sendo aplicadas tendo em vista sua utilidade para o corpo social.
[1] BATISTA, Nilo. Prefácio da obra Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2005, p.9.
[2] TELLA, Maria José Falcón y e TELLA, Fernando Falcón y. Fundamento e Finalidade da Sanção. Existe um direito de castigar?. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.p. 60 e 61.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 3 ed.rev.atual. e ampl.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p.56.
[4] GUIMARÃES, Claudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade mo sistema penal capitalista. 2 ed. Rio de Janeiro, Editora Revan, 2007.
[5] Idem, ibidem, p.87.
[6] Idem, ibidem, p. 250.
[7] Idem, ibidem, p. 262.
[8] 8 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 3 ed.rev.atual. e ampl.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p.89.
Bacharel em direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Cintia Campos da. Teorias justificadoras da pena Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 jun 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35525/teorias-justificadoras-da-pena. Acesso em: 23 dez 2024.
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